tag:blogger.com,1999:blog-49396869363225022432024-03-15T21:01:19.246-03:00ΝεκρομαντεῖονRogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.comBlogger433125tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-35731499464579346462024-03-07T13:26:00.000-03:002024-03-07T13:26:09.802-03:00Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlyKQ9uf3gKQgWhwghEaJtc2z6QcLgLdo64KjaN4ceHV5HCt3gJaHF9ay_dA6jUpPPEGELIqHYlu_L-tKK3nVJzMVMU1CCKQKU1JkHoIsCMdbaTkOVSj3ukc5NoM2nWUZRHWk5beurFw_2lvgX9VdwbmO6uKONOsRGipu8HcODgZgeE4nOS1sfX51amYvY/s960/Dionysius_Areopagite_by_Feofan_Kritsky.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="652" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlyKQ9uf3gKQgWhwghEaJtc2z6QcLgLdo64KjaN4ceHV5HCt3gJaHF9ay_dA6jUpPPEGELIqHYlu_L-tKK3nVJzMVMU1CCKQKU1JkHoIsCMdbaTkOVSj3ukc5NoM2nWUZRHWk5beurFw_2lvgX9VdwbmO6uKONOsRGipu8HcODgZgeE4nOS1sfX51amYvY/s320/Dionysius_Areopagite_by_Feofan_Kritsky.jpg" width="217" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">"No primeiro princípio das coisas a simples existência é ela mesma a bondade primordial e absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso em sua essência, e o fogo, quente por essência, não necessitam de qualquer auxílio para agir além de seu próprio ser (e cada um ilumina e esquenta por meio de seu ser), assim também o Bem em si, cuja natureza é a absoluta bondade (<i>bonita</i>s), não carece, para além dessa bondade, de nenhuma deliberação ou escolha por auxílio da qual pudesse transmitir suas bênçãos."</div><p style="text-align: justify;">MARSILIO FICINO, <i>Comentário aos Nomes Divinos, </i>capítulo LXXIX</p><p style="text-align: justify;">O quarto livro de <i>Os Nomes Divinos, </i>de Dionísio Areopagita, trata do <i>Bem </i>e do <i>Mal. </i>O Princípio último de todas as coisas para o platonismo é o <i>Bem, </i>como apontavam Platão na <i>República</i> e Plotino nas <i>Enéadas. </i>Tudo o que há, houve ou pode haver é uma manifestação (imitação ou participação) do <i>Bem</i> eterno cuja natureza é indizível e incognoscível. O <i>Bem</i>, por ser o Princípio de tudo, não está submetido a qualquer uma das limitações das coisas. </p><p style="text-align: justify;">Dionísio afirma que o <i>Bem</i>, pelo simples fato de sua existência, traz todas as coisas à realidade, tal como o Sol, sem nenhuma escolha ou deliberação, ilumina todos aqueles que são capazes de serem iluminados. O poder do Princípio se manifesta não por uma decisão ou uma deliberação de criar as coisas. O ser humano precisa deliberar e decidir se fará ou não algo, se tomará ou não determinado curso. Esse aspecto <i>calculativo</i> e <i>discursivo</i> da vida humana é um sinal de sua natureza limitada. </p><p style="text-align: justify;">Precisamos escolher este ou aquele curso de ação. Cogitamos, imaginamos e discursamos sobre as possibilidades à nossa disposição a fim de termos uma maior certeza do que faremos. As limitações desse gênero estão ausentes do Princípio último de todas as coisas. Seria errôneo imaginar que Deus estivesse em algum momento em dúvida acerca da criação das coisas. </p><p style="text-align: justify;">Dionísio repete nesse início de capítulo um tema já enunciado por Plotino: o Princípio gera os entes por sua simples presença ou existência. O que existe no mundo é fruto direto do Princípio como (utilizando o exemplo de Plotino) o fogo gera o calor. Onde há fogo, há calor. Não por uma deliberação do fogo, mas simplesmente por conta da sua <i>essência</i>. Quando se acende o fogo, a emanação do calor é imediata e persiste enquanto o fogo estiver presente. </p><p style="text-align: justify;">O Sol é um símbolo platônico do Princípio. Ele ilumina todas as coisas capazes de receber a sua luz. Em termos metafísicos, o Princípio traz à existência tudo aquilo que é capaz de existir. Cada um dos entes deste mundo possui uma <i>essência </i>por conta da qual pertence a um determinado <i>tipo </i>de ser. Essa é a sua limitação ou determinação primeira e fundamental. Nesse sentido, ninguém escolhe <i>ser o que é. </i>As coisas simplesmente <i>são o que elas são. </i>Não há, e nunca haverá, um momento anterior à existência em que haja a escolha de ser isso ou aquilo.</p><p style="text-align: justify;">Marsilio Ficino, comentando Dionísio, afirma que <i>"em todas as coisas posteriores ao primeiro, essência é uma coisa e a bondade outra". </i>O <i>Bem</i> é o fundamento de todas as coisas. Entretanto, cada coisa é <i>diferente </i>da outra por sua <i>essência. </i>Dito de outro modo, é a <i>essência </i>que diferencia e que limita as coisas tornando-as <i>isso ou aquilo. </i>O <i>Bem </i>é a fonte e o fundamento de todas essas diferenciações, e, exatamente por isso, está acima de qualquer limitação <i>essencial</i>.</p><p style="text-align: justify;">Obviamente, o <i>Bem </i>não gera as coisas como um ser limitado gera ou age. O ser humano age segundo a sua vontade e a sua razão, que são potências diferentes e nem sempre em concordância. Porém, nenhuma diferença existe entre a vontade e a razão em Deus, pois não há diferenciações no Princípio. O Sol, imagem visível de Deus, simboliza a ação criadora do Princípio justamente por iluminar todos os seres imediatamente, sem necessidade da deliberação que caracteriza o modo humano de criar e de agir.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Deus, como o Bem, cria por Sua própria existência pura, isto é, por Sua bondade, enquanto outras coisas realizam o que elas realizam por participação nesse Bem", </i>ensina Ficino. O <i>Bem, </i>então, não é pensado aqui no sentido <i>moral</i>, mas é tomado no sentido <i>ontológico. </i>O bem moral se segue do <i>Bem </i>ontológico, fundamento de tudo. O <i>Bem</i> é a realidade quando encarada como algo desejável. E nada pode ser mais desejável do que o Princípio último de todas as coisas desejáveis. </p><p style="text-align: justify;">Como dito acima, o <i>Bem </i>é a fonte de todas as coisas e, por isso, consequentemente, está acima de todas elas e não possui quaisquer das limitações que caracterizam as coisas. Nesse sentido, é possível dizer que o <i>Bem </i>é <i>Não-Ser, e </i>que é <i>Não-Mente. </i>Então, o <i>Bem </i>não existe e não pensa? Para compreender esse ponto, é preciso retornar ao princípio do <i>discurso apofático, </i>isto é, <i>afirmar a perfeição para negar a imperfeição, e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição.</i></p><p style="text-align: justify;">Ao tratar do Princípio Absoluto de todas as coisas, a linguagem utilizada não deve afirmar alguma imperfeição, como dizer que o Princípio Absoluto é inexistente. Alternativamente, tampouco é adequado afirmar que o Princípio Absoluto é existente. No primeiro caso, atribui-se uma falta, uma privação. No segundo, afirma-se uma perfeição. Porém, é uma perfeição <i>limitada. </i>Se é errado dizer que o <i>Bem </i>é inexistente (por se tratar de uma privação), por outro lado, é inadequado dizer que o <i>Bem </i>é existente (na medida limitada em que, por exemplo, uma maçã é existente).</p><p style="text-align: justify;">Então, quando se afirma que o <i>Bem </i>é <i>Não-Ser, </i>o que se deseja expressar é a absoluta transcendência do <i>Bem</i>, e não a sua inexistência. Decerto o <i>Bem </i>existe<i>, </i>mas em uma razão tão transcendente que, de certo modo, seria mais correto dizer que o <i>Bem</i> é <i>Não-Ser</i>, a fim de que as limitações próprias dos seres não lhe sejam atribuídas. A negação aqui não tem o papel de indicar uma insuficiência ou uma ausência, mas, ao contrário, indica a absoluta transcendência com relação a todas as coisas, quaisquer que elas sejam.</p><p style="text-align: justify;">O <i>Bem </i>dá origem a tudo e abraça tudo, das mais sublimes realidades até às mais humildes, como o Sol ilumina tudo o que alcança. Todos os entes existem por causa do <i>Bem</i> e, cada um a seu modo, deseja e busca o <i>Bem. </i>Os seres intelectuais, buscam por meio do intelecto, os seres irracionais buscam por sua vida, os seres inanimados buscam por sua mera existência. Em todos os casos, os entes existem por causa do <i>Bem </i>e permanecem na existência na medida em que estão "voltados" ao <i>Bem.</i></p><p style="text-align: justify;">Não é necessário entender isso em termos literais, como se uma pedra tivesse desejo tal qual um ser humano deseja algo. A pedra tem a sua existência graças ao <i>Bem. </i>De certa forma, ela "sai" do <i>Bem </i>para a existência. Mas a pedra não se torna ontologicamente autônoma, como se pudesse existir sem mais nenhuma relação com o <i>Bem. </i>Ela precisa estar continuamente sustentada na realidade pelo <i>Bem, </i>o que, em certo sentido, significa que a pedra está sempre "voltada" para o <i>Bem. </i></p><p style="text-align: justify;">Analogamente, um objeto amarrado a uma corda presa no teto permanece suspenso somente pelo tempo em que a corda o sustenta. Ele está <i>dependurado </i>(pendendo de), isto é, dependendo da corda para permanecer suspenso. Nesse sentido, a dependência tem duas "direções": ela "desce" do teto até o objeto pela corda, e "sobe" do objeto até o teto pela corda. O teto sustenta o objeto de cima para baixo, mas o objeto precisa estar ligado ao teto pela corda para que esteja suspenso. Trata-se de um só e mesmo fenômeno enxergado de dois modos diferentes. </p><p style="text-align: justify;">No fundo, o que Dionísio deseja expressar é a absoluta <i>dependência ontológica</i> das coisas com relação ao <i>Bem. </i>Há como um <i>circuito,</i> a "saída" e o "retorno" simultâneos das coisas ao <i>Bem</i><i>. </i>A existência das coisas jamais significa uma separação absoluta do <i>Bem, </i>uma vez que sua permanência na existência só pode se dar pela ação contínua do <i>Bem. </i>Semelhante ao movimento circular de um objeto que, embora distanciado do seu centro, jamais se separa totalmente do centro adquirindo uma trajetória independente.</p><p style="text-align: justify;">O <i>Bem</i><b style="font-style: italic;"> </b>é igualmente chamado de <i>Beleza. </i>O que poderia ser mais belo do que o Princípio de onde todos os entes provêm? Platão, no <i>Timeu, </i>afirma que tudo o que é um artista deriva de um modelo consistente é belo. A beleza do cosmos indica, então, a sua imitação de um modelo que é eternamente consistente. O Demiurgo, autor da ordenação do Cosmos, imita as Formas eternas, e dá existência às coisas. O <i>Bem </i>é o modelo ao qual todos os entes imitam, cada um na sua medida.</p><p style="text-align: justify;">Ao fim e ao cabo, diz Dionísio, é o <i>Bem, </i>enquanto <i>Belo, </i>que <i>"causa as harmonias, as simpatias e as comunidades de todas as coisas". </i>O <i>Belo </i>reúne e ordena, mantém os entes na existência, é o fim (telos, τέλος) de tudo o que há e pode haver. Ele é <i>paradigmático </i>(πᾰρᾰδειγμᾰτῐκόν), o modelo de onde todas as coisas adquirem seus limites próprios. Dionísio ousadamente afirma que mesmo o <i>Não-Ser</i> é belo, quando se refere ao <i>Bem </i>enquanto princípio absolutamente transcendente.</p><p style="text-align: justify;">O <i>Belo </i>é o poder harmonizador de todas as coisas, realiza a coordenação universal, reúne por ligações eternas as misturas dos elementos. Proclo, comentando o <i>Timeu, </i>afirma que Atena possui um aspecto <i>filosófico </i>e um aspecto <i>filopolêmico. </i>Pelo aspecto <i>filosófico</i>, a deusa realiza a virtude, que está na ordem do formal. Pelo aspecto <i>filopolêmico</i>, ela realiza a harmonia entre os contrários no mundo. A <i>polêmica </i>(polemos, πόλεμος) é a guerra, a oposição sem conciliação. O <i>Belo, </i>tal qual Atena <i>filopolêmica</i>, é a conciliação daquilo que não estava unido e que não se manteria unido não fosse por sua ação.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: <a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Dion%C3%ADsio%20Areopagita" style="text-align: left;">Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-49664135270706583132024-02-14T16:53:00.000-03:002024-02-14T16:53:44.796-03:00Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo II)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYT9zdCUAnVjZBuiC3QWoc7-OZ2TCm1iDykJ2hoMjRWgJTpUzS9Q6OAQIfk79T__HOYMkilpBov2Wx9j8Ip-7QFVjHE98lvniw2bBlSCWPHt-TloU8E4NDb-DKuiIkn6f89SXsLVjnQLDGyr3o7ySsVyfrjFuF6VlnYhGS7CNf3PhhTrcbRcCu1tytOj7j/s2000/mario-ferreira-dos-santos-e28093-filosofo-e-grande-heroi-do-pensamento-brasileiro-filosofo-brasilero-3.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2000" data-original-width="1414" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYT9zdCUAnVjZBuiC3QWoc7-OZ2TCm1iDykJ2hoMjRWgJTpUzS9Q6OAQIfk79T__HOYMkilpBov2Wx9j8Ip-7QFVjHE98lvniw2bBlSCWPHt-TloU8E4NDb-DKuiIkn6f89SXsLVjnQLDGyr3o7ySsVyfrjFuF6VlnYhGS7CNf3PhhTrcbRcCu1tytOj7j/s320/mario-ferreira-dos-santos-e28093-filosofo-e-grande-heroi-do-pensamento-brasileiro-filosofo-brasilero-3.png" width="226" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Onde há propriedades de alguma coisa, há alguma coisa, onde há unidade há ser, onde há ser há unidade. Um ser, sem unidade, seria um ser que não é o que é. Nesse caso, seria nada."</p><p style="text-align: justify;">MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, <i>"A Sabedoria da Unidade", </i>p. 11</p><p style="text-align: justify;">O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, no início do capítulo II de sua obra matética <i>"A Sabedoria da Unidade", </i>retoma o que foi dito no capítulo precedente (<a href="https://oleniski.blogspot.com/2024/01/mario-ferreira-dos-santos-e-a-sabedoria.html">Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I) (oleniski.blogspot.com)</a>, afirmando que não se pode confundir os diversos <i>logoi </i>da unidade. O <i>logos</i> da unidade em geral (de toda e qualquer unidade) não pode ser confundido com o <i>logos</i> desta unidade (uma maçã, por exemplo), que é um composto (synolon, σύνολο) de uma estrutura eidética (eidos, εἶδος, Forma) e de uma estrutura hilética (hylé, ὕλη, matéria), e nem confundido com a <i>tensão </i>como esforço de coerência entre as partes de um Todo.</p><p style="text-align: justify;"><i>Logos da unidade </i><span style="text-align: left;"><i>≠ Logos</i> <i>desta unidade (composto de estrutura eidética e estrutura hilética) </i></span>≠ <i> Logos tensional (esforço real de coerência)</i></p><p style="text-align: justify;">Todos esses <i>logoi </i>residem no Ser, e este é a atualidade (Ato, aquilo que é) sem deficiência, o Ser Supremo. Não pode haver outro princípio supremo que o Ser, pois tudo o que é, foi ou pode ser reside e tem sua origem no ato de Ser. O Ser é a absoluta simplicidade, dado que tudo o que é múltiplo tem ser, tem realidade. Mas o múltiplo pode se dissociar e se decompor, contudo permanecendo as partes que o compunham como entes no Ser. Assim, para que multiplicidade exista, é preciso que as partes, estando associadas ou dissociadas, tenham realidade, façam parte do Ser.</p><p style="text-align: justify;">O Ser não se multiplica, como se fosse cortado como um bolo em que os pedaços cortados diminuem a quantidade do bolo restante. Ao contrário, a presença do Ser não é quantitativa. Todo o ser que existe, que possui alguma realidade, possui em si mesmo o Ser na sua integralidade como seu fundamento. Da mesma forma, se o Ser está presente em tudo de modo absoluto e simples, não divisões internas no Ser, nem passagem temporal. Ao contrário, são as coisas, ao durarem, ao permanecerem no Ser, que estão no tempo.</p><p style="text-align: justify;">O Ser não sofre mutações ou mudanças, pois como mudaria para algo que não fosse o próprio Ser? Mudaria para o Nada? Mas, o Nada não existe, e nem pode existir, uma vez que o Nada é a absoluta ausência de Ser, seja potencial ou atual.*</p><p style="text-align: justify;">Os <i>logoi </i>são reais, não são invenções da mente humana. Contrariamente aos nominalistas, que restringem os <i>universais</i> à representações mentais, o <i>realismo moderado, </i>que Mário Ferreira esposa, afirma que há um fundamento <i>in re </i>(nas coisas) para os conceitos que concebemos. Se não houvesse esse fundamento, os conceitos seriam meras ficções. E se os conceitos possuem fundamento <i>in re, </i>apontam para alguma <i>positividade, </i>para <i>algo</i> que é um <i>alius </i>(outro), para uma presença que, por conseguinte, nega a ausência de realidade.</p><p style="text-align: justify;">A unidade, diz Mário Ferreira, é <i>clusa </i>(do latim, <i>claudo, </i>tapar, fechar, encerrar), pois ela fecha algo, <i>inclui </i>nela o que é a coisa e <i>exclui </i>aquilo que não é (<i>inclusão </i>e<i> exclusão</i>). Em outros termos, a unidade fecha em si mesma tudo aquilo que é real sobre algo, e, consequentemente, expulsa de si, como o <i>outro </i>(aliud), tudo o que não pertence à sua <i>clausura. </i>Aquilo que a unidade inclui pertence à ela <i>in se, </i>o que implica que não haja divisão interna à unidade.</p><p style="text-align: justify;">O que a unidade inclui é <i>idêntico</i> (<i>idem</i>, no latim; <i>autos, </i>no grego) à ela mesma, e é <i>outro</i> (<i>alter, </i>no latim; <i>allós, </i>no grego) para tudo aquilo que lhe for diferente. Toda unidade, com relação a uma unidade diferente dela, é <i>outra que outra</i>, isto é, não pode ser idêntica a qualquer outra, sendo por isso sempre a <i>outra </i>de uma outra unidade.</p><p style="text-align: justify;">Tudo aquilo que possui alguma positividade, tem algum ser, tem alguma realidade. E, sendo algo positivo, pelo ato mesmo de ser algo real, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. Algo que é <i>X</i>, no ato mesmo de ser <i>X</i>, nega todas as possibilidades de <i>Não-X</i>, sejam elas <i>A, B, C, D</i>, etc. Tudo o que não seja <i>X</i>, será diferente de <i>X</i>, será <i>outro que X. </i></p><p style="text-align: justify;">Só se pode captar aquilo que possui alguma realidade, alguma positividade. A ausência de uma positividade é o <i>não-ser</i>, e este não pode ser captado, dado que não possui em si nenhuma positividade. Quando tratamos de uma <i>ausência, </i>não captamos <i>algo, </i>só fazemos referência à falta de <i>algo. </i>Assim, é somente por referência ao positivo que podemos nos referir ao não-positivo, ao negativo, ao que não é, ao que não existe.</p><p style="text-align: justify;">A <i>divisão </i>ocorre justamente quando há ausência de uma positividade em <i>X </i>que está presente em <i>Y. </i>Por exemplo, basta que percebamos que uma maçã é colorida para sabermos que ela é diferente de um conceito, que não possui cor. Ambos possuem positividade, cada um a seu modo, mas o que está presente em um e ausente no outro é o que os torna diferentes. Só posso distinguir as coisas se encontro nelas alguma <i>diferença, </i>alguma positividade que está presente em uma e não na outra.</p><p style="text-align: justify;"><i>"O que é um é outro que outro, e o mesmo que si mesmo"</i>, afirma o filósofo brasileiro. É preciso ver na fraseologia de Mário Ferreira, que parece somente reafirmar coisas que são óbvias, o esforço de esclarecer, dentro do âmbito da linguagem, o que está no fundamento da própria linguagem. Não à toa, por ser um esforço de reconhecer e de apresentar os <i>fundamentos da realidade, </i>a linguagem parece dar voltas em torno de si, tentando morder a própria cauda como uma serpente.</p><p style="text-align: justify;">Em certo sentido, a <i>identidade </i>é indizível, e todo esforço de dizê-la esbarra em dificuldades imensas. A <i>identidade </i>é tão fundamental que não conseguimos representá-la a não ser pela linguagem do múltiplo. Representamos a <i>identidade </i>pela fórmula lógica <i>A=A. </i>Ocorre que, ao igualarmos um <i>A </i>a outro <i>A, </i>querendo representar a<i> identidade, </i>fazemos uso da <i>diferença. </i>Não obstante, ninguém consegue realmente negar a realidade fundamental da <i>identidade, </i>isto é, o <i>ser isso que se é e não outra coisa.</i></p><p style="text-align: justify;">Como a linguagem depende do Ser e o Ser é unidade, não é de se surpreender que aquilo que é derivado seja, em alguma medida, incapaz de expressar o seu próprio fundamento. Mário Ferreira quer expressar aqui o caráter absolutamente fundamental da <i>unidade. </i>Não é o <i>um </i>que nasce do múltiplo. É o múltiplo que, ontológica e logicamente, é subordinado ao <i>um. </i></p><p style="text-align: justify;">A <i>unidade </i>é também uma <i>estrutura, </i>ou, como Mário Ferreira denomina, uma <i>tectônica. </i>A razão disso já foi exposta anteriormente. A <i>unidade</i> pode ser composta interiormente, isto é, compreender em si um conjunto de positividades, ou pode ser absolutamente simples. A <i>unidade</i> absolutamente simples corresponde ao Ser, cuja simplicidade decorre do fato de que nada há que seja oposto ao Ser, ou diferente dele, enquanto fundamento de tudo o que é e pode ser.</p><p style="text-align: justify;">A <i>unidade </i>é composta interiormente quando reúne em si as positividades essenciais de um certo ente. Toda maçã possui as mesmas características (cor, cheiro, tamanho, sabor, etc.) que, embora sejam diferentes entre si, compõem uma <i>unidade</i> que é mais do que a soma dessas características, e se constitui em um Todo. Embora múltiplo internamente, o Todo é <i>Um, </i>uma <i>unidade </i>indivisa, invariável e coerente. </p><p style="text-align: justify;">Mário Ferreira mostra que há aqui cinco esquemas fundamentais:</p><p style="text-align: justify;">1) Ser, que é positividade, afirmação positiva;</p><p style="text-align: justify;">2) Não-ser, recusa de positividade, negação;</p><p style="text-align: justify;">3) Unidade, que é <i>indiviso in se </i>e <i>divido ab alio, </i>isto é, indiviso em si e distinto de outro;</p><p style="text-align: justify;">4) Divisão <i>idem et alter, </i>o si mesmo e o outro;</p><p style="text-align: justify;">5) Multiplicidade, que é o outro que outro.</p><p style="text-align: justify;">Note-se como esses esquemas se encadeiam do fundamental até o fundamentado. Em primeiro lugar, há que haver a <i>positividade. </i>Algo deve ter presença, ou, de acordo com o que o princípio da <i>Filosofia Concreta </i>afirma, <i>algo há. </i>A primeira evidência insofismável é que alguma coisa existe. Seja o que for essa coisa que existe, ao existir, afirma-se a si mesma, e, por isso mesmo, nega tudo o que não é ela ou poderia não ser ela. Desse modo, ao ser <i>X</i>, exclui-se ontológica e logicamente tudo o que é não ser <i>X.</i></p><p style="text-align: justify;">Não ser <i>X </i>é negar a positividade de <i>X,</i> ou seja, significa não possuir em si mesmo todas as positividades que caracterizam <i>X. </i>Nada impede que haja coincidência parcial, que um <i>não-X </i>possua algumas das positividades de <i>X. </i>Mas pelo próprio fato de que não há coincidência total, algo está ausente em <i>não-X </i>que está presente em <i>X. </i></p><p style="text-align: justify;">Havendo <i>X, </i>afirma-se uma <i>unidade</i>, e é enquanto <i>unidade </i>que <i>X </i>se distingue de <i>não-X. </i>Considerado como um <i>Todo, X </i>é indiviso em si. Sendo indiviso como uma <i>unidade de composição</i>, <i>X </i>necessariamente está dividido (é diferente) de toda outra <i>unidade de composição </i>que não seja <i>X. </i>Ele é <i>idem </i>para si e <i>alter </i>para outro. A multiplicidade, portanto, só pode ter o seu fundamento na <i>unidade, </i>dado que aquilo que é positivo em uma <i>unidade</i> e que está ausente em outra é que determina a <i>divisão.</i></p><p style="text-align: justify;">Toda <i>divisão</i> está ligada ao <i>não-ser relativo, </i>ou seja, ao fato de que toda ausência é relativa a uma positividade. A <i>unidade, </i>contudo, pode ser <i>absoluta, </i>uma vez que o Ser é a <i>unidade simples </i>que reúne em si toda e qualquer positividade sem nenhuma diferença.</p><p style="text-align: justify;"> ...</p><p style="text-align: justify;">* Para uma discussão mais detalhada da unidade absoluta do Ser, recomenda-se a leitura das obras <i>"Filosofia Concreta" </i>e <i>"Filosofia da Crise". </i></p><p style="text-align: justify;"> ...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Sabedoria%20da%20Unidade">Νεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-28927095183719643292024-02-10T12:19:00.000-03:002024-02-10T12:19:33.627-03:00Aristóteles, Física e o conceito de natureza<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEHCkCQp3UfO_kEL6ltiy8DcUJSsZTkRpQJQQi3fw_dwoca646GxFYu1wlwv6eGoFGsKiBEK-zkW5Z-9Wu7x14BxRU-SCt5kZ2kUb2p-shMUOetKbyNiz_uDICikzVKUozeXHi0JhU7Sf5hOEYBG8dBVeyxqzjc-6OsS1C1M9DdDgByrR7djIbFReoTj8l/s388/(Venice)_Aristide_-_Francesco_Hayez_-_gallerie_Accademia_Venice.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="388" data-original-width="300" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEHCkCQp3UfO_kEL6ltiy8DcUJSsZTkRpQJQQi3fw_dwoca646GxFYu1wlwv6eGoFGsKiBEK-zkW5Z-9Wu7x14BxRU-SCt5kZ2kUb2p-shMUOetKbyNiz_uDICikzVKUozeXHi0JhU7Sf5hOEYBG8dBVeyxqzjc-6OsS1C1M9DdDgByrR7djIbFReoTj8l/s320/(Venice)_Aristide_-_Francesco_Hayez_-_gallerie_Accademia_Venice.jpg" width="247" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Seria absurdo tentar provar que a natureza existe, pois é evidente que há muitas coisas desse gênero. E provar o que é evidente por meio do inevidente é a marca do homem incapaz de distinguir o que é certo daquilo que é incerto."</p><p style="text-align: justify;">ARISTÓTELES, <i>Física, </i>livro II, parte 1, 193a</p><p style="text-align: justify;">No âmbito da <i>Física</i>, das coisas que existem, algumas existem por natureza e algumas por outras causas. Aristóteles, já no início do livro II, apresenta sua distinção fundamental entre aquilo que é natural e aquilo que é artificial. Entes que existem por natureza, são, por exemplo, os animais as plantas e os corpos simples (terra, fogo, ar e água). O que reúne todos esses entes é o fato de eles possuem <i>"dentro de si"</i> o princípio de suas mudanças e de seu repouso (local, de crescimento, decréscimo ou alteração).</p><p style="text-align: justify;">O animal move a si mesmo, a planta cresce por si mesma, o fogo se dirige para o alto, assim como a terra se dirige para baixo. Em todos esses casos, não há nenhuma interferência externa para que essas operações aconteçam. Elas nascem, por assim dizer, <i>"de dentro"</i> desses entes sem que nenhuma ajuda exterior seja necessária. Isso significa que as operações de um ser natural se devem exclusivamente a tendências intrínsecas àquele ser, e que variam segundo o tipo de ser que ele é.</p><p style="text-align: justify;">As chamas do fogo, não havendo obstáculos, sempre sobem. Uma pedra, se retirada do chão e depois deixada a si mesma, desce na direção do solo. As plantas crescem e se nutrem. O animal, além de crescer e se nutrir, também se locomove e possui apetite. Todas essas operações acontecem como manifestação de uma tendência que é interior a esses entes. Nenhuma delas é produto da ação causal de um ser externo agindo sobre eles.</p><p style="text-align: justify;">O traço definidor daquilo que é <i>natural</i> é justamente esse caráter <i>intrínseco </i>das operações típicas dos entes naturais. Em outro sentido, a <i>natureza </i>de um ser define o conjunto de potencialidades que ele possui simplesmente por ser aquele tipo de ser. A planta possui um conjunto definido de características que lhe pertencem simplesmente por ser <i>planta. </i>Ela só pode realizar aquilo que está contido na sua natureza. A planta pode crescer, mas não pode voar.</p><p style="text-align: justify;">A natureza, então, é <i>"a fonte ou a causa de ser movido e de estar em repouso naquilo que pertence a ele primariamente, em virtude de si mesmo e não em virtude de um atributo concomitante". </i>O ente natural tem em si mesmo, não em outro, o poder de mudar. Uma mesa, <i>au contraire, </i>não possui o poder de mudar por si mesma. Aliás, o seu próprio vir a ser, isto é, sua vinda à realidade, se dá justamente pela ação transitiva de uma causa que lhe é externa, o carpinteiro, que junta partes materiais independentes segundo um plano ou uma ideia que é externa e sem relação com o material empregado. </p><p style="text-align: justify;">Obviamente, as coisas naturais também possuem causas externas. Um animal só vem à realidade pela ação causal de seus progenitores. O fogo tem que ser aceso por alguém ou por algo. O ponto de distinção entre o natural e o artificial reside na espontaneidade intrínseca e regular da mudanças que o ser natural apresenta. A distinção não está em ter ou não uma causa para a sua existência, mas, sim, no tipo de ser que o ente natural é.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles acrescenta que o ser natural é uma <i>substância </i>(οὐσία), aquilo que, <i>groso modo, </i>existe por si mesmo e não em outro. O ser natural possui nele mesmo o seu <i>"princípio ordenador",</i> que define o <i>tipo de ser que ele é. </i>A natureza, consequentemente, além de ser um princípio intrínseco, define <i>o que é a coisa. </i>Por isso, perguntar sobre a natureza de algo é perguntar <i>o que é </i>a coisa. Saber o que é uma coisa é saber um conjunto essencial de características fixas que são intrínsecas a essa coisa e que permitem identificar ou antecipar as capacidades e as incapacidades que se seguem desse conjunto.</p><p style="text-align: justify;">Em seguida, o filósofo macedônio afirma que o termo <i>"de acordo com a natureza" </i>é aplicado a todas as coisas e atributos que pertençam a elas <i>em virtude do que elas são. </i>Por exemplo, a propriedade das chamas do fogo de subir em direção ao céu é algo <i>de acordo com a natureza</i>, pois é intrínseca ao fogo, sendo uma de suas características típicas. </p><p style="text-align: justify;">Note-se que uma cadeira também é definida por um determinado <i>"princípio ordenador" </i>que a define como uma <i>cadeira. </i>O ponto é que, antes de ser uma cadeira, havia uma matéria (seja ela qual for) que, por si mesma, não tinha a característica de ser <i>cadeira. </i>Um pedaço de madeira, sendo algo natural, tem as propriedades típicas de toda e qualquer porção de madeira. Mas nenhum pedaço de madeira tem a capacidade de se tornar uma cadeira exclusivamente por seus meios<i>. </i></p><p style="text-align: justify;">Enquanto madeira, tornar-se uma cadeira <i>por si mesma</i> não está entre as suas capacidades <i>naturais. </i>Decerto, a madeira possui a <i>potencialidade</i> de ser moldada como uma cadeira. Existe nela uma <i>moldabilidade </i>natural<i> </i>que permite que certas mudanças (algumas, não todas) sejam realizadas nela por um agente externo. Mas ela, sozinha, espontaneamente e de forma regular, jamais se torna uma cadeira. O ato de ser uma cadeira é imposto na madeira por um agente externo, fazendo-a assumir uma forma que ela jamais assumiria por sua própria capacidade.</p><p style="text-align: justify;">Um embrião humano, apesar de ter tido causas externas (seus pais), desenvolve-se completamente independente de seus progenitores na direção fixa e regular de um ser humano completo. As mudanças que sofre são internas, são diferenciações que acontecem dentro do organismo segundo um princípio ordenador que lhe é intrínseco, e que manifesta o tipo de ser que ele é. O desenvolvimento de um feto humano difere do de um feto de pato. </p><p style="text-align: justify;">Em ambos os casos, contudo, o que se está formando não é fruto da imposição externa de uma forma à uma matéria que, por si mesma, não teria aquela forma imposta de fora. A cadeira é o produto da junção de partes materiais já existentes e que são unidas segundo o plano de um agente exterior. O embrião se desenvolve pela diferenciação interna dos órgãos que se formam espontaneamente segundo um plano que é intrínseco ao próprio embrião, e que manifesta assim a sua <i>natureza.</i></p><p style="text-align: justify;">É inegável que existam <i>naturezas</i>, afirma Aristóteles. Seria absurdo tentar provar o que é evidente, e quem exige uma prova desse tipo de coisa não sabe distinguir entre o que é evidente e o que não é. Um homem cego pode muito bem falar sobre cores como quem fala sobre palavras sem conhecer o seu significado. Ninguém pode consistentemente negar a existência de naturezas. Basta olhar para o mundo para se ter a certeza de que há coisas naturais.</p><p style="text-align: justify;">Alguns pontos podem ser salientados nesse ponto. O primeiro e óbvio é que Aristóteles não está afirmando que tudo é natural. Basta que haja alguma coisa natural para que a sua afirmação seja verdadeira. O segundo ponto é que, para o físico, cujo objeto de estudo é o natural, não pode haver dúvida de que existem entes naturais. Uma ciência, qualquer que ela seja, tem como primeira exigência a identificação da existência de seu objeto de estudo. Se não houvesse natureza, não haveria Física como uma ciência.</p><p style="text-align: justify;">O terceiro é que a existência de naturezas é evidente pela <i>experiência </i>(ἐμπειρία, empeiria), isto é, é um fato <i>empírico</i>. Negar as naturezas seria negar a experiência direta do mundo e de nós mesmos. Ninguém em sã consciência espera que a água na panela congele sob o fogo ou que do embrião humano resulte uma girafa. É fato que os resultados esperados naturalmente nem sempre acontecem por conta da ação de fatores intervenientes. O embrião de um gato, por diversos motivos, pode se desenvolver insuficientemente ou defeituosamente.</p><p style="text-align: justify;">Perceba-se, no entanto, que só conhecemos o insuficiente, o defeituoso, o imperfeito e a exceção graças ao conhecimento prévio do comportamento regular. Em si mesma, a exceção não pode ser conhecida a não ser pelo conhecimento prévio da regra, isto é, ela supõe a regra. </p><p style="text-align: justify;">O fundamento primeiro da <i>Física</i> como ciência (e de todas as ciências naturais), é a existência daquilo que é <i>natural</i>, que, como Aristóteles aponta, <i>"acontece sempre ou na maior parte das vezes"</i>. Negar a existência da <i>natureza</i> é negar a possibilidade da própria ciência. Como pode haver ciência deste mundo sensível e empírico se não houver a mínima <i>ordem, </i>a mínima <i>previsibilidade</i>? A existência das naturezas não é uma descoberta da ciência, mas é seu <i>pressuposto</i> mais básico. </p><p style="text-align: justify;">Recordando a definição de Aristóteles, ciência (epistēmē, ἐπιστήμη), é tudo aquilo que se deriva a partir de princípios (que não são, eles mesmos, derivados de outros princípios). Cada ciência tem seu objeto de estudo, e, portanto, tem seus princípios próprios correspondentes a seu objeto. Contudo, o princípio de toda e qualquer ciência empírica é o reconhecimento da existência das <i>naturezas. </i>Uma ciência não pode provar a existência de seu objeto de estudo, ela <i>reconhece como evidente a sua existência.</i></p><p style="text-align: justify;">Um físico não pode provar, com os meios da <i>Física, </i>que as coisas têm naturezas. Seria como alguém querendo sair da água puxando os próprios cabelos. A <i>Física </i>só pode se instalar como ciência no reconhecimento prévio da existência de seu objeto de estudo: a <i>natureza. </i>Precedendo o trabalho científico está a evidência empírica direta e inegável do seu objeto. </p><p style="text-align: justify;">Portanto, a <i>regularidade natural </i>é o princípio indemonstrável a partir do qual toda a ciência física vai ser erigida. <i>"Indemonstrável", </i>no presente contexto, significa aquilo que não necessita de demonstração ou de prova por ser sabidamente verdadeiro ou autoevidente. Negar a natureza seria negar a previsibilidade dentro do mundo. Não somente das coisas exteriores, mas também de nós mesmos. </p><p style="text-align: justify;">Imaginar que as maçãs podem amanhã não ser mais doces não parece ser tão problemático. Outra coisa bem diferente é imaginar que todos os comportamentos regulares de todas as coisas naturais podem amanhã mudar, e depois disso mudar de novo incessantemente. Negar a regularidade natural é negar qualquer previsibilidade, inclusive a de nosso corpo. Se não há regularidade, então nada impede que no próximo segundo meu próprio cérebro deixe de funcionar como tem funcionado até hoje.</p><p style="text-align: justify;">Eis um ponto interessante, pois a <i>conditio sine qua non </i>das ciências naturais, quaisquer que elas sejam, é o reconhecimento da existência daquilo que é <i>extra-científico</i>, isto é, do que está fora do âmbito da própria ciência. Nenhum cientista pode provar, com os dados e os métodos de sua ciência, que haverá sempre uma regularidade natural. Ou bem isso é assumido como verdadeiro ou bem não há ciência empírica. </p><p style="text-align: justify;">Se a existência de naturezas for assumida como uma <i>hipótese, </i>então, logicamente, tudo o que a ciência diz sobre o mundo será meramente <i>hipotético. </i>Entretanto, dessa forma, seria impossível explicar por qual razão as coisas naturais se comportam de modo regular. Se não há nada que seja intrinsecamente regular, nenhuma explicação será possível para nada no mundo, dado que explicar algo cientificamente é identificar as suas causas. E causas irregulares não explicam cientificamente nada.</p><p style="text-align: justify;">Mesmo David Hume, do alto de seu ceticismo acerca da regularidade natural, foi incapaz de encontrar outra explicação para a nossa tendência de esperar regularidade no comportamento das coisas que não fosse algo também regular, a saber, o <i>hábito. </i>Se é o <i>hábito </i>que explica que nós sempre esperamos regularidade no comportamento das coisas, então essa explicação repousa sobre a suposição do efeito regular do próprio <i>hábito </i>como uma <i>tendência natural</i> de formar certas convicções<i>. </i>A explicação supõe exatamente aquilo que ela deveria explicar.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles segue a sua exposição asseverando que alguns identificaram a <i>natureza </i>ou a <i>substância </i>de um ente natural com o seu constituinte imediato. Por exemplo, o bronze seria a natureza da estátua e a madeira a natureza da cama. A favor dessa visão, Antífon observava que se alguém enterrasse uma cama de madeira, e se algo dela viesse a nascer, seria uma árvore e não uma cama. O que mostraria que o arranjo feito pelo artista seria meramente acidental, enquanto a madeira, a sua natureza, seria o elemento permanente.</p><p style="text-align: justify;">Dessa forma, alguns defenderam que o constituinte <i>material</i> é a natureza da coisa. Os primeiros físicos identificaram a natureza com a matéria da qual todas as coisas seriam feitas. Aristóteles refere-se à tradição pré-socrática de identificar a <i>physis, </i>a natureza, com algum elemento primordial (terra, água, ar, átomos, etc.) e encarar todas as coisas que se apresentam aos nossos sentidos como modificações e estados desse elemento primordial.</p><p style="text-align: justify;">Poderíamos denominar esse gênero de explicação de <i>materialismo, </i>uma vez que toda a diversidade e todas as operações das coisas dentro do mundo seriam derivadas da matéria da qual elas são feitas. O que equivale a dizer, o fim e ao cabo, que todas as coisas que testemunhamos (e nós mesmos) não são nada mais do que o material do qual são constituídas (seja esse material qual for). </p><p style="text-align: justify;">Não é difícil reconhecer aqui uma tendência bastante presente na ciência moderna, qual seja, a tentativa de explicar a realidade física pela mera interação das porções de matéria de acordo com suas propriedades básicas. A concepção do que é a matéria pode variar (corpúsculos, pura extensão, etc.), mas a ideia geral é a mesma: tudo o que se pode conhecer e tudo o que é necessário para explicar os fenômenos naturais reside nas propriedades básicas da matéria.</p><p style="text-align: justify;">A questão, contudo, é saber o que é mais primordial para a coisa <i>ser o que ela é. </i>O que faz com que uma coisa seja uma <i>cadeira</i>? Acaso é o fato de ser feita de madeira? Fosse assim, não haveria distinção real entre um armário, uma mesa e uma cadeira feitos de madeira.<i> </i>Que isso é absurdo ninguém duvida. Uma cadeira é <i>realmente </i>distinta de uma mesa, ainda que ambas sejam feitas de madeira. Mais do que isso, aquilo que explica o que é uma <i>cadeira </i>não é o seu material, pois é fato que ela pode ser feita de vários materiais: plástico, metal, etc.</p><p style="text-align: justify;">A distinção entre uma mesa e uma cadeira não está em nenhuma qualidade ou propriedade da madeira, do plástico ou do metal do qual elas são feitas. Assim como a estátua não pode ser explicada por qualquer característica do bronze do qual ela é feita. Um Apolo não pode ser reduzido a quaisquer das propriedades do bronze do qual foi feito. É claro que o material pode ser adequado ou inadequado para produzir a estátua, mas isso explicaria somente a razão pela qual foi utilizado este material e não aquele para a sua produção.</p><p style="text-align: justify;">Vê-se que, ainda que se trate de artefatos (objetos que devem sua existência ao desígnio de um artífice), o elemento que determina o que a coisa é não reside na matéria da qual ela é feita. O que distingue uma cadeira de uma mesa é o <i>tipo </i>de coisa que ela é, e não aquilo do qual é constituída. Isso não significa que o elemento material seja desimportante ou dispensável. Significa apenas que aquilo que torna uma coisa o que ela é, a sua <i>substância, </i>não se encontra na matéria.</p><p style="text-align: justify;">A tentação de explicar tudo pela matéria constituinte das coisas decorre da percepção errônea daquilo que são as coisas primordialmente. Se é inegável que a matéria é um elemento indispensável para a explicação de diversos aspectos das coisas deste mundo, é igualmente verdade que ela é incapaz de explicar tudo o que essas coisas são. Ou melhor, a matéria é insuficiente para explicar <i>o que são </i>essas coisas. A pergunta <i>"o que é isso?" </i>não é respondida pela indicação do material do qual as coisas são constituídas.</p><p style="text-align: justify;">Então, qual é o elemento que explica o que são as coisas? Se tomamos uma cadeira, o que explica o fato de que se trata de uma cadeira é o seu <i>princípio de ordenação </i>que foi imposto à matéria por um artífice consciente. É o elemento <i>formal, </i>isto é, a <i>Forma </i>(εἶδος, eidos, em grego) que torna a coisa o que ela é. Uma cadeira tem uma <i>Forma </i>diferente de uma mesa, apesar de ambas serem feitas de madeira. É bom que se diga que <i>Forma </i>não se refere somente ao <i>formato </i>exterior<i> </i>da coisa, mas, primordialmente, à ordenação da coisa segundo uma regra.</p><p style="text-align: justify;">No caso dos artefatos, a ordenação vem de fora, é <i>extrínseca</i>. Nos entes naturais, a ordenação vem de dentro, é <i>intrínseca. </i>Um cavalo, um ser humano e um pinguim são todos, no fim das contas, constituídos pelo mesmo tipo de matéria fundamental (ossos, músculos, sangue, ou algo ainda mais fundamental, seja o que for), mas o que os diferencia é o <i>tipo </i>de ser que cada um é. A distinção se encontra no âmbito <i>formal</i>, e é isso que determina a <i>natureza </i>de cada um deles.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles conclui que a natureza está antes na <i>Forma </i>do que na <i>matéria. </i>O homem nasce do homem, mas a cama não nasce da cama. Isso se deve ao fato de que a cama é construída de fora por um artífice. A sua <i>Forma </i>não lhe é intrínseca, ela é imposta, implantada em uma matéria já existente. Já no ser humano, a <i>Forma </i>determina o que é o ser humano desde o seu início, intrinsecamente, de modo que a matéria e a <i>Forma </i>vêm unidas indissoluvelmente em uma única <i>substância.</i></p><div style="text-align: justify;">A <i>natureza </i>se manifesta no crescimento do ente natural. Aristóteles usa um exemplo curioso para distinguir esse desenvolvimento natural daquilo que é artificial. A arte da medicina conduz não a ela mesma, mas à saúde. Isto é, a arte da medicina, como qualquer arte, conduz a um objetivo distinto dela mesma. O médico não trata o paciente para alcançar a arte da medicina. O médico utiliza a medicina como meio para um fim outro, a saber, a reconstituição da saúde do paciente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A arte se define como um raciocínio reto na produção de algo<i>,</i> um meio para alcançar um fim. A natureza, por outro lado, não persegue objetivos externos à ela mesma. O crescimento, ou desenvolvimento, de algo natural não tem um fim externo. O ente natural se desenvolve, por assim dizer, <i>para se tornar o que ele é. </i>Ou seja, ao se desenvolver, ou ao operar, o ente natural manifesta exatamente aquilo que ele é. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ato de desenvolvimento não se dá na direção da qual ele iniciou, mas sim na direção à qual a coisa tende. A planta, por exemplo, cresce e se desenvolve para se tornar plenamente uma planta. Todas as potencialidades que ela vai atualizando realizam o que significa ser uma planta. O objetivo final, se assim podemos dizer, é a própria planta, e não a produção de algo externo à ela (como na arte). A <i>natureza</i> constitui <i>o que é a coisa</i>, e por isso <i>rege </i>o seu desenvolvimento e as suas operações. A coisa natural tende a realizar a sua regra interna.</div><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-34083962153181628472024-02-06T12:04:00.000-03:002024-02-06T12:04:43.481-03:00Huang Po, budismo, o ordinário e o extraordinário<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjp85xj5-jOW14i0nZuY75rcJVysC-etGekdqXJNOISY92rwhRZpoAyKNACEuavdk20ghk8kmZ1gE71keppl6_hMgBTGVlbGS62vstmsFQsAN0EtbjsevoRgJcJ-qgbcU88Iyt8eYebH2SU2bb1r7BkJuauuCIJaXvU752Saykn_4QuWe3l72nq2ODo-k1m/s805/R%20(1).jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="805" data-original-width="604" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjp85xj5-jOW14i0nZuY75rcJVysC-etGekdqXJNOISY92rwhRZpoAyKNACEuavdk20ghk8kmZ1gE71keppl6_hMgBTGVlbGS62vstmsFQsAN0EtbjsevoRgJcJ-qgbcU88Iyt8eYebH2SU2bb1r7BkJuauuCIJaXvU752Saykn_4QuWe3l72nq2ODo-k1m/s320/R%20(1).jpg" width="240" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span style="text-align: left;">"Ordinário e extraordinário são indistintos. Tudo é perfeito!"</span></div><p></p><p style="text-align: justify;">SENGZHAO (384/414 D.C.)</p><p style="text-align: justify;">O grande mestre budista Ch'an chinês do século IX D.C., Huang Po, exortava seus discípulos a distinguir o que era o espírito ordinário e o que era o espírito extraordinário. Vendo, porém, que estes não compreendiam suas palavras e que, com isso, tornavam o vazio algo concreto, o sábio insistia sobre o fato de que no momento que eles não tivessem mais "sentimentos ordinários sobre o extraordinário" não haveria mais <i>Buddha</i> a não ser em seus espíritos.</p><p style="text-align: justify;">O problema era que os discípulos se apegavam aos conceitos mesmos de ordinário e de extraordinário, e, assim, afastavam-se cada vez mais do espírito. Em um só instante em que prevalecesse uma emoção, cairia o discípulo em um outro destino. Os aprendizes insistem querendo saber o princípio pelo qual desde sempre o espírito é o <i>Buddha</i>. E o mestre responde que não é nada que, ao buscá-lo, o buscador se distinga dele.</p><p style="text-align: justify;">Mas, se não há distinção, por que o mestre usa a cópula "é"? Huang Po responde que se os discípulos não discriminam entre o ordinário e o extraordinário, quem usa a cópula? Quando tiverem os discípulos esquecido tudo o que concerne ao espírito, onde eles ainda o buscarão?</p><p style="text-align: justify;">Huang Po parece brincar com o conceito de distinção do extraordinário e do ordinário, ora exortando os discípulos a realizarem essa distinção, ora criticando-os por realizarem essa distinção. O discurso do mestre, contudo, se encontra em dois níveis. No nível humano, ou melhor, no nível da realidade fenomênica, há diferença entre a experiência ordinária e a experiência extraordinária do <i>Boddhisattva. </i>Ninguém negaria que a experiência do <i>Buddha Sakyamuni </i>difere daquela do homem comum, submetido como está ao ciclo do <i>Saṃsāra.</i></p><p style="text-align: justify;">Não obstante, do "ponto de vista" do <i>espírito puro</i> (que não é um ponto de vista, posto que é absoluto), as distinções mesmas de ordinário e extraordinário perdem o seu sentido. Todavia, o apego a essas formas duais de pensamento, por válidas que sejam no plano fenomênico da experiência comum, entravam a verdadeira compreensão do <i>espírito puro</i> (que é o próprio <i>Buddha</i>, para além de toda e qualquer distinção). </p><p style="text-align: justify;">O <i>espírito puro</i>, nesse sentido, não é dizível dentro do vocabulário dual do mundo fenomênico. Sim, o espírito puro não é uma experiência ordinária, e, portanto, se distingue dela pelo seu caráter extraordinário. Mas ao chamar o <i>espírito puro</i> de "extraordinário", arriscamo-nos a torná-lo algo cuja estranheza depende dos parâmetros da experiência ordinária. Ou seja, se o ordinário é o mundo das coisas, o extraordinário será o mundo das coisas fora do comum, mas ainda assim no âmbito das <i>coisas.</i></p><p style="text-align: justify;">Por isso Huang Po acusa os discípulos de transformarem o vazio em "algo concreto", isto é, algo encontrável, semelhante a qualquer coisa da experiência ordinária. Os termos "ordinário" e "extraordinário" são inadequados para descrever o <i>espírito puro</i> justamente porque pertencem à experiência fenomênica. O "ordinário" é o comum, o que sempre acontece da mesma forma. O "extraordinário" é aquilo que foge à regra, o incomum, o que não acontece de modo regular.</p><p style="text-align: justify;">O <i>espírito puro</i>, porém, não é "algo" e nem uma "coisa", seja ela comum ou incomum, ordinária ou extraordinária. Chamar o <i>espírito puro</i> de "extraordinário" é diminuí-lo, é transformá-lo em uma <i>coisa entre outras coisas. </i>Em uma linguagem filosófica, isso significa hipostasiar o que não é um ente de fato. Comumente, o ser humano hipostasia aquilo que não é realmente uma <i>coisa. </i>Por exemplo, quando trata como <i>coisas </i>conceitos abstratos (<i>Nação, Estado, </i>etc.). Nesses casos, dá-se substancialidade àquilo que não é substancial ou àquilo que só existe na dependência de algo substancial.</p><p style="text-align: justify;">O problema é que o <i>espírito puro</i> não é algo que não seja real ou que dependa de algo real. Ao contrário, são as coisas reais que dele têm a sua existência. Desse modo, o <i>espírito puro</i> não pode ser considerado <i>algo </i>por estar abaixo da linha da realidade, mas, sim, por transcender infinitamente todas as <i>coisas </i>do mundo fenomênico. O Princípio não pode apresentar as limitações próprias daquilo do qual ele é o princípio.</p><p style="text-align: justify;">No momento em que os discípulos tivessem abandonado todo "sentimento ordinário sobre o extraordinário", não haveria mais <i>Buddha </i>a não ser em seus espíritos, dizia Huang Po. No momento em que os discípulos ultrapassassem as dualidades do tipo ordinário/extraordinário, não haveria mais diferenças entre o <i>Buddha </i>e eles mesmos. Em outros termos, saberiam que, desde sempre e para sempre, sempre foram o <i>Buddha</i>, pois o <i>Buddha é o espírito.</i></p><p style="text-align: justify;">Ultrapassar o estado das distinções é realizar o estado búdico do qual estamos <i>"separados"</i> somente por ignorância. É realizar a absoluta equanimidade diante de todas as coisas. No entanto, sem apego, sem desprezo e sem negação. Nada é obstáculo se o espírito é livre. Por um lado, tudo é reunido no <i>Buddha</i> sem distinções de qualquer tipo. Por outro lado, nada se destaca como objeto de desejo ou de aversão. A mesma equanimidade do <i>espírito puro</i> que reúne em si todas as coisas distintas. também torna-as todas um vazio indistinto.</p><p style="text-align: justify;">Se em um só instante alguma emoção prevalecesse, diz Huang Po, o discípulo cairia em outro destino. Se uma só coisa se tornasse objeto de atenção especial, de desejo ou de aversão, o discípulo sairia do espírito búdico da unidade absoluta e retornaria ao mundo fenomênico da distinção e das dualidades. Não são duas realidades (o espírito búdico de um lado e o mundo fenomênico do outro), mas uma só e idêntica realidade que só se manifesta em termos de separação por conta da ignorância que nasce do apego a este ou àquele ente ou estado de espírito.</p><p style="text-align: justify;">No limite, até os meios de transmissão e de ensino empregados pelos mestres podem se converter em obstáculos à iluminação. As respostas de Huang Po, do modo como são filtradas pelos anseios e apegos dos discípulos, longe de esclarecerem o caminho, tornam-se fins em si mesmos, ocasiões para a mente se entreter como novos objetos de atenção. Tal qual um prisioneiro que, de posse da chave da porta de sua cela, em vez de abrí-la, se dedica a estudar a chave e suas relações com a fechadura.</p><p style="text-align: justify;">O <i>espírito puro</i> não é algo que, ao buscá-lo, o buscador dele se distinga, ensina Huang Po. Aquele que busca algo é diferente daquilo que ele busca. A unidade fundamental do <i>Buddha </i>não pode ser <i>algo </i>que se busca. Não há, tampouco, qualquer relação "X é Y", na qual X é diferente de Y. Portanto, mesmo o uso da cópula "é" se deve aos limites intrínsecos de nossa linguagem. Se Huang Po usa a linguagem dual do mundo fenomênico, ele o faz somente para indicar aos discípulos a Via (道). </p><p style="text-align: justify;">É preciso que o discípulo não se apegue às limitações da linguagem, e enxergue a realidade suprema para além dos meios usuais de expressão. É a Lua que importa, não o dedo que para ela aponta. Fora do mundo fenomênico das distinções e das dualidades, não resta quem use a linguagem dual. Se os discípulos houvessem ultrapassado a distinção entre o ordinário e o extraordinário, não haveria sequer o mestre a quem fazer suas questões.</p><p style="text-align: justify;">Aliás, não faria sentido sequer formular questões. Não há pergunta onde não há o <i>"outro"</i> que se desconhece. Só há o <i>"mesmo"</i>, eternamente sem diferenças. Quando o discípulo esquecer do próprio espírito (com suas agitações, desejos e aversões), nada restará a ser buscado. Tudo estará ali porque tudo é desde sempre reunido no espírito búdico indiferenciadamente. E, ao fim, nada terá sido encontrado.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)</a><br /></p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)</a><br /></p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: filosofia oriental (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: filosofia oriental (oleniski.blogspot.com)</a><br /></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-62358288830567835082024-01-19T17:04:00.000-03:002024-01-19T17:04:40.789-03:00Aristóteles, Física e o conceito de mudança<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNXYuNw_ek0cvfAW4oDXthRoQsqLFfG7tM6lptGhaCcECec2-mXfAaTqKwlHOl3rTshRMU_f-8Q8P8zNeY2_JrWpCXnQW6islNtHiAXZo1tf1SuwMi1BTu03uvzbjAvynv2MveA2g_l42GQ2EO7T95KiKAJslBezG2GcMYaTKxRv4otp8eDGiG1cDW5Nnf/s945/Article-Page-17.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="498" data-original-width="945" height="211" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNXYuNw_ek0cvfAW4oDXthRoQsqLFfG7tM6lptGhaCcECec2-mXfAaTqKwlHOl3rTshRMU_f-8Q8P8zNeY2_JrWpCXnQW6islNtHiAXZo1tf1SuwMi1BTu03uvzbjAvynv2MveA2g_l42GQ2EO7T95KiKAJslBezG2GcMYaTKxRv4otp8eDGiG1cDW5Nnf/w400-h211/Article-Page-17.png" width="400" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"Podemos definir a mudança como a atualização do móvel enquanto móvel, sendo a sua causa o contato com aquilo que pode mover."</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">ARISTÓTELES, <i>Física, </i>Livro III, 202a [5]</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">No Livro III de sua <i>Física, </i>Aristóteles almeja elucidar o conceito capital de <i>mudança </i>(κίνησις)<i>. </i>O objeto próprio da ciência física são os <i>móveis, </i>isto é, os entes capazes de mudança. Alguns desses entes são <i>naturais, </i>enquanto outros são <i>artificiais. </i>Os entes naturais são aqueles que possuem uma <i>natureza, </i>definida como <i>"princípio de mudança e de repouso". </i>Eles possuem intrinsecamente uma regra de mudança que determina o tipo de ser que eles são. O gato, por exemplo, é um ser natural porque tem em si mesmo um princípio que o diferencia de todos os outros seres, e que se manifesta no desenvolvimento típico do gato, com todas as suas potencialidades características, sejam ativas ou passivas. </div><p style="text-align: justify;">A <i>natureza</i> do gato, nesse sentido, é <i>aquilo que ele é, </i>e, por isso mesmo, não é algo que venha a ele de fora, como se fosse imposto por um ser externo e diferente dele. Ao contrário, o <i>artefato</i>, aquilo que é resultado da produção (ποίησις) e da arte (τέχνη), recebe do artista (extrinsecamente) a sua forma, aquilo que o define. A mesa não nasce naturalmente da madeira. O carpinteiro impõe a forma da mesa na madeira, tornando real uma das suas inúmeras potencialidades. </p><p style="text-align: justify;">Há quatro tipos de <i>mudança</i>: substancial (geração ou corrupção), quantitativa (aumento ou diminuição), qualitativa (perda ou aquisição de uma qualidade) e local (deslocamento de um lugar a outro). Por exemplo, João foi concebido por seus pais (geração substancial), cresceu até 1,70m (quantidade), tornou-se adulto (qualidade), mudou-se do Rio para São Paulo (mudança local) e faleceu (corrupção substancial). Todos esses tipos de mudanças podem acontecer em um mesmo ente material.</p><p style="text-align: justify;">Diferentemente da física do século XVII, Aristóteles admite mais tipos de mudança do que somente o <i>movimento local. </i>Galileu, Descartes (principalmente) e, em certa medida, Newton, definiram a nova física que se circunscreve a descrever matematicamente aquilo que pode ser <i>mensurado </i>nos corpos, em especial as suas características geométricas. Por essa razão, como mostra o filósofo, físico, matemático e historiador da ciência Pierre Duhem, em seu texto <i>L'Évolution des Théories Physiques, </i>um conjunto amplo de fenômenos restou fora do âmbito das explicações físicas:</p><p style="text-align: justify;">"O geômetra não conhece nos corpos senão uma única espécie de modificações, a mudança de figura e de posição no espaço, o <i>movimento local. </i>O físico concebe e analisa um <i>movimento </i>infinitamente mais geral que abraça, em suas diversas formas, toda sorte de mudança na substância e as qualidades dos corpos. Movimento, o movimento local pelo qual os corpos mudam de figura e de posição, mas também o movimento enquanto o ato pelo qual uma qualidade se torna mais ou menos intensa (...), o movimento como a operação pela qual as qualidades se transformam umas nas outras (..), o movimento como aparição e desaparição de uma qualidade (...), o movimento como a combinação que une os elementos simples para formar os mistos." * </p><p style="text-align: justify;">Ao reconhecer esses tipos de mudança, Aristóteles afirma que há algo em comum em todos eles. Resta agora definir <i>o que é </i>a mudança. A mudança só pode ser compreendida a partir de um par de conceitos que se referem a dois modos de toda a realidade: ενέργεια, "energia" (traduzido em Latim como <i>actus, </i>ato) e δύναμις, "dínamis" (traduzido em Latim como <i>potentia</i>, potência). A <i>"energia"</i> (<i>en ergon, </i>"em trabalho", "em exercício") é a realidade primordial, enquanto a <i>"dínamis" </i>só existe na <i>"energia".</i></p><p style="text-align: justify;">No mundo, ensina Aristóteles, existe aquilo que está <i>efetivado </i>(o que já está pronto, realizado), aquilo que está em <i>potência </i>(o que pode ou não se efetivar) e aquilo que existe como <i>potencial </i>e também como <i>efetivo. </i>É fácil compreender que existem coisas que já estão, por assim dizer, <i>prontas. </i>Por exemplo, um vaso que foi moldado pelo oleiro, quando finalizado<i>, </i>é um ente <i>efetivo, </i>e, por isso mesmo, já pode ser usado (pode operar) como um <i>vaso. </i>Do mesmo modo, um órgão no corpo de um animal (por exemplo, o coração), quando chega ao fim de sua formação, já pode operar e cumprir sua função dentro da estrutura do organismo. </p><p style="text-align: justify;">Por outro lado, é igualmente compreensível que há no mundo aquilo que é meramente <i>potencial. </i>O vaso, antes do oleiro moldar a massa, não é mais do que uma potencialidade daquela matéria. O órgão que ainda não se formou é apenas uma potencialidade dentro do organismo. Nada garante que necessariamente o vaso e o órgão efetivar-se-ão na realidade, mas eles só <i>podem</i> se efetivar justamente porque são potencialidades reais.</p><p style="text-align: justify;">A mudança, entretanto, parece ser uma natureza <i>intermediária, </i>não estando totalmente nem do lado do <i>realizado</i> e nem do lado do <i>potencial. </i>Por<i> </i>definição<i>, </i>qualquer mudança tem o caráter de algo que está <i>incompleto</i><i>.</i> Se alguém está indo de um ponto A ao ponto B, necessariamente ainda não está no ponto B. Porém, é igualmente verdade que, ao sair de A na direção de B, alguma extensão já foi percorrida. A mudança tem o caráter intermediário<i> </i>de algo que já alcançou alguma realidade, mas que ainda não se encerrou. </p><p style="text-align: justify;">Nesse sentido, o modo de existência das coisas deste mundo é sempre o de <i>continuidade</i><i>, </i>ou seja, um interregno entre um <i>início</i> e um <i>fim</i>. Esse meio-termo entre o que é potencial e o que é efetivo mostra que, simultaneamente, há nas coisas algo que se realizou e algo que está por ser realizado. A mudança não é somente uma <i>potencialidade</i> e nem somente uma <i>efetividade, </i>é uma <i>mescla </i>entre esses dois pólos. A criança que se tornará um adulto passará por um processo de amadurecimento dentro do qual haverá um intervalo onde ela não será mais uma criança e nem será ainda um adulto. **</p><p style="text-align: justify;">Portanto, a definição de mudança terá que expressar corretamente esse caráter de <i>continuidade</i> e de <i>incompletude. </i>Ninguém diz que algo que permanece o mesmo está em mudança, assim como ninguém diz que algo que chegou ao seu termo está em mudança. Alguém que permanece no ponto A não está em movimento. Alguém que chegou ao ponto B partindo de A não está em movimento. Só está em movimento quem já ultrapassou A e não chegou ainda em B. </p><p style="text-align: justify;">Aristóteles define a mudança como <i>"a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". </i>O aristotelismo medieval definirá a mudança como a <i>"redução da potência ao ato enquanto potência". </i>Descartes, no século XVII, sinceramente ou não, protestava contra a alegada obscuridade e incompreensibilidade dessa definição de mudança. No entanto, a obscuridade é aparente e se desfaz tão logo pensemos sobre a nossa experiência da mudança.</p><p style="text-align: justify;">Segundo dito acima, a mudança não é inteiramente nem potência e nem ato, para utilizar a terminologia escolástica. O potencial não é ainda realidade, não é <i>ser. </i>O que é ato, aquilo que é efetivo e realizado, já é <i>ser, </i>uma realidade. A mudança está a meio caminho do <i>não-ser </i>e do <i>ser. </i>Parece algo fantasmagórico ou mesmo <i>contraditório. </i>Como algo pode a um só tempo existir e não existir? A resposta reside na identificação daquilo que na mudança existe e daquilo que nela não existe <i>ainda. </i></p><p style="text-align: justify;">Obviamente, a mesma coisa não pode existir e não existir ao mesmo tempo e em um mesmo sentido. Ninguém pode estar e não estar no ponto A simultaneamente. Se algo sai do ponto A na direção do ponto B, não está mais em A, mas isso não significa que não esteja em lugar nenhum. Está em algum ponto entre A e B. Qualquer que seja esse ponto, ele é <i>real, </i>embora não seja B. Se o objetivo é chegar em B, então qualquer ponto diferente de A na direção de B será uma distância já percorrida. </p><p style="text-align: justify;">Como o objetivo é B, qualquer distância percorrida antes de B deixa uma outra distância ainda a ser percorrida. Então, existe uma extensão percorrida e uma extensão a percorrer. O que foi percorrido já é uma realidade, o que ainda será percorrido é uma potencialidade. Quando B tiver sido alcançado, não haverá mais mudança. Assim, a mudança é sempre uma potencialidade não completamente realizada, efetivada. </p><p style="text-align: justify;">Voltando à definição de Aristóteles, a mudança é <i>"a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". </i>Isto é, a mudança é uma <i>potencialidade cuja realização não exauriu a potencialidade. </i>É uma potencialidade inesgotada, mas em vias de esgotar-se. Disso se segue que o término de uma mudança é o exaurimento de uma potencialidade. No ponto B, a mudança de A para B está encerrada. No ponto A, a mudança de A para B é apenas uma potencialidade. Em qualquer ponto entre A e B, a mudança é uma potencialidade ainda não completamente realizada.</p><p style="text-align: justify;">Tomás de Aquino, comentando o texto aristotélico, refere-se à mudança como um <i>"ato imperfeito" </i>na medida em que ainda possui uma ordenação a um ato ulterior. Daí, <i>"a mudança não é a potência daquilo que está em potência, nem o ato daquilo que existe em ato. Antes, a mudança é o ato daquilo que está em potência, tal que a sua ordenação à sua potência anterior é designada pelo que é chamado 'ato', e sua ordenação a um ato ulterior é designado pelo que é chamado de 'existindo em potência'". </i></p><p style="text-align: justify;">Note-se que a mudança, em certo sentido, já é uma realização, uma efetivação, um ato, daquilo que somente estava em potência. O termo "realização" traduz aqui ἐντελέχεια, <i>"enteléquia"</i>, o termo utilizado por Aristóteles no texto original grego no sentido geral de algo que alcançou seu termo. Contudo, a mudança só é chamada "realização" (por Aristóteles) ou "ato" (por Tomás) para indicar que a mudança tem <i>realidade </i>somente com referência a um fim que ainda não foi alcançado. É por isso que Tomás pode falar de um <i>"ato imperfeito".</i></p><p style="text-align: justify;">A mudança é ato na medida em que algum estágio ou ponto já foi alcançado, e é imperfeita na medida em que o fim último ainda não foi realizado. A referência da mudança não é simplesmente o afastamento com relação a um ponto inicial. É preciso que esse afastamento seja considerado sob a ótica do fim ainda inalcançado. Certamente, esse fim não precisa necessariamente ser consciente e nem voluntário como é nos seres humanos e, em certa medida, nos outros animais. </p><p style="text-align: justify;">Processos naturais não são conscientes, mas exibem uma constância que manifesta uma tendência intrínseca ou inclinação a certos efeitos. O processo de crescimento de um filhote não é consciente, e mesmo assim exibe uma direção, um <i>sentido, </i>que é inegável. O crescimento das plantas é outro exemplo. Mesmo seres inanimados exibem tendências ou comportamentos constantes. O fogo sobe, queima, esquenta outros seres, etc. A <i>teleologia</i> é um aspecto essencial da ordem, e, em particular, da ordem <i>natural. </i></p><p style="text-align: justify;">A mudança só é identificada na sua essência quando a realização de uma potencialidade não está completa. Será bom esclarecer que, em muitos casos, a potencialidade não é exaurida ou extinta. Se alguém pode sair do ponto A ao ponto B, nada impede que, chegando a B, retorne e refaça o mesmo caminho muitas vezes. Inúmeros outros processos, deliberados ou não, exibem esse padrão. </p><p style="text-align: justify;">Um ponto importante é que a mudança possui uma <i>tendência</i> <i>a ir além do ponto já alcançado. </i>Essa tendência é expressada na definição de Aristóteles justamente na ideia da realização da potencialidade enquanto ainda é potencialidade. Não se trata somente de uma potencialidade que ainda tem potencialidade a ser efetivada no sentido em que uma pessoa que sai do ponto A e estaciona no ponto B pode muito bem prosseguir posteriormente para o ponto C. Nesse caso, porém, são dois movimentos diferentes, duas potencialidades distintas que foram realizadas.</p><p style="text-align: justify;">Testemunhar uma mudança na experiência concreta é perceber que o distanciamento de um marco inicial continua com o ganho de mais e mais posições ou estágios em sequência sem que se tenha alcançado algo que se possa identificar como um ponto chegada ou de repouso, seja ele predeterminado ou não. Em processos naturais regulares e em atos deliberados, o término ou o fim do movimento está decidido de início. Em outros casos, o término da mudança é dado por fatores externos e circunstanciais (p.ex. uma pedra cujo rolamento é parado pelos acidentes de um terreno). </p><p style="text-align: justify;">Aristóteles, em seguida, propõe que a mudança é a realização daquilo que é potencial naquilo que já é totalmente real, e não opera como ele mesmo, mas como móvel. De novo, a definição pode parecer obscura, mas o exemplo dado pelo filósofo esclarece seu sentido. O bronze tem como uma de suas potencialidades se tornar uma estátua. Contudo, a mudança não é a realização do bronze <i>enquanto bronze. </i>Isto é, o bronze é o material no qual pode se dar a mudança que tornará real uma estátua.</p><p style="text-align: justify;">Assim, como diz a definição, a mudança será a realização (atualização, efetivação) daquilo que é potencial (a estátua) naquilo que já é real (o bronze), e que não opera como ele mesmo (como bronze), mas como móvel (como um ente capaz de mudança). Não é o bronze tomado como bronze, mas, sim, o bronze tomado como móvel, como algo moldável, que será o material no qual vai acontecer a atualização da potencialidade de se tornar uma estátua.</p><p style="text-align: justify;">A distinção aristotélica é sutil e aponta para a diferença que há entre <i>ser algo </i>e <i>ser uma potencialidade. </i>O bronze é o que ele é, tem uma natureza que lhe é própria. A realização do bronze, o <i>ser</i> do bronze é ser plenamente o que ele é. Nisso não há mudança. Aquilo que é X, pelo fato de ser X, exibe as características essenciais de X, quaisquer que elas sejam. Não há diferença entre ser X e possuir a natureza daquilo que é X. </p><p style="text-align: justify;">Não obstante, existe diferença entre ser bronze e ser uma determinada potencialidade. Se o bronze possui um conjunto definido de características que o tornam bronze, isso não significa que essas características sejam idênticas a ser bronze. Por exemplo, faz parte da natureza do bronze ser maleável o suficiente para ser moldado. Mas ser <i>moldável </i>não é a mesma coisa que ser bronze, ainda que para ser bronze a coisa deva ser moldável. É fácil perceber a diferença quando lembramos que vários outros materiais são moldáveis sem serem bronze (madeira, por exemplo).</p><p style="text-align: justify;">Então, a mudança não é a atualização do ser bronze, mas a atualização do moldável <i>no bronze. </i>Não faz sentido que o bronze mude para se tornar bronze, pois ele já é bronze. Não faz sentido atualizar aquilo que já está atualizado. Só é possível atualizar aquilo que é uma potencialidade. A mudança, portanto, não é a atualização do bronze, dado que ele já é bronze. É a atualização do moldável enquanto uma potencialidade presente no bronze.</p><p style="text-align: justify;">O mesmo vale para "cor" e "visível". A cor possui visibilidade, mas visibilidade não é a mesma coisa que cor. Aristóteles afirma, então, que a mudança é a realização da potencialidade enquanto potencialidade. A atualização daquilo que é moldável não é a estátua já moldada. A atualização do moldável é o moldável <i>enquanto está sendo moldado. </i>A estátua moldada não é mais <i>moldável. </i>A estátua <i>sendo</i> moldada é a realização do <i>moldável </i>enquanto <i>potencialidade. </i></p><p style="text-align: justify;">Aristóteles admite a dificuldade de se conceituar a mudança. Ela não é uma simples atualidade e nem uma simples potencialidade. Seria impossível negar a sua realidade, contudo. A questão é saber que realidade possui a mudança. Não é a realidade de algo já constituído, pronto, realizado, substancial. Tampouco é a realidade tênue da potência como mera capacidade para fazer ou para ser algo. A mudança está entre o potencial e o atual como uma atualização imperfeita. É a atualização progressiva de uma potencialidade.</p><p style="text-align: justify;">Ora, a mudança só se dá pela ação do motor, isto é, daquilo ou daquele que possui a potencialidade de mover. Assim, quando o motor age e faz o móvel se mover, ao mesmo tempo, a potencialidade do motor e a potencialidade do móvel são igualmente atualizadas. O agente da mudança, ao agir, atualiza tanto a sua própria potencialidade de ação quanto a potencialidade de receber a ação da coisa sobre a qual ele age.</p><p style="text-align: justify;">Por exemplo, o oleiro que molda a massa para fazer um vaso está atualizando a sua capacidade de oleiro agindo sobre a massa, e, ao mesmo tempo, atualizando a potencialidade da massa de ser moldada. Não são dois eventos o oleiro agindo e o vaso sendo feito. É um só e mesmo evento visto de dois ângulos diferentes, porém complementares. O agente só pode agir naquilo que tem a potencialidade de sofrer a sua ação. Aquilo que pode sofrer ação só pode atualizar essa sua potencialidade pela ação de um ente que tenha a capacidade de agir. </p><p style="text-align: justify;">A mudança, então, é uma atualização dupla. O agente atualiza a sua capacidade de agir enquanto atualiza a potencialidade passiva daquilo que sofre a sua ação. Nada há de absurdo nisso. O professor ensina, e a atualização de sua capacidade de ensinar se dá justamente em outro, a saber, o aluno que recebe a lição ministrada. O aluno, por seu turno, tem a potencialidade de aprender, e só aprende quando o professor ensina, ou seja, quando o professor atualiza a sua capacidade de ensinar. </p><p style="text-align: justify;">Enquanto está ensinando, o professor atualiza concomitantemente a sua potencialidade e a de seu aluno. A mudança se dá tanto no professor quanto no aluno, embora sob ângulos diferentes. Percebe-se que o mundo da <i>Física </i>é o mundo do encontro de capacidades e de potencialidades. Nada pode agir a não ser que tenha a capacidade prévia de agir. Nada pode sofrer ação se não possuir previamente a potencialidade de receber a ação. A todo agente que age corresponde um paciente que sofre a sua ação. </p><p style="text-align: justify;">Dito de outro modo, nem sempre existe em outro ente a passividade sobre a qual o agente possa agir, mas toda vez que o agente age, ele o faz sobre um ente capaz de receber a ação. O fogo só pode queimar aquilo que é queimável. O professor não pode ensinar nada aos muros da escola, somente aos alunos. O pássaro que pousa sobre um galho o faz se inclinar para baixo com seu peso porque o galho tem essa potencialidade. </p><p style="text-align: justify;">Ensinar não é o mesmo que aprender, porém há uma só e mesma mudança na qual as duas potencialidades se realizam. Todavia, a "atualização de X em Y" não é a mesma coisa que a "atualização de Y por meio da ação de X". Elas diferem em definição, pois em um caso há ação e no outro há passividade. A mudança reúne esses dois aspectos necessários e complementares em um único processo.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">*A tese de Duhem é que esses aspectos qualitativos do mundo físico, após as tentativas mecanicistas e dinamistas, são finalmente reconhecidos e estudados pela física moderna na termodinâmica. </p><p style="text-align: justify;">** É desnecessário apontar os limites exatos onde termina a infância e onde começa a vida adulta. Aristóteles dizia, com razão, que não é preciso buscar exatidão naquilo que não é exato. </p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Arist%C3%B3teles">Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-42594564089790982472024-01-11T20:04:00.001-03:002024-02-14T16:47:47.516-03:00Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-bo9Xs5FC-Q_TKIuD6qHGiD7pmfO6lBPt1MYXcMrqlB4BQ3VH3cbGGuYBDCPCploH1xSFyDKIirCbSjzSowDkOA9iFrUeLdYGJyaZfBhtkPk8CAM35opkHAHpZQaThFs_jrJV-sOa343qFurEneV0DN1s4TZmJRcjl40lcQ1ur3Q0ohDCP2JxC1Fs5FG7/s2000/mario-ferreira-dos-santos-e28093-filosofo-e-grande-heroi-do-pensamento-brasileiro-filosofo-brasilero-7.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2000" data-original-width="1414" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-bo9Xs5FC-Q_TKIuD6qHGiD7pmfO6lBPt1MYXcMrqlB4BQ3VH3cbGGuYBDCPCploH1xSFyDKIirCbSjzSowDkOA9iFrUeLdYGJyaZfBhtkPk8CAM35opkHAHpZQaThFs_jrJV-sOa343qFurEneV0DN1s4TZmJRcjl40lcQ1ur3Q0ohDCP2JxC1Fs5FG7/s320/mario-ferreira-dos-santos-e28093-filosofo-e-grande-heroi-do-pensamento-brasileiro-filosofo-brasilero-7.png" width="226" /></a></div><p style="text-align: justify;">"É verdade que não é possível dar-se um <i>ontos </i>qualquer, sem que ele tenha unidade. Percebemos que a lei da unidade rege as coisas, de modo que todas dependem dela, porque só se dão quando são também unidades, de maneira que esta é pertencente, portanto, àqueles <i>logoi arkhai</i>, de que falavam os pitagóricos; ou seja, uma lei, que constitui o princípio da coisa."</p><p style="text-align: justify;">MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, <i>A Sabedoria da Unidade, </i>p.5 (itálicos no original)</p><p style="text-align: justify;">O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em seu livro <i>A Sabedoria da Unidade, </i>parte<i> </i>integrante<i> </i>da<i> Matese</i> (cujo primeiro volume, <i>A Sabedoria dos Princípios,</i> apresentamos anteriormente: <a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Sabedoria%20dos%20Princ%C3%ADpios" style="text-align: left;">Νεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios (oleniski.blogspot.com)</a>), dedica suas reflexões ao tema fundamental da <i>unidade. </i>Tudo aquilo que é uno depende do <i>logos da unidade, </i>isto é, há uma estrutura eidética, formal e principial, que funda a realidade da <i>unidade.</i></p><p style="text-align: justify;">O <i>logos da unidade</i> pode ser <i>acidental </i>ou <i>substancial. </i>No primeiro caso, corresponde aos artefatos, os entes que são produzidos ou construídos pela organização de partes preexistentes segundo um padrão imposto extrinsecamente pelo produtor. Por exemplo, uma mesa de madeira é o produto da imposição do padrão "mesa" a um ente que já existia, a madeira. Esta não se tornaria uma mesa por si mesma, de modo espontâneo. Ao contrário disso, o ente substancial se caracteriza pelo caráter intrínseco de sua unidade, que não lhe é imposta de fora, mas, por assim dizer, o constitui "de dentro".</p><p style="text-align: justify;">Não há um <i>ontos, </i>não há um ser que não seja constituído pelo logos da unidade. Por essa razão, a lei da unidade é <i>absoluta</i>, independente de toda e qualquer coisa. É um dos <i>logoi arkhai</i>, princípios originários de toda e qualquer realidade possível. Mário Ferreira distingue ainda entre a unidade como lei da unidade <i>eidética </i>da coisa, o que a distingue de tudo o que não é ela, e a lei da unidade <i>matética, </i>o logos matético da unidade.</p><p style="text-align: justify;">A fim de dirimir possíveis confusões, é preciso dizer de início que não se trata aqui de <i>unidade</i> no sentido <i>matemático </i>do termo (pelo menos não principalmente). A <i>unidade </i>em discussão é o caráter daquilo que é <i>indiviso, unificado, completo</i> e <i>substancial. </i>A unidade de uma cadeira é muito mais do que a simples junção de suas partes materiais. A cadeira é <i>una</i> primordialmente porque <i>"cadeira"</i> é um padrão, um arranjo específico das partes segundo um determinado objetivo. </p><p style="text-align: justify;">O que torna a cadeira uma cadeira não é ser feita ou não de madeira (poderia ser feita de plástico ou de outro material adequado), mas sim o fato de que há na cadeira um padrão repetível que caracteriza toda e qualquer cadeira a despeito de suas particularidades como cor, tamanho, modelo, etc. Isto é, há um conjunto mínimo de características que têm de ser cumpridas para que a cadeira seja uma cadeira viável. </p><p style="text-align: justify;">É esse conjunto que torna algo uma cadeira e não uma mesa. Mas essas características não são de modo algum arbitrárias. O conjunto tem que ser <i>ordenado, </i>deve haver <i>sentido </i>nas características das partes da coisa e entre a disposição da partes para que haja de fato uma <i>coisa, </i>um <i>ente, </i>e não simplesmente um amontoado. Utilizando a expressão de Mário Ferreira, tem de haver uma <i>lei de proporcionalidade intrínseca, </i>uma regra, um <i>logos. </i>O que concede <i>unidade </i>a algo é um padrão que torna a coisa <i>aquilo que ela é. </i></p><p style="text-align: justify;">Nesse sentido, a <i>unidade</i> é <i>ontológica, </i>e não simplesmente <i>matemática. </i>A unidade matemática é <i>quantitativa </i>apenas. Esta maçã é <i>uma </i>porque<i> </i>ela se distingue numericamente de outras maçãs, mas ela é <i>una</i> por ser <i>"maçã", </i>e, enquanto <i>"maçã" </i>ela não se distingue de todas as outras maçãs porque, assim como as outras, ela apresenta o <i>mesmo</i> <i>padrão. </i>Só aqui temos já dois aspectos fundamentais da <i>unidade: </i>a unidade como aspecto <i>qualitativo, </i>o que torna a coisa o que ela é, e o aspecto <i>quantitativo, </i>o<i> </i>que distingue numericamente os entes de um mesmo tipo.</p><p style="text-align: justify;">Há ainda a<i> lei da unidade</i> que fundamenta e reúne em si os dois aspectos acima apresentados. Não se trata mais desta maçã enquanto unidade numérica, e nem mesmo de <i>"maçã"</i> como aquela unidade de características essenciais que definem o que é uma maçã. A <i>lei da unidade</i> não corresponde a este ou àquele padrão (cadeira, maçã, etc.), mas se refere ao, se podemos expressar desse modo, <i>"padrão máximo" </i>segundo o qual tudo aquilo que pode existir, seja o que for, será sempre <i>unidade </i>(por isso a <i>lei da unidade </i>é <i>absoluta</i>).</p><p style="text-align: justify;">Mário Ferreira mostra ainda que, se é verdade que a unidade está presente em todos os entes, é também certo que os entes diferem quanto à sua constituição. Quando falamos de unidade absolutamente simples (sem partes), tratamos do <i>henos </i>(o que vem do "um", <i>ἓν</i>, no grego). Quando se trata de entes complexos (com partes), temos o <i>holos </i>("todo", <i>όλος</i>, no grego) e o <i>plethos </i>(<i>πλῆθος</i>, no grego). O <i>holos </i>é um Todo cujas partes estão reunidas e ordenadas segundo uma regra geral intrínseca. </p><p style="text-align: justify;">Uma célula é <i>holos </i>(da onde vem o termo <i>holística</i>)<i> </i>porque constitui-se em um todo regido por uma <i>lei de proporcionalidade intrínseca </i>que não foi imposta de fora por um agente externo, mas que corresponde à sua <i>natureza</i>, ao que<i> ela é. </i>Além disso, Mário Ferreira identifica na célula uma <i>tensão, </i>um <i>tónos </i>(τόνος), esforço tensional para manter as partes subordinadas ao interesse do Todo. As partes da célula são formadas por diferenciação interna para que cada uma delas tenha uma função específica para a realização e para a manutenção do Todo.</p><p style="text-align: justify;">A cadeira é um <i>plethos, </i>pois suas partes são unidas extrinsecamente segundo uma <i>lei de proporcionalidade </i>cuja <i>tensão </i>é produzida pela disposição mecânico-geométrica das partes. Um relógio, por exemplo, é feito de partes independentes que são reunidas por um agente produtor em um determinado padrão a fim de realizar e de manter um Todo funcional. O que mantém essa unidade não é um impulso orgânico e sim uma tensão que se deve à disposição das partes segundo suas características geométricas (comprimento, altura, profundidade, forma) e mecânicas (contato, massa, peso, etc).</p><p style="text-align: justify;">Ora, o ser humano é capaz de captar intelectivamente essas <i>leis de proporcionalidade intrínseca </i>presentes em cada ente da realidade. Tal capacidade é o que define o homem distinguindo-o de todos os outros entes, sejam animais, vegetais ou inanimados. Aptamente, Mário Ferreira distingue o <i>esquema eidético-noético, </i>presente no intelecto humano,<i> </i>da <i>estrutura eidética, </i>presente nas coisas. A inteligência capta o <i>logos eidético </i>(a <i>lei de proporcionalidade intrínseca</i>) de cada coisa. </p><p style="text-align: justify;">Por isso, é possível falar de <i>"maçã" </i>como um conjunto limitado de características essenciais que, a um só tempo, está presente em cada maçã sem jamais se restringir ou ser esgotado por nenhuma delas em particular, e nem mesmo pelo conjunto de todas as maçãs do presente. O <i>logos eidético</i> da <i>"maçã" </i>é tomado <i>in abstracto</i>, ou seja, como um conteúdo abstraído das maçãs existentes. Essa <i>estrutura eidética </i>da maçã, embora válida para todas as maçãs, é sempre captada no intelecto de um ser humano individual. </p><p style="text-align: justify;">Assim, o que temos no nosso intelecto é o <i>esquema eidético-noético </i>da maçã. Ele é <i>eidético </i>porque<i> </i>se refere ao <i>Eidos </i>(εἶδος<i>, </i>em grego)<i>, </i>a Ideia<i>, </i>a<i> essência </i>da maçã. Esse conteúdo é <i>objetivo, </i>corresponde àquilo que <i>realmente</i> a coisa é. Ele é <i>noético</i> (νόησις, em grego) porque esse esquema eidético da maçã é captado em um intelecto, é um conteúdo informativo presente em uma mente. O <i>noético </i>se refere à <i>compreensão, </i>ao <i>conhecimento, </i>e, portanto,<i> </i>pertence a um sujeito cognoscente. Nesse sentido, está em um <i>sujeito </i>(<i>subjectum, </i>no latim), é <i>subjetivo.*</i></p><p style="text-align: justify;">O <i>esquema eidético-noético </i>é o <i>logos eidético </i>quando recebido e contemplado no intelecto de um ser humano. Todavia, o <i>esquema eidético </i>da<i> </i>maçã<i> </i>não pertence à mente humana. Em certo sentido, pertence somente às maçãs. Por outro lado, esta ou aquela maçã, e nem o conjunto de todas as maçãs, esgota ou limita o <i>esquema eidético </i>da maçã. É certo que ele está em todas as maçãs existentes, assim como esteve nas maçãs do passado e estará nas maçãs do futuro. </p><p style="text-align: justify;">Em outros termos, as maçãs no mundo <i>exemplificam </i>concretamente o <i>logos eidético </i>(a lei, a unidade, o padrão) da <i>maçã</i>. A questão é saber se o <i>logos eidético </i>possui alguma existência fora das maçãs concretas. Obviamente, não pode ser uma existência material e <i>singular, </i>como a existência <i>desta ou daquela </i>maçã concreta. Nem poderia ser uma existência <i>universal, </i>como se fosse um ente concreto e ao mesmo tempo uma universalidade.</p><p style="text-align: justify;">Na excelente formulação de Mário Ferreira, </p><p style="text-align: justify;">"se as coisas repetem este <i>logos in re</i>, e como há entre elas algo comum, que é a presença do mesmo <i>logos</i>, deve haver uma forma <i>ante rem</i>, que é <i>fórmula</i> do <i>logos</i> concreto, já que <i>este</i> é algo que repete o <i>logos</i> concreto de outro ser da mesma espécie que ele."</p><p style="text-align: justify;">O ponto em questão é que o <i>logos </i>(a lei, a fórmula, o padrão, a unidade) é uma <i>comunidade</i> de características que define o <i>tipo de ser </i>que diversos seres são. Todas as maçãs são maçãs porque possuem em<i> comum </i>uma série de atributos essenciais que definem o que é ser uma maçã. O <i>logos, </i>o conjunto comum de características, é repetido, <i>in re,</i> em cada maçã. Mas, ao mesmo tempo, o <i>logos </i>não depende das maçãs, pois nenhuma quantidade delas pode encerrar a <i>possibilidade </i>de novas maçãs.</p><p style="text-align: justify;">Então, o <i>logos </i>possui alguma existência <i>ante rem, </i>anterior às coisas, no sentido ontológico (não temporal) de <i>anterioridade</i>, isto é,<i> </i>na qualidade de <i>fundamento, </i>de <i>princípio. </i>O <i>logos </i>não é uma <i>coisa </i>como uma maçã é uma <i>coisa, este </i>ente aqui e agora. Também não pode ser um <i>nada</i>, pois o nada não fundamenta e nem é princípio de coisa nenhuma. Tampouco se trata de uma <i>ficção </i>da mente humana, dado que, se assim fosse, não haveria nenhuma semelhança <i>real </i>entre duas maçãs.** </p><p style="text-align: justify;">Recorramos, novamente, à formulação de Mário Ferreira:</p><p style="text-align: justify;">"A identidade estaria na proporção intrínseca, que é a mesma em todos, distinta por distinção numérica neste ou naquele, por que se dá em vários, e distinta concretamente <i>in re, </i>por que se dá naquele."</p><p style="text-align: justify;">Pitágoras, Platão e os platônicos formularam a questão sore o modo de existência do <i>logos, </i>que denominaram como <i>Ideia, Forma </i>ou mesmo <i>fórmula. </i>Não podendo ser um ente concreto, <i>singular, </i>como <i>esta </i>maçã, qual o tipo de ser do <i>logos </i>da maçã? Semelhante a todos os <i>logoi, </i>sua existência só pode ser <i>aptudinal, </i>responde o filósofo brasileiro. Os <i>logoi </i>são <i>aptidões do Ser, </i>ou seja, <i>possibilidades</i> de existência que <i>antecedem e fundam ontologicamente</i> a existência concreta das coisas. </p><p style="text-align: justify;">Devemos distinguir entre a <i>possibilidade ontológica </i>de algo e as <i>condições </i>para a sua existência. A <i>possibilidade, </i>enquanto uma <i>aptidão </i>real<i> </i>para a existência de determinado <i>tipo </i>de seres, não varia e nem está submetida a quaisquer condições materiais. Os <i>logoi </i>são possibilidades intrínsecas da Realidade, fora do plano temporal e material. Para que o ser humano pudesse existir concretamente, o <i>logos </i>humano sempre foi intrinsecamente <i>possível. </i></p><p style="text-align: justify;">Não se segue absolutamente daí que o ser humano existiria <i>necessariamente. </i>A fim de que os humanos existam concretamente, certas <i>condições </i>tem que ser satisfeitas no mundo material. Por exemplo, dado que o homem é um animal, era necessário que a Terra fosse capaz de abrigar e sustentar a vida para que o homem pudesse surgir. Porém, nada impede logicamente que o ser humano jamais pudesse existir <i>de facto </i>em algum lugar do universo. Se todas as <i>condições </i>materiais não estivessem presentes na Terra, o homem não existiria concretamente.</p><p style="text-align: justify;">Nada do que foi dito acima significa que a Terra fosse <i>"obrigada" </i>de algum modo a<i> </i>se tornar habitável por causa da <i>possibilidade </i>do ser humano. Não é uma relação segundo a qual a mera <i>possibilidade </i>de algo existir implicasse logicamente que as <i>condições</i> materiais para a sua existência efetiva <i>necessariamente </i>fossem dadas no mundo. Sem embargo, há uma relação de <i>necessidade hipotética </i>entre a <i>possibilidade </i>de algo e as <i>condições </i>para a sua existência efetiva. </p><p style="text-align: justify;">Se a <i>possibilidade </i>X for se realizar concretamente, então as <i>condições </i>Y necessariamente tem que estar presentes no mundo (a relação é somente <i>condicional</i>). Um construtor tem uma ideia de uma casa em sua mente. Nada exige que <i>necessariamente </i>as <i>condições </i>para a realização da casa (materiais, terreno, ferramentas, etc.) estarão presentes e disponíveis. Mas, isso não muda o fato de que <i>se</i> (condicional) o construtor quiser realmente construir a casa, <i>necessariamente</i> tais <i>condições </i>deverão ser atendidas, sob pena de <i>impossibilidade material </i>de construção da casa. </p><p style="text-align: justify;">Independentemente do construtor querer ou não construí-la, aquelas <i>condições </i>são exigidas pela própria <i>lógica</i> da casa. Dito de outro modo, o <i>logos </i>da casa <i>possível</i> exige uma série de <i>condições </i>materiais (que podem ou não existir no mundo) para a sua realização concreta. Não são, tampouco, as <i>condições </i>materiais que tornam a coisa <i>possível. </i>A ausência das <i>condições</i> torna <i>materialmente ou empiricamente impossível </i>(seja momentaneamente ou não) a existência efetiva de algo que é, em si, essencialmente <i>possível</i>.</p><p style="text-align: justify;">Em suma, do ponto de vista da <i>Matese***</i>, os <i>logoi </i>são realidades aptitudinais no seio do poder absoluto do Ser. Em termos teológicos, de acordo com Agostinho, são os pensamentos de Deus, os modelos a partir dos quais todas as coisas são criadas. Indo um pouco além do que ensina o filósofo brasileiro, comparativamente, os <i>logoi </i>constituiriam o <i>cosmos noético </i>de Plotino que, por sinal, era denominado <i>N</i><span style="text-align: left;"><i>οῦς </i></span>e <i>Ser. </i>Acima dele, estaria o <i>Hen, </i>o <i>Uno </i>que dá origem a toda e qualquer <i>unidade. </i>O <i>Logos de todos os logoi, </i>por assim dizer.</p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;"><i>* </i>O conhecimento está em um <i>sujeito cognoscente </i>no sentido de que se trata de um conteúdo que se apresenta <i>"dentro"</i> do intelecto daquele que conhece. Nada disso implica algum tipo de s<i>ubjetivismo</i>, a doutrina filosófica que, <i>grosso modo, </i>defende que o conhecimento jamais é realmente <i>universal e objetivo, </i>mas que sempre é <i>subjetivo, </i>totalmente relativo ao sujeito. A <i>verdade </i>do conhecimento é <i>objetiva</i> porque corresponde <i>àquilo que é</i> a coisa conhecida. A diferença é que essa verdade é <i>contemplada, compreendida, inteligida </i>de <i>"dentro" </i>de um intelecto humano vivo.</p><p style="text-align: justify;">** Nenhuma delas seria, portanto, <i>maçã </i>em nenhum sentido compreensível da palavra <i>maçã. </i>Nem poderia haver maçãs, pois não haveria nenhuma <i>comunidade </i>de sentido que pudesse reunir quaisquer duas coisas sob um mesmo conceito.</p><p style="text-align: justify;">*** A <i>Matese, </i>segundo Mário Ferreira a define no livro <i>A Sabedoria dos Princípios, </i>estuda não somente a <i>ontologia, </i>a doutrina do Ser, mas também a <i>meontologia, </i>a doutrina do Não-Ser. </p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/M%C3%A1rio%20Ferreira%20dos%20Santos">Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-3044435474736784502024-01-08T17:03:00.002-03:002024-01-08T17:03:58.019-03:00Artigo: "O bispo contra o mago: as críticas de George Berkeley à física de Isaac Newton"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPOaa1KrFyUaqDW_SyhhLCM3sKJzZdDUUkrIP859hrxd_-FEqcrJEPYQd5p01SQsay6gwkR1S1zotTAWHUncXc5zJ4Lpn_tai_ZyDm1OiPU-ZoetSuTBccPes2IxROzNx-ZFYjlRJSK4xBvAV2eNcWGRe5BLnl9EfOBCkYyJiJ4HuoYe-s1gCgUf-1ztp8/s1123/0c055655c84542bed4d51918faf750b0.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="703" data-original-width="1123" height="269" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPOaa1KrFyUaqDW_SyhhLCM3sKJzZdDUUkrIP859hrxd_-FEqcrJEPYQd5p01SQsay6gwkR1S1zotTAWHUncXc5zJ4Lpn_tai_ZyDm1OiPU-ZoetSuTBccPes2IxROzNx-ZFYjlRJSK4xBvAV2eNcWGRe5BLnl9EfOBCkYyJiJ4HuoYe-s1gCgUf-1ztp8/w439-h269/0c055655c84542bed4d51918faf750b0.jpg" width="439" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Artigo integral publicado na <i>Revista Opinião Filosófica</i>: <a href="https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/1129/896" style="text-align: left;">Vista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O artigo tem como objetivo apresentar as críticas formuladas pelo filósofo George Berkeley à filosofia natural moderna, em especial à física de Isaac Newton. Tais críticas aparecem primeiramente em seu tratado epistemológico-metafísico sobre os princípios do conhecimento humano, e depois em uma obra totalmente dedicada à questão da natureza do movimento e de sua comunicação. </div></div><p style="text-align: justify;">A partir da leitura dos argumentos de Berkeley contra Newton, é possível demonstrar que o filósofo adota uma posição antirrealista com relação à física que é diretamente derivada de suas teses metafísicas imaterialistas. Dado que ele afirma que na realidade só há espíritos e suas ideias, a causa última das regularidades naturais é a vontade do espírito divino, e não uma suposta natureza intrínseca dos corpos. </p><p style="text-align: justify;">A filosofia natural, portanto, estará limitada ao uso de hipóteses matemáticas para identificar as regularidades naturais, contudo sem pretensões de determinar as causas reais dos fenômenos. Assim, as leis mecânicas têm seus limites epistêmicos determinados por um saber superior, a metafísica.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/George%20Berkeley">Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Isaac%20Newton">Νεκρομαντεῖον: Isaac Newton (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-71912074930170901552023-12-15T18:05:00.003-03:002023-12-21T12:29:59.785-03:00Leszek Kolakowski e a mentalidade revolucionária<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHEEO-0nXuMRvINq2JJT436_q0Hwhr-Z2YrylEnh0vgsEMjkHWqndmhwr8PLR8WGIf26B8A_6rYPNZhF1yAcx6N8vpFDHrws2bsZO8SEj5VaI2D8pTUOHi7PXe3aOz0_nTilF7nfTXa1OEuNKTI8NkBPpQjxgqFbrtUfvR9pKR1dtBd-QHqdN6pJs7xh82/s700/8788.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="700" data-original-width="684" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHEEO-0nXuMRvINq2JJT436_q0Hwhr-Z2YrylEnh0vgsEMjkHWqndmhwr8PLR8WGIf26B8A_6rYPNZhF1yAcx6N8vpFDHrws2bsZO8SEj5VaI2D8pTUOHi7PXe3aOz0_nTilF7nfTXa1OEuNKTI8NkBPpQjxgqFbrtUfvR9pKR1dtBd-QHqdN6pJs7xh82/s320/8788.jpg" width="313" /></a></div><p style="text-align: justify;">"A ideia de que o mundo existente é tão completamente corrompido que é impossível pensar em melhorias e que, <i>precisamente por isso, </i>o mundo que vai sucedê-lo possuirá a plenitude da perfeição e a libertação última, tal ideia é uma das aberrações mais monstruosas do espírito humano."</p><p style="text-align: justify;">LESZEK KOLAKOWSKI, <i>L'Esprit Revolutionnaire, </i>p. 27</p><p style="text-align: justify;">"Parece haver poucos casos, se houver algum, nos quais uma mente apática ou reacionária leia Marx e se torne marxista. Quase sempre tratou-se do caso de uma mentalidade suscetível acolhendo um sistema de certezas completo e aparentemente sofisticado."</p><p style="text-align: justify;">ROBERT CONQUEST, <i>Stalin: Breaker of Nations, </i>p. 22</p><p style="text-align: justify;">Em um texto de 1970 intitulado <i>"O Espírito Revolucionário", </i>o filósofo e historiador das ideias polonês Leszek Kolakowsi apresenta as características essenciais do que ele denomina de <i>mentalidade revolucionária. </i>Semelhante a outros pensadores, tais como o filósofo alemão Eric Voegelin e o historiador das religiões romeno Mircea Eliade (ambos exilados fugindo de totalitarismos em suas respectivas nações), Kolakowsi enxerga a ideia revolucionária como uma versão profana de crenças religiosas, particularmente de esperanças apocalípticas.</p><p style="text-align: justify;">Tal origem se manifesta no credo revolucionário especialmente na disjunção radical <i>"ou tudo ou nada". </i>O que significa, como Kolakowski complementa, que para o revolucionário não existe purgatório. A radicalidade da oposição entre o mundo tal como ele se apresenta e o um suposto mundo perfeito vindouro repete a estrutura apocalíptica do cristianismo primitivo no qual a iminente volta de Cristo tinha como exigência a necessidade da conversão urgente.</p><p style="text-align: justify;">A <i>mentalidade revolucionária </i>é definida por Kolakovski como <i>"aquela atitude espiritual que se caracteriza pela crença particularmente intensa na possibilidade de uma salvação total do homem em oposição absoluta com sua situação atual de escravidão, de sorte que entre as duas não haveria nem continuidade e nem mediação. Mais ainda, que a salvação total seria o único objetivo verdadeiro da humanidade ao qual todos os outros valores deveriam ser submetidos como meios."</i></p><p style="text-align: justify;">Os revolucionários creem no Céu, no Inferno e no caminho da cruz, no reino da salvação total e no reino do mal total. A ideia de uma salvação total que coloca sob questão todos os valores mundanos é parte do cristianismo. Dado que o Cristo se aproxima, e com Ele o Juízo Final, quaisquer outros compromissos e vias intermediárias são obliterados. A única escolha possível é entre o Reino dos Céus e o Anticristo. Somente uma coisa possui realmente valor: a salvação total cuja rejeição resoluta na danação total.</p><p style="text-align: justify;">A urgência do Juízo faz com que tudo esteja submetido a esse fim, o único fim real para o homem. Mas a própria Igreja logo percebe que era necessário algum compromisso com este mundo decaído e incapaz de salvação por seus próprios meios. O Juízo foi pouco a pouco relegado a um horizonte indeterminado, pois nem o Cristo mesmo sabia quando aconteceria a Sua volta. Não obstante, a esperança escatológica do Apocalipse renasceu continuamente na história do cristianismo nos inúmeros movimentos heréticos que acusavam a Igreja de haver traído a urgência do Evangelho.</p><p style="text-align: justify;">A reforma luterana, diz Kolakowski, resgatou nos seus inícios essa crítica à acomodação da instituição organizada ao mundo das fraquezas e misérias humanas. A pregação original do <i>tudo ou nada </i>foi substituída por uma tendência mais acomodativa na qual a atitude era a da busca por melhorias e por reformas. O lema <i>sola fide </i>de Lutero trouxe de volta o tema da centralidade da fé como um regeneração espiritual integral do homem. Só há a fé e a ausência de fé. E onde falta a fé, nenhuma obra é suficiente para a justificação do homem decaído.</p><p style="text-align: justify;">Não existe via intermediária entre a fé e o pecado. Para o fiel, qualquer obra é meritosa. Para o incréu, toda obra agrava a danação eterna. Na verdade, não há sequer o mérito, pois a salvação é dada de graça aos que têm fé. Não é possível, portanto, alcançar a salvação por graus aproximativos atribuídos às obras. </p><p style="text-align: justify;">A Igreja, porém, já havia entendido que pôr os fiéis diante da opção absoluta entre a perfeição e a danação seria retirar qualquer esperança de salvação. Por isso, os méritos foram graduados, uns sendo maiores e outros menores. Todos os atos possuem seu valor. Se é melhor obedecer a Deus por amor, obedecer por temor também tem mérito. Obedecer por um motivo baixo ainda é melhor do que ser desobediente. </p><p style="text-align: justify;">Contra Lutero, para quem Deus quer somente a fé e nada mais, a Igreja romana considerava a fé como uma virtude entre outras (importante, não exclusiva). Segundo o luteranismo, o pecado original significou a corrupção total da natureza, impedindo qualquer possibilidade d regeneração. Embora também pregasse a doutrina do pecado original, a Igreja considerava que a corrupção não era integral, e que havia ainda bem no homem e nas coisas. </p><p style="text-align: justify;">Não há compatibilidade entre o mundo da fé e as faculdades naturais do homem, considera Lutero. A graça, para a Igreja, não pode ser uma violência à natureza, mas deve colaborar com ela melhorando-a. Isso a permitiu incorporar a sabedoria grega antiga, o que para Lutero não passava de conluio com o paganismo. Todavia, o radicalismo inicial de Lutero logo é substituído pelos mesmos compromissos com o mundo imperfeito que foram criticados no catolicismo romano.</p><p style="text-align: justify;">Kolakowski aponta que <i>"a teoria da salvação mundana, isto é, a doutrina revolucionária de Marx, é modelada sob o mesmo esquema dicotômico que caracteriza a doutrina cristã da salvação. Fazendo paralelo exatamente ao cristianismo, esse esquema está organizado em torno da crença prometeica de autorredenção da humanidade." </i>No marxismo não há um pecado original a expiar, e nem uma salvação vinda do exterior, mas todo mal da história só adquire sentido pela libertação final. </p><p style="text-align: justify;">As forças da alienação tornaram o homem escravo de leis econômicas férreas. Elas geram sofrimento e miséria, em que pese o fato de que elas possuem um sentido redentor na medida em que são etapas necessárias no caminho da cruz e da redenção. Quando o aumento dos constrangimentos impostos pela alienação chegarem a seu máximo, estarão dadas as condições para a libertação final. Nesse momento, na consciência do proletariado, a necessidade histórica estará unida à liberdade. </p><p style="text-align: justify;">O mesmo processo histórico determinista que conduziu necessariamente o homem por inúmeros sofrimentos realizará o fim da sujeição às forças alienantes e a libertação final. Daí se segue que as leis econômicas do capitalismo, uma das etapas para o paraíso, não podem ser abolidas, somente atenuadas. As reformas não podem iludir o proletariado, pois a polarização e a exploração somente crescerão à medida em que se aproxima a luta final. </p><p style="text-align: justify;">O coração da doutrina de Marx, ensina Kolakowski, s encontra justamente nesse ponto: toda reforma e toda luta econômica devem estar submetidas à realização desse fim último. A salvação é total ou nenhuma. Não há meios de substituir a revolução, a tomada violenta do poder, por medidas parciais de reforma. A salvação não é gradual e nem divisível. Somente pode haver a revolução global, que, por sua vez, deve se espraiar a todos os domínios da vida humana. </p><p style="text-align: justify;">Kolakowski quer dizer que há etapas necessárias e incontornáveis no processo histórico que conduz deterministicamente até à revolução, mas não há etapas ou gradações na própria revolução tomada como transformação absoluta de todas as relações humanas. Como diz a passagem evangélica, <i>"é necessário que o escândalo venha". </i>Porém, quando vier o Reino dos Céus, haverá <i>"um novo céu e uma nova terra". </i>As duas afirmações são inseparáveis, ainda que opostas. Uma vez instalado o reinado de Cristo, não haverá qualquer semelhança entre a Jerusalém celeste e o mundo decaído que a precedeu.</p><p style="text-align: justify;">No prefácio do <i>Capital, </i>Marx afirma explicitamente que <i>"quando uma sociedade descobriu a lei natural que determina seu próprio movimento, mesmo assim ela não pode pular as fases naturais de sua evolução, nem mudá-las para fora do mundo pelo golpe de uma caneta. Porém, isto ela pode fazer: encurtar e diminuir as dores do parto."</i> Karl Popper, em seu <i>The Poverty of Historicism, </i>considera essa passagem como uma excelente formulação do tipo de fatalismo característico do que ele denomina como <i>historicismo.</i></p><p style="text-align: justify;">Kolakowski aponta em seguida que é sobre o lugar das reformas que se dá a discussão entre os reformistas e os marxistas na <i>Segunda Internacional.</i> A revolução não é produzida por uma adição de reformas. O capitalismo não é capaz de ser reformado, somente pode ser abolido. A diferença radical entre o mundo anterior à revolução e o mundo da libertação total, o <i>"tudo ou nada" </i>marxista, coloca a questão da continuidade da cultura humana. Será possível alguma continuidade ou haverá absoluta e irreconciliável ruptura? </p><p style="text-align: justify;">No caso de ruptura radical e absoluta, como exigiria a lógica interna das teses marxistas, tudo o que precedeu a transformação radical deve ser rejeitado e esquecido, inclusive todas as conquistas culturais da humanidade até então. Kolakowski considera que sobre esse ponto específico é incoerente e ambíguo. Se a filosofia, o direito e a religião são determinadas pelas relações de produção, e se as ideias nada têm de eternas, mas são somente relativas às sociedades que as sustentam, então o sentido de toda a produção cultural e intelectual era determinado por interesses de classe.</p><p style="text-align: justify;">Assim, quando a abolição das classes acontecer, a <i>totalidade</i> dessa produção perderá seu sentido. Marx, ele mesmo, não aceitava essa conclusão, e pretendia que o socialismo poderia se apoiar sobre as conquistas civilizacionais do capitalismo, fossem tecnológicas ou pertencessem a outros domínios. De forma alguma a revolução traria uma regressão utópica a uma época de tecnologia primitiva e sem ciência. A questão se a cultura possui somente um sentido de classe ou possui valor universal, a obscuridade e a equivocidade de Marx permitiu duas interpretações divergentes do socialismo. </p><p style="text-align: justify;">Segundo Kolakowski, a história da <i>Segunda Internacional </i>mostrou que o espírito reformista predominou lá onde o movimento socialista resultava das aspirações reais dos operários. A escatologia revolucionária predominava seja quando os intelectuais, que se consideravam como a encarnação da consciência operária, estavam à frente, seja quando estavam à frente o <i>lumpenproletariado</i>. Os operários eram pouco sensíveis à escatologia da salvação total e estavam mais preocupados com as vantagens que poderiam obter no capitalismo. </p><p style="text-align: justify;">Os intelectuais e as camadas marginais são mais susceptíveis ao encanto do messianismo revolucionário. Este, por sua lógica interna, propugnava a rejeição absoluta de tudo o que fosse anterior à revolução, dado que toda a cultura não era mais do que instrumentos a serviço das classes privilegiadas. Como a revolução deveria mudar radicalmente todas as dimensões da vida, a cultura só poderia adquirir sentido se fosse submetida à direção do Estado proletário.</p><p style="text-align: justify;">Ninguém pôde jamais dizer exatamente no que consistiria essa mudança global e absoluta, mas a sua ideia justificou toda forma de destruição cultural. O vandalismo, o incêndio d bibliotecas e o terrorismo estariam de antemão justificados se a cultura humana inteira não fosse mais do que expressão dos interesses de classes dominantes. Kolakowski adverte que Marx não pode ser culpado por essas interpretações posteriores. </p><p style="text-align: justify;">Entretanto, a lógica do messianismo profético e a obscuridade dos seus escritos a esse respeito, tornam as teses de Marx equívocos que o nihilista destruidor pode utilizar a seu favor. O problema se torna, então, saber se o socialismo é uma ruptura com a continuidade cultural humana. Em outros termos, o problema seria identificar qual dos <i>slogans</i> é o verdadeiro: <i>"socialismo ou barbárie" </i>ou <i>"socialismo é barbárie"?</i></p><p style="text-align: justify;">Kolakowski argumenta que uma mudança total como propugnada pelo messianismo revolucionário é tão impossível quanto a sociedade perfeita. Não obstante, regressões culturais determinantes são possíveis, pois não existe uma lei que garanta o progresso ininterrupto. O filósofo polonês considera como uma das aberrações mais monstruosas do espírito humano a ideia de que o mundo é incapaz de qualquer melhoria, e que, precisamente por isso, o mundo vindouro será perfeito. No pensamento religioso que lhe deu origem, essa ideia ideia depende da graça, e é bem menos abominável que sua versão mundano-revolucionária.</p><p style="text-align: justify;">Não há salvação baseada em um suposto salto direto do Inferno para o Céu. Tal revolução jamais acontecerá, encerra Kolakowski.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/mentalidade%20revolucion%C3%A1ria">Νεκρομαντεῖον: mentalidade revolucionária (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/2016/11/eric-voegelin-politica-e-atitude.html">Νεκρομαντεῖον: Eric Voegelin, política e a atitude gnóstica (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/2018/04/mircea-eliade-mito-milenarismo-e.html">Νεκρομαντεῖον: Mircea Eliade, mito, milenarismo e totalitarismos (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-28580412232479548102023-12-10T14:26:00.003-03:002023-12-12T08:39:59.248-03:00Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro III, sobre a oração)<p></p><div style="text-align: justify;"><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEib38l6PdJ9z0M989nxso6sEFoydL8XuIYynE5v7WPoPt7wDHEB01yCIZoS8K1dIQSuNTAPK3w6dsPG46MDoZzSLnLOAMj5RQfCFEswFjkiu4lyTvBRMNB7ayiW_mX-NV6yoH3eG1t0p0yycy3b9mKZU5jBXWWK_ZioZK8fy0GL1_mDosNGZBpVKY0i9WAu/s584/OIP.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="584" data-original-width="474" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEib38l6PdJ9z0M989nxso6sEFoydL8XuIYynE5v7WPoPt7wDHEB01yCIZoS8K1dIQSuNTAPK3w6dsPG46MDoZzSLnLOAMj5RQfCFEswFjkiu4lyTvBRMNB7ayiW_mX-NV6yoH3eG1t0p0yycy3b9mKZU5jBXWWK_ZioZK8fy0GL1_mDosNGZBpVKY0i9WAu/s320/OIP.jpg" width="260" /></a></div><br /></div><div style="text-align: justify;">"As melhores formas de aproximação de Deus parecem ser duas: a via da investigação e do argumento, e a via da oração e da súplica. A primeira almeja conhecer o Bem, enquanto a segunda é nosso guia para alcançá-lo, e, tendo-o alcançado, conhecê-lo perfeitamente."</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">MARSÍLIO FICINO, <i>Comentários aos "Nomes Divinos", </i>LXVII</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na sequência de sua exposição sobre os nomes de Deus, no livro III, Dionísio dedica-se à tratar da oração. Para se alcançar as divinas verdades é mister subir a Deus, como que por uma corda que tem seu início nos céus e se estende até nós. Uma mão depois da outra, subimos, e temos a impressão de que são os céus que, por ação de nossa força, deslocam-se na nossa direção. Na verdade, é a Realidade última que nos atrai com sua refulgência. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Estando em um barco atado por uma corda a uma rocha na costa, não afetamos em nada a rocha ao puxarmos a corda a fim de aproximar o barco da costa. Analogamente, se empurramos a rocha com um remo, em nada a afetamos, mas dela nos afastamos. No início de todas as atividades, é necessário que as iniciemos com orações, sem considerar que trazemos a Divindade a nós, pois ela está perto em todo lugar e em lugar nenhum. São as lembranças e as invocações que nos unem a esse Poder.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Plotino, na <i>Enéada </i>IV, 4, ao examinar o problema da oração e da magia, assinala que não são os deuses ou os astros que se inclinam ao homem, mas sim que é o homem, por meio dessas práticas, que entra em sintonia com (ou capta, ou atrai) poderes que naturalmente emanam desses seres. O universo é um Todo cujas partes são formadas e exercem suas funções em vista da realização e da manutenção do Todo. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, necessariamente, tal qual um animal, todas as suas partes, por mais diversas que sejam, e por mais que estejam separadas umas das outras, estão em profunda <i>simpatia </i>(συμπάθεια), ou seja, pertencem a (e têm seu sentido em) uma unidade subjacente. Por conta disso, nada está realmente afastado de nada, não havendo possibilidade de isolamento absoluto. As coisas têm poderes diferentes que entram em relação com os poderes de outras coisas, e têm efeitos diferentes de acordo com as capacidades ativas e receptivas dos outros seres.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No caso dos astros, não são eles mesmos, como se fosse algo de sua escolha, que distribuem benefícios ou malefícios aos homens, mas, sendo o que são, eles possuem determinados poderes que podem ser benéficos ou não a depender dos poderes receptivos das coisas que estão abaixo deles. As orações, por seu turno, não são mais do que meios de captar ou atrair essas influências. Os astros, no entanto, permanecem incólumes tanto quanto uma mulher bonita permanece a mesma a despeito do efeito que surte nos homens ao seu redor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As orações são o meio ou o instrumento pelo qual o homem se harmoniza com esse poder superior. Neste mundo, um orador diante de uma plateia utilizará gestos, movimentos e palavras que ele sabe que terão o efeito de atrair a atenção das pessoas que o assistem, e predispô-las à anuir com o que será dito. Isso é um poder real, um encanto ou magia, exercido sobre outrem. As pessoas presentes na assembleia são capturadas não pela razão, mas por sua parte não racional que é impressionada por aquelas palavras, gestos, entonações, movimentos, etc.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Obviamente, os astros não são capturados por orações da mesma forma que pessoas em uma assembleia são capturadas pelas artes de um orador. Embora o princípio de simpatia seja o mesmo, são somente certos efeitos involuntários dos astros que são capturados pelas orações, uma vez que se trata de uma relação hierárquica na qual o ser humano é inferior. Utilizando uma imagem, uma cachoeira fornece água permanentemente, a despeito de haver ou não quem se coloque sob sua cascata. Se alguém quer se beneficiar daquela fonte de água, deve se pôr diretamente sob seu influxo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dionísio afirma que não é Deus que se move na direção do homem, como se fosse uma pedra atraída a nós por meio de uma corda. Ao contrário, Ele é a pedra fixa da qual nos aproximamos ao puxar a corda. São as orações que nos colocam sob o influxo do poder divino. Assim como para exercer certas tarefas ou contemplar certas realidade precisamos nos concentrar, ignorando tudo o que não é parte de nosso foco, assim também a oração é a atitude que nos coloca em sintonia, e, portanto, nos dá acesso, a Deus, sem que Ele em nada seja afetado por isso.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Marsílio Fino, ao comentar essa passagem de Dionísio mais de mil anos depois, dirá que há uma cadeia na realidade constituída pela ordem e pela série das coisas obedecendo a Providência divina. Portanto, há uma certa comunhão, uma conexão mútua, nesse universo ligado como uma cadeia, no qual a Providência se estende desde os seres mais elevados até os seres mais humildes. Sem sofrer mudança, a Providência ordena os seres mutáveis, e dá azo à liberdade das almas racionais e às suas orações.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os Magos sobem por essa cadeia a partir dos elos mais baixos a fim de alcançar os bens celestes. Os elos da cadeia intelectual atraem os contempladores da metafísica, que desse modo se aproximam gradativamente da luz inteligível. A cadeia pela qual sobe o devoto para alcançar Deus é a da lei natural inscrita no coração de todos os homens. E a lei promulga que há um só Deus, que Ele é o autor de todas as coisas, e que Ele deve ser amado acima de todas elas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Jâmblico, cita Ficino, já reconhecia que a oração era mais importante que o sacrifício, pois este recebia todo o seu poder daquela, e que Deus não muda nada por conta das nossas orações, mas, ao contrário, somos nós que somos mudados pela oração, e tornados capazes de receber os dons que vêm do alto. Platão, na <i>República, </i>ensina que devemos iniciar, seja no pensamento ou na palavra, sempre a partir de Deus.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se há uma <i>simpatia</i> que une todos os entes do universo, tal qual as partes de um ser vivo estão organizadas segundo a regra geral do Todo, assim também há uma comunhão entre todos os seres ainda mais profunda realizada pela Providência, que ordena todas as coisas segundo a sabedoria divina. Sendo o princípio ordenador, Deus mesmo está livre de toda a variação que caracteriza as coisas que são por Ele ordenadas e a Ele submetidas. Portanto, há uma <i>cadeia do Ser</i>, uma comunhão ontológica que liga não só as coisas que são, mas também as que foram e que serão um dia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As orações e as súplicas são como a corda pela qual se sobe essa cadeia, não um meio de subvertê-la ou de controlá-la. Como tudo na realidade, trata-se de encontrar a configuração correta que permite abrir passagem para determinados poderes e capacidades aparentemente fechados, separados e inalcançáveis. A chave só abre a porta porque há entre essas duas configurações pontos de encaixe, ou seja, pontos em que há concordância de estrutura que permitem a comunicação entre suas diferenças, consequentemente, a liberação de certos efeitos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Leia também: </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Dion%C3%ADsio%20Areopagita">Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/neoplatonismo">Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)</a></div><p></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-50568128787581314082023-11-30T13:52:00.000-03:002023-11-30T13:52:11.368-03:00Antirrealismo, epistemologia e teorias científicas<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJXugZo1zDo7YRd3fPEVLwSK_IH9sA-CMH49xHiOS69T41n9mLNP7BWDraZ50b84lSny4zJcj3rlGzveHKEER8bvL-kH01R_5-9zVfYWInP6GaAyNHtUbEWKy1Nq4H4zh-FoWFHhhIl52zMi_j9vGwf19HxG_IUHYxuKPQq5po5lzQfbRTtUmT5bb6nI5T/s648/OIP%20(1).jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="648" data-original-width="427" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJXugZo1zDo7YRd3fPEVLwSK_IH9sA-CMH49xHiOS69T41n9mLNP7BWDraZ50b84lSny4zJcj3rlGzveHKEER8bvL-kH01R_5-9zVfYWInP6GaAyNHtUbEWKy1Nq4H4zh-FoWFHhhIl52zMi_j9vGwf19HxG_IUHYxuKPQq5po5lzQfbRTtUmT5bb6nI5T/s320/OIP%20(1).jpg" width="211" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;">"Toda teoria científica implica uma classificação conceitual do mundo em uma ontologia de entidades fundamentais e propriedades. Mas são exatamente essas ontologias que são mais sujeitas a mudanças radicais ao longo da história da ciência."</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">MARY HESSE, <i>Truth and the Growth of Scientific Knowledge</i></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro "<i>Resisting Scientific Realism" </i>(2018), de autoria do Professor K. Brad Wray, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, pretende reunir e responder aos tradicionais argumentos contra o antirrealismo científico, além de adicionar novo argumentos contra o realismo. Em seu primeiro capítulo, é apresentado um caso paradigmático da história da ciência que ilustra bem a posição que será defendida no resto do livro. O caso é o da Astronomia grega, cujo princípio de <i>salvar os fenômenos</i> permanece sendo um dos pilares do antirrealismo moderno.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ponto em questão é o de que os astrônomos gregos faziam uso de <i>modelos </i>matemáticos que descreviam com acuidade os eventos do céu visível sem, contudo, atribuir a eles a noção de verdade, isto é, de correspondência com o que <i>de facto </i>acontecia no mundo celeste. As órbitas dos planetas não são visíveis, mas todos os <i>modelos</i> astronômicos tinham como princípio primeiro a utilização de <i>órbitas circulares concêntricas </i>para descrever os movimentos dos corpos celestes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa pressuposição não significava necessariamente um compromisso com a afirmação de <i>órbitas concêntricas </i>na realidade. A função desses <i>modelos </i>era <i>salvar os fenômenos</i>, isto é, descrever da forma mais exata possível os eventos celestes e permitir predições acuradas de fenômenos futuros (eclipses, etc). Em termos técnicos, o seu objetivo era a <i>adequação empírica</i>, a coadunação do que era exposto no <i>modelo </i>com aquilo que era observável a olho nu. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A fim de dar conta dos fenômenos visíveis nos céus que não eram contemplados somente pela utilização de órbitas circulares concêntricas (por exemplo, o movimento retrógrado) os astrônomos gregos introduziram uma série de hipóteses tais como os <i>epiciclos </i>e<i> </i>as <i>órbitas excêntricas. </i>Alguns desses<i> modelos </i>utilizavam<i> epiciclos</i>, enquanto outros preferiam fazer uso de <i>equantes</i>. Havia também a combinação desses diversos apetrechos matemáticos em um só <i>modelo. </i>A despeito do fato de que essas adições resolviam certos problemas manifestos, elas também aumentavam a complexidade matemática dessas teorias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A consequência da postura epistemológica adotada por esses astrônomos gregos era a existência de <i>modelos</i> equivalentes em <i>adequação empírica. </i>Embora um <i>modelo A </i>pudesse ser teoricamente incompatível com o <i>modelo B </i>(um utiliza <i>epiciclos </i>e o outro não, por exemplo), não era infrequente que ambos os <i>modelos </i>descrevessem satisfatoriamente o que era observado. Nesse caso, tanto <i>A</i> quanto <i>B</i> eram <i>empiricamente adequados, </i>ainda que fossem teoricamente <i>incompatíveis. </i>De todo modo, quando tomados como <i>instrumentos</i>, nenhuma contradição advinha da aceitação de ambos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O cenário muda com o advento da Astronomia de Copérnico, Kepler, Tycho Brahe e Galileu, principalmente pela afirmação explícita ou não de uma postura epistemológica realista. Naquele momento histórico, os astrônomos tinham diante de si três teorias astronômicas diferentes: a clássica ptolomaico-aristotélica, a copernicana, e correndo por fora, a teoria de Tycho Brahe. As observações de Galileu das imperfeições da superfície lunar, a descoberta das luas de Júpiter e a observação das fases de Vênus, além de outros fatores, deram a vitória ao copernicanismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A matematização da realidade, efetuada com sucesso por Galileu, Descartes, Newton, entre outros, trouxe consigo o problema epistemológico da <i>verdade </i>das teorias científicas. Haveria uma diferença fundamental entre obter uma teoria ou <i>modelo</i> que fosse <i>adequado empiricamente</i> e obter uma teoria ou <i>modelo </i>que fosse <i>verdadeiro, </i>isto é, que correspondesse a como é o mundo <i>realmente. </i>O problema não é novo, fora apontado já nos inícios da revolução científica por pensadores diversos como Marin Mersenne, Pierre Gassendi, G. H. Leibniz, George Berkeley, entre outros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O próprio Newton estava ciente da questão, como mostram seus comentários no <i>Scholium Generale </i>acerca da interpretação matemática (e não ontológica) das <i>forças. </i>A formulação mais importante e influente do problema é apresentada pelo físico, historiador, matemático e filósofo da ciência francês Pierre Duhem. De acordo com sua filosofia, as teorias físicas (basicamente as ciências físico-matemáticas) não podem ser <i>verdadeiras </i>e nem <i>falsas, </i>mas tão somente <i>adequadas empiricamente. </i>Para Duhem, as teorias físicas meramente <i>descrevem o comportamento manifesto das magnitudes físicas em uma classificação natural, que é uma estrutura de expressões matemáticas na qual leis menos universais podem ser derivadas logicamente de leis mais fundamentais.*</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;">A posição de Duhem é a inspiração de muito do que se denomina hoje em filosofia da ciência como <i>antirrealismo científico. </i>O<i> </i>filósofo<i> </i>Bas van Fraassen defende um <i>empirismo construtivo </i>que é por ele definido a teoria segundo a qual o "<i>objetivo da ciência é fornecer teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como crença somente que ela é empiricamente adequada". </i>Tanto a concepção das teorias quanto a sua aceitação têm como parâmetro a mera <i>adequação empírica,</i> ou como diziam os astrônomos gregos, a teoria deve somente <i>salvar os fenômenos.</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;">Há muitas versões do <i>realismo científico </i>e do <i>antirrealismo científico. </i>Mesmo Pierre Duhem não se encaixa totalmente nas categorias de <i>positivismo, antirrealismo, convencionalismo </i>ou <i>instrumentalismo. </i>Tampouco o antirrealismo é uma forma de <i>ceticismo </i>puro e simples. O Professor Wray observa que o antirrealista<i> </i>não é um cético <i>tout court, </i>mas que suas dúvidas se limitam a dois aspectos das teorias científicas:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1) As afirmações que nossas teorias fazem a respeito de entidades e de processos inobserváveis;</div><div style="text-align: justify;">2) A afirmação de que temos boas razões para acreditar que uma teoria verdadeira se encontra entre a série de teorias que os cientistas selecionaram.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, a questão antirrealista é <i>ontológica, </i>e não <i>pragmática </i>(Professor Wray não usa esses termos)<i>. </i>Sem dúvida as teorias que os físicos apresentam são imensamente bem-sucedidas nas sua capacidade de descrever os fenômenos e de fazer predições acuradas, mas isso nos obriga a acreditar que o mundo é <i>de facto </i>tal qual as teorias afirmam? O problema epistemológico central é saber se aceitar uma teoria em termos de seus sucessos preditivos torna necessário aceitar que todas as entidades que ela postula, ainda que sejam inobserváveis direta ou indiretamente, existem do mesmo modo como uma cadeira existe. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Posta sob outra perspectiva, a questão é se aceitar o inegável sucesso descritivo-preditivo da física newtoniana <i>exige</i> aceitar, por exemplo, a existência de entidades reais chamadas <i>forças</i>. Ademais, é possível manter a <i>estrutura matemática </i>do newtonianismo, utilizá-la pragmaticamente, mesmo não aceitando mais a existência de <i>forças. </i>Bastaria para isso que encarássemos o mundo <i><b>como se</b> </i>ele fosse exatamente como a teoria o descreve a fim de nos beneficiarmos daquilo que a teoria tem para oferecer <b>dentro de seu escopo.</b> </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ora, para resolver essa questão seria necessário termos meios epistemológicos e lógicos de determinar, para além de toda dúvida, que uma teoria científica é <i>verdadeira na sua integralidade</i>. É preciso distinguir claramente entre a <i>verdade factual</i> de uma teoria e a nossa capacidade de <i>saber</i> que ela é verdadeira. A primeira é uma questão ontológica, isto é, de como o mundo é tal como enunciado na teoria. A segunda é uma questão epistemológica, isto é, de saber que uma teoria é verdadeira. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em suma, podemos estar certos sem saber que estamos certos. Pode acontecer que o que dizemos de fato corresponda a como o mundo é. Teríamos uma <i>opinião verdadeira</i>, algo que Platão já identifica no <i>Teeeteto. </i>Trata-se só de uma opinião que calhou estar de acordo com a realidade sem que seu proponente tenha quaisquer condições de apresentar as razões pelas quais acredita naquilo que diz. Considerada do ponto de vista prático, uma opinião verdadeira serve tanto quanto o conhecimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Epistemologicamente, no entanto, a opinião verdadeira não é suficiente. É preciso saber <i>justificar </i>para si mesmo e para os outros por quais razões alguém acredita que sua opinião seja verdadeira. Ou ainda, é necessário transformar a opinião em <i>conhecimento. </i>A justificação é justamente o modo de transpor os limites da opinião na direção do conhecimento legítimo. Ao apresentar boas razões para acreditar em suas declarações, o proponente demonstra que o que ele diz pode ser considerado verdadeiro por todos os que considerarem honestamente as mesmas evidências. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As formas tradicionais de determinar se uma teoria científica é verdadeira ou falsa são a <i>verificação </i>e a <i>refutação </i>respectivamente<i>. </i>Em ambos os casos, a pedra de toque é o sucesso e o fracasso preditivos. <i>Grosso modo, </i>se as predições de uma teoria se mostram verdadeiras, ela está <i>verificada, demonstrada, provada. </i>Se as predições não se confirmam, ela está <i>refutada. </i>Há vários problemas lógicos e epistemológicos envolvidos nesses dois métodos de averiguação científica.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O mais óbvio problema com a verificação é que é logicamente possível que de premissas falsas sejam inferidas conclusões verdadeiras. Mais ainda, tentar provar uma conjectura por suas consequências verdadeiras é cair na <i>falácia da afirmação do consequente.** </i>Karl Popper, por seu turno, mostrou que nenhum conjunto limitado de predições verdadeiras é logicamente suficiente para afirmar uma lei, cuja característica definidora é ser uma sentença <i>universal.</i></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No caso da refutação, bastaria em tese uma só predição falsa para logicamente se inferir a falsidade da teoria. Acontece, porém, que mesmo Karl Popper admite que os cientistas avaliam os testes das predições ancorados em diversas condições laboratoriais e teóricas que podem muito bem ser colocadas em xeque a cada refutação de um predição. Está nas mãos dos cientistas aceitar ou não a validade dos testes realizados. A lógica não fornece nenhum amparo para a decisão concreta dos cientistas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esses problemas foram em grande parte antecipados nas obras de Duhem. Professor Wray apresenta em seu livro o famoso argumento da <i>subdeterminação das teorias, </i>também conhecido como <i>tese Duhem-Quine. </i>O argumento afirma que um teste empírico de uma teoria nunca é feito isoladamente, mas como um conjunto de asserções, e que o fracasso de uma predição implica na refutação do complexo inteiro de asserções tomado como um bloco. O trabalho do cientista nessas condições é tentar encontrar onde se encontra o erro. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas palavras de Duhem:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>"Em resumo, o físico não pode jamais submeter ao controle da experiência uma hipótese isolada, mas somente todo um conjunto de hipóteses. Quando a experiência está em desacordo com suas previsões, ela lhe ensina que uma ao menos das hipóteses que constituem esse conjunto é inaceitável e deve ser modificada. Mas ela não designa aquela que deve ser mudada." </i>(<i>La Théorie Physiqye, </i>p.262)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ponto é que, sendo formada por um conjunto de afirmações, a teoria cuja predição se mostra falsa nunca especifica <i>qual </i>parte dela está errada e <i>qual</i> parte está certa. A refutação de uma predição mostra que, tomada como um <i>bloco, </i>a teoria é falsa, mas isso não significa que <i>cada </i>uma das afirmações que a constituem é falsa. Aqui se aplica a diferença lógica entre <i>todo </i>e <i>cada. </i>Uma coisa é afirmar que a conjectura é como um <i>todo</i> é falsa, outra coisa completamente diferente é dizer que <i>cada </i>uma das suas partes constituintes é falsa. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A tarefa agora é determinar qual ou quais as afirmações erradas e modificá-las. Ocorre que não há regra lógica que guie esse processo. O cientista pode tanto abandonar a teoria inteira e substituí-las por uma nova ou pode se dedicar a mudar partes específicas a fim de remontar a teoria tornando-a imune aos erros preditivos que a refutaram. Em ambos os casos o cientista está sendo absolutamente racional, dado que logicamente nada impede nenhuma das duas decisões. Somente o <i>bom senso, </i>diz Duhem, vai determinar a direção a ser tomada e por quanto tempo ela deve ser mantida.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em termos puramente lógicos, tanto o cientista que abandona a sua teoria nas primeiras predições falsas quanto aquele que a mantém fazendo modificações pontuais indefinidamente estão racionalmente justificados. Tanto o abandono pode ser uma decisão justificada quanto a modificação contínua da teoria pode ser conduzida indefinidamente, sem nenhum limite determinado. Só um etéreo <i>bom senso </i>vai decidir a questão, quando os cientistas percebem que tomaram o curso errado ou que estenderam por tempo demasiado os pretendidos consertos na sua teoria.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se não podemos logicamente decidir entre dois caminhos diante do erro preditivo de uma teoria, podemos ao menos determinar um <i>experimentum crucis</i> que decidirá entre duas teorias qual é a verdadeira. O raciocínio aqui é próximo de uma <i>reductio ad absurdum, </i>na qual uma consequência absurda deduzida rigorosamente das premissas de uma tese demonstra inequivocamente sua falsidade. Teríamos então duas teorias, <i>A </i>e<i> B, </i>e se cada uma das duas predissesse fenômenos diferentes, aquela que acertar a predição será a vitoriosa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Duhem assevera que isso é impossível no campo das ciências físico-matemáticas. A razão é simples: se entre <i>A </i>e <i>B </i>não houvesse possibilidade lógica de nenhuma outra alternativa, então o acerto de <i>A </i>condenaria definitivamente <i>B. </i>Contudo, não é necessariamente verdade que só existam duas alternativas. Em uma disjunção, <i>A ou B, </i>se <i>A </i>é verdadeiro, necessariamente <i>B </i>é falso. Mas seria falacioso afirmar que em toda disjunção as opções dadas ou escolhidas esgotam completamente as possibilidades. A disjunção não tem por si mesma o poder de restringir absolutamente as possibilidades àquelas que foram postas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, o cientista diante de <i>A </i>e de <i>B, </i>a não ser que ele consiga mostrar que essas são as únicas opções concebíveis, jamais poderá afirmar que <i>A </i>é absolutamente a verdadeira resposta somente pelo fato de que <i>B </i>é falso. Uma comparação que não esgota entre as suas opções todas as possibilidades concebíveis pode somente determinar qual das opções dadas é a verdadeira. Entre <i>A </i>e <i>B</i> podemos decidir que <i>A </i>é a verdadeira, mas não podemos afirmar que <i>A </i>é a única opção verdadeira concebível. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na realidade, nenhum cientista pode conceber todas as possibilidades lógicas de explicação de um fenômeno. O que ele faz é somente escolher entre algumas opções à disposição. Dentre essas opções, alguma pode talvez resistir a todos os testes e derrotar todas as outras. Não se segue logicamente daí que a opção vitoriosa seja definitivamente a única possível. Escolher entre as cartas que se tem à mão em um jogo não significa escolher entre as únicas cartas do baralho. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os <i>realistas científicos</i> que confiam nesses métodos de verificação ou de refutação têm que resolver esses problemas para que faça algum sentido a sua pretensão de que os cientistas conseguem de fato identificar entre as suas opções teóricas aquela que é verdadeira ou aproximadamente verdadeira. No caso da refutação (ainda que admitamos que uma refutação definitiva seja possível), mostrar que uma teoria é falsa não nos conduz para mais próximo da verdade. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sim, como queria Karl Popper, quando uma opção errada é eliminada há menos um concorrente na disputa. Mas somente se o número de opções realmente for limitado poderíamos nos sentir mais próximos da verdade. Dado que não conseguimos conceber todas as opções logicamente possíveis, a refutação de uma teoria não nos coloca necessariamente mais próximos da teoria definitivamente verdadeira. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No caso da verificação, encontrar uma teoria vencedora entre as suas rivais significa somente encontrar aquela que se sustenta melhor diante das concorrentes. Logicamente, nada indica que a vencedora seja a opção derradeira. A consequência disso é que os realistas não podem afirmar que necessariamente a teoria absolutamente verdadeira ou aproximadamente verdadeira estava entre as opções avaliadas pelos cientistas. Em um momento histórico, uma teoria pode vencer a competição com as suas rivais e ser considerada um conhecimento definitivo e inalterável. Nada impede que tempos depois apareça uma nova rival até então impensada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A circunscrição da avaliação das teorias àquelas que estão no momento disponíveis é o centro <i>"argumento a partir da subconsideração". </i>Basicamente, os cientistas nunca são capazes de esgotar todas as possibilidades de explicação de um fenômeno, sendo sua decisão por uma teoria sempre limitada às alternativas disponíveis na atualidade. Em certo sentido, o argumento não é novo, pois Thomas Kuhn, e, principalmente, Imre Lakatos e Larry Laudan, já haviam defendido que a avaliação de <i>paradigmas, programas de pesquisa </i>ou <i>tradições de pesquisa, </i>respectivamente, sempre são tentativas e só se referem ao estado atual e nunca ao futuro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O Professor Wray salienta que o argumento não diz que os cientistas não sejam <i>confiáveis </i>em seus juízos sobre as teorias escolhidas. Eles o são, mas tão somente na sua habilidade em escolher a <i>melhor teoria entre as alternativas disponíveis. </i>Possuir o <i>know how </i>para identificar, dentro de parâmetros estabelecidos (adequação, simplicidade, beleza, coerência, etc), qual é a melhor teoria entre as alternativas é algo bem diferente de saber identificar qual delas é a<i> verdadeira. </i>Atender a certos parâmetros pode manifestar a qualidade superior de uma teoria frente às concorrentes, mas não necessariamente garante a sua veracidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um argumento que pode ser contraposto é o de que os cientistas avaliam teorias que já foram selecionadas por sua concordância com outras teorias e asserções mais básicas e estabelecidas pelo tempo (<i>background theories</i>), sendo então improvável que sua escolha entre as alternativas selecionadas seja errônea. Isto é, o cientista não busca somente uma nova teoria sobre um fenômeno da realidade, ele busca também uma nova teoria que esteja em <i>concordância</i> com as teorias estabelecidas no passado. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essas <i>teorias de fundo</i> e asserções bem assentadas são consideradas verdadeiras pelos cientistas, de modo que seria improvável que a nova teoria escolhida (a melhor entre as que estão em concordância com as<i> teorias de fundo</i>) não fosse também verdadeira. O Professor Wray responde a essa objeção admitindo que tal <i>background</i> realmente restringe o número de alternativas disponíveis para a avaliação. Entretanto, o problema é que o próprio <i>background </i>pode ser igualmente um empecilho para o desenvolvimento de teorias verdadeiras. A história da ciência mostra o quanto o apego a certos fundamentos obstaculizou a aceitação de teorias hoje estabelecidas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ora, mais do que isso, nada impede que as <i>teorias de fundo </i>também<i> </i>estejam erradas<i>, </i>por mais bem estabelecidas que pareçam ser. Reformas conceituais nos fundamentos fazem parte da história do pensamento científico. Karl Popper, apesar de realista, demonstrou muito bem o caráter inelutavelmente <i>conjectural </i>das teorias científicas. A <i>corroboração</i> das teorias, explica Popper, se refere somente ao seu <i>status </i>atual, ou seja, significa somente que elas resistiram aos testes <i>até o momento. </i>Nada garante que no futuro elas não sejam refutadas.</div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;">A filósofa da ciência Mary Hesse observou em seu artigo <i>Truth and the Growth of Scientific Knowledge </i>que as teorias atuais são passíveis de sofrer revisões radicais tanto quanto as antigas<i>. </i>Ela<i> </i>distingue dois tipos de progresso científico: em um sentido pragmático-instrumental progredimos muito em observações e na acuracidade das predições, o que não implica em um progresso <i>ontológico, </i>isto é, em uma aproximação cada vez melhor da verdadeira essência da realidade. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Hesse não defende que não possa haver verdade entre as teorias científicas aceitas. A questão é que teorias muito bem assentadas, e consideradas verdadeiras no passado, foram depois abandonadas e substituídas por outras. Não há nenhum motivo epistemológico relevante para se considerar que as teorias atuais estejam ao abrigo do mesmo destino no futuro imediato ou distante, e nem que os cientistas de hoje possuam algum <i>privilégio epistêmico</i> que os impeça de cometer erros como aqueles cometidos por seus antecessores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Leia também: </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Filosofia%20da%20Ci%C3%AAncia">Νεκρομαντεῖον: Filosofia da Ciência (oleniski.blogspot.com)</a></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/epistemologia">Νεκρομαντεῖον: epistemologia (oleniski.blogspot.com)</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">* Resumo da posição de Duhem: <a href="https://oleniski.blogspot.com/2018/10/pierre-duhem-e-o-realismo-estrutural.html" style="text-align: left;">Νεκρομαντεῖον: Pierre Duhem e o realismo estrutural não-explicativo da teoria física (oleniski.blogspot.com)</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">** Na forma lógica de um condicional: <i>Se P, então Q/ Q é verdadeiro/ então P é verdadeiro</i>. Como <i>P </i>é uma mera hipótese, não sabemos se é verdadeiro ou falso. A verdade de <i>Q, </i>no entanto, não garante a verdade de <i>P. </i>Por exemplo, <i>se o preço do arroz for diminuído, então haverá mais compra de arroz pelos consumidores/ Há mais compra de arroz pelos consumidores/ então o preço foi diminuído. </i>Nada indica que necessariamente o preço abaixou só porque a venda aumentou. Outro fator pode ser o responsável, como a falta de outros produtos.</div>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-19556322561896357432023-11-21T15:06:00.000-03:002023-11-21T15:06:32.573-03:00Maimônides, Criação e eternidade do mundo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4a2EUGdZROVDD1e91V25WumQZbjJ6w-uXHyHjNf05O302kn4kQb7H0dqwXQSa4G504OqNFp0V_oVhVQSng9CcwDDslY13nR5cp10nTgmJdI6_qjB23ot8XSb3O59sw5WCm7YIm809LdnFO7u3_H_T-88gK6pUOhtU8JAdwyVRiUK3nr4ynmpvzP71E8fw/s320/%D7%91%D7%A8%D7%90%D7%A9%D7%99%D7%AA%20%D7%9B%D7%95%D7%AA%D7%A8%D7%AA%20(1).jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="239" data-original-width="320" height="239" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4a2EUGdZROVDD1e91V25WumQZbjJ6w-uXHyHjNf05O302kn4kQb7H0dqwXQSa4G504OqNFp0V_oVhVQSng9CcwDDslY13nR5cp10nTgmJdI6_qjB23ot8XSb3O59sw5WCm7YIm809LdnFO7u3_H_T-88gK6pUOhtU8JAdwyVRiUK3nr4ynmpvzP71E8fw/w320-h239/%D7%91%D7%A8%D7%90%D7%A9%D7%99%D7%AA%20%D7%9B%D7%95%D7%AA%D7%A8%D7%AA%20(1).jpg" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div>"No princípio criou Deus o céu e a terra."</div><div><br /></div><div>GÊNESIS, 1,1 *</div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">"Com relação às provas de Aristóteles e de seus seguidores para a eternidade do mundo, elas são, de acordo com minha opinião, inconclusivas, e são sujeitas a fortes objeções, como explicarei adiante. Pretendo mostrar que a teoria da Criação, como exposta nas Escrituras, não contém nada que seja impossível, e que todos aqueles argumentos filosóficos que parecem refutar nossa visão contém pontos fracos que os tonam inconclusivos."</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, <i>"O Guia dos Perplexos", </i>Livro II, capítulo XVI</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><p style="text-align: justify;">No capítulo XIII do Livro II de sua obra mais importante, <i>"O Guia dos Perplexos"</i>, o filósofo, teólogo e rabino cordobês medieval Rabbi Moisés ben Maimônides discute o candente problema da eternidade do mundo. A questão será de grande importância por todo o período da Antiguidade tardia, passando pela Idade Média até nossos dias por conta de sua aparente discordância com a doutrina da <i>Criação ex nihilo</i>, característica das três religiões abraâmicas. </p><p style="text-align: justify;">A <i>Criação</i>, segundo a Lei de Moisés, significa que o mundo, com tudo o que ele contém, inclusive o tempo, foi trazido da inexistência à existência por Deus. Isso implica dizer que Deus precede o mundo, existindo em um infinito espaço de tempo anterior ao ato da <i>Criação</i>. Mas é preciso esclarecer, Maimônides assevera, que não usa <i>tempo </i>em seu sentido real, pois o tempo é uma consequência da mudança, e foi criado junto com o mundo. O termo <i>tempo </i>deve ser entendido em um sentido análogo ou similar, não unívoco. Sendo o tempo algo criado, um acidente das coisas criadas, Deus não o produziu <i>no princípio </i>(<i>be-reshit</i>, בְּרֵאשִׁית)<i>. </i></p><p style="text-align: justify;">O Professor Maurice-Ruben Hayoun, em seu livro <i>"Maïmonide", </i>explica que <i>"Maimônides pretende mostrar que os primeiros versos do Gênese devem ser interpretados filosoficamente, sob pena de se cair necessariamente no erro. Assim, a própria expressão 'be-reshit' (=no princípio) é inadequada e militaria diretamente contra a Criação ex nihilio que ela pretende defender, se se devesse tomá-la em seu sentido óbvio. (...) Quando a Bíblia diz be-reshit (= no princípio), ela implica, se essa expressão fosse compreendida em seu sentido literal, que já existia alguma coisa, e ela nega por isso mesmo aquilo que queria provar." </i>(p.64)</p><p style="text-align: justify;">Se se admite a existência do tempo antes da <i>Criação</i>, cai-se no erro da <i>eternidade do mundo. </i>A tese aristotélica é justamente que o mundo sempre existiu e sempre existirá. Dado que o mundo físico é a esfera dos entes que mudam, que sofrem e que operam mudanças, e que a mudança tem como consequência o <i>intervalo entre dois</i> <i>"agoras" </i>(ou <i>instantes</i>), o que constitui o <i>tempo, </i>então o mundo da mudança é<i> temporal. </i></p><p style="text-align: justify;">Ora, mundo e tempo são <i>coetâneos, </i>isto é, são <i>inseparáveis. </i>Seria algo sem sentido perguntar em qual momento do tempo o mundo veio à existência ou mesmo em qual momento futuro cessará de existir, pois a noção mesma de <i>tempo </i>só possui significado <i>no mundo. </i>Consequentemente, nunca houve um tempo no qual o mundo não tivesse existência, e nunca haverá um tempo no qual o mundo não terá existência. Nesse sentido, é possível afirmar a <i>eternidade do mundo</i>, isto é, a sua perpétua existência em qualquer tempo do passado, do presente e do futuro.</p><p style="text-align: justify;">Maimônides rejeita a tese de Aristóteles acerca da eternidade do mundo por dois motivos. O primeiro é de ordem argumentativa: o filósofo não teria conseguido fornecer <i>provas </i>de sua posição. O segundo é de ordem religiosa e se baseia no fato de que a a profecia bíblica vai além daquilo que é possível ao homem conquistar argumentativamente por meio de suas faculdades racionais naturais. Portanto, Maimônides aceita a <i>Criação</i> pela autoridade divina da <i>Torá. </i>Mas isso não o impedirá de mostrar as falhas no raciocínio aristotélico acerca da eternidade do mundo.</p><p style="text-align: justify;">O argumento de Maimônides inicia com uma premissa engenhosa: não é possível inferir da natureza de algo já plenamente desenvolvido como eram suas condições no início de seu processo de desenvolvimento. Um homem adulto tem características muito diversas daquelas que tinha o mesmo homem quando era um bebê. A árvore é bem diferente da semente que um dia foi. Se não tivéssemos testemunhado o processo inteiro de desenvolvimento, do início ao fim, não poderíamos saber, conhecendo somente o fim, como teria sido seu início.</p><p style="text-align: justify;">Os aristotélicos podem assumir, pela consideração de como o mundo é atualmente, que as suas condições iniciais eram as mesmas que hoje imperam. Ninguém nega as condições do mundo atual, mas isso não assegura que elas tenham sido as mesmas no início. Por isso, nada impede que as coisas, quaisquer que sejam as suas características atuais, tenham sido tiradas por Deus da absoluta inexistência no momento mesmo de sua produção.</p><p style="text-align: justify;">Em outros termos, Maimônides quer mostrar que uma coisa é explicar como os <i>seres</i> deste mundo são produzidos ordinariamente, outra coisa completamente diferente é explicar como o próprio <i>mundo</i> foi produzido. Não é necessário logicamente que os modos de produção dos seres no interior do mundo sirvam como explicação adequada para o mundo considerado como um Todo. Haveria aqui uma <i>falácia da composição, </i>na qual se julga que necessariamente o Todo terá as propriedades das suas partes.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles julgava que a <i>matéria prima </i>(pura potencialidade) não poderia ser produzida, sendo portanto eterna. Maimônides concorda que a <i>matéria prima</i> não pode ser produzida como as coisas são produzidas no mundo. Afinal, ela é a base da produção dos entes deste mundo. Mas isso não impede que ela tenha sido criada por Deus diretamente do <i>nada. </i>Maimônides emprega o mesmo raciocínio anteriormente exposto: a <i>matéria</i>, tal como ela existe, tem determinadas características, mas daí não se pode inferir que essas características fossem as mesmas ou valham igualmente para a sua produção <i>ab origine.</i></p><p style="text-align: justify;">O mesmo se dá com a <i>mudança. </i>Aristóteles afirma que a mudança não pode ser produzida ou destruída, pois a produção da mudança já seria uma mudança, assim como a destruição da mudança já seria uma mudança. Maimônides concorda que o mundo é desse jeito, e que a mudança no interior do mundo tem essas características. Ocorre que isso não acarreta, diz Maimônides, que a produção da mudança em termos absolutos, isto é, que o modo como Deus cria a mudança na sua totalidade seja idêntico ao modo como a mudança se dá no interior do mundo. </p><p style="text-align: justify;">O Rabbi admite que nenhum desses argumentos pode <i>provar</i> a <i>Criação</i> desde o <i>nada. </i>A<i> s</i>ua intenção é só e tão somente estabelecer a admissibilidade da <i>Criação</i> pela análise da fraqueza das objeções dos defensores da eternidade do mundo. A estratégia argumentativa não é mostrar demonstrativamente que Deus tudo criou a partir do <i>nada. </i>Basta mostrar que os argumentos contrários são fracos, e que, portanto, nada há que impeça a admissão da possibilidade da <i>Criação</i> <i>ex nihilo.</i></p><p style="text-align: justify;">Um desses argumentos é o de que a <i>Criação</i> implicaria uma mudança em Deus. Se o mundo teve um início, então houve um tempo em que Deus nada fazia, e, posteriormente, um momento a partir do qual Deus dedicou-se a criar as coisas. A própria passagem da inatividade à atividade constituiria uma mudança no seio da divindade. Isso é impossível, pois a mudança é algo que implica temporalidade, e Deus é eterno justamente porque é imutável. A <i>Criação</i> não preserva a eternidade e a imutabilidade divinas.</p><p style="text-align: justify;">Maimônides argumenta, novamente de modo engenhoso, que essa tese seria verdadeira se ela se referisse a entes deste mundo, compostos de Forma e matéria. De fato, se algo não age em um determinado momento e passa a agir em outro momento posterior, a passagem da inatividade à atividade só acontece como uma mudança na coisa que passa a agir. Porém, como foi determinado antes, uma coisa é o mundo tal como ele é depois de trazido à realidade, outra é como o mundo foi trazido à realidade. </p><p style="text-align: justify;">Será que a <i>Criação</i> realmente implica mudança em Deus do mesmo modo que nas coisas deste mundo uma ação posterior à inação implica mudança? A resposta, segundo Maimônides, é negativa. Deus não é alguma das coisas deste mundo que contém em si sempre um conjunto de potencialidades que podem ou não ser efetivadas. Portanto, Deus não possui potencialidades no sentido de possibilidades ainda por realizar. </p><p style="text-align: justify;">Todavia, os próprios aristotélicos, seguindo o <i>De Anima </i>de Aristóteles, admitem que no caso do <i>Intelecto Ativo </i>(pelo qual inteligimos os inteligíveis), ele está sempre em exercício. Se não inteligimos o tempo todo é porque nós nem sempre temos preparados os elementos necessários à intelecção. Por essa razão, pode-se dizer que o <i>Intelecto Ativo </i>nem sempre age, e, ao mesmo tempo, podemos dizer que o <i>Intelecto Ativo </i>age sempre. A razão disso reside no fato de que não é o <i>Intelecto Ativo </i>que age agora e depois cessa de agir, mas sim as condições externas a ele que <i>só são adequadas de tempos em tempos.</i></p><p style="text-align: justify;">Ilustrando para melhor compreensão, a bomba de água que fornece a água da torneira está sempre funcionando. Entretanto, a água só jorra quando a torneira é aberta. Em um sentido, a bomba está sempre em ação, e em outro sentido, ela só age quando a torneira é aberta. Não se pode dizer, contudo, que a bomba só age <i>exclusivamente</i> quando a torneira é aberta e a água jorra. Analogamente, o <i>Intelecto Ativo </i>sempre está em exercício, embora nem sempre tenhamos as condições necessárias para que esse exercício <i>surta efeito</i>.</p><p style="text-align: justify;">Maimônides aplica o mesmo raciocínio a Deus, ou seja, a Criação não implica necessariamente qualquer mudança em Deus, assim como as condições necessárias para a intelecção não mudam o caráter de perpétuo exercício do <i>Intelecto Ativo. </i>Com isso, ao menos, consegue-se afastar a objeção de que a Criação seria uma mudança em Deus. O rabino é claro, porém, com relação àquilo que se pode inferir de seu argumento. Tudo o que se pode afirmar é que, qualquer que seja a razão pela qual o <i>Intelecto Ativo </i>não age sempre, não é necessariamente verdade que ele tenha passado por alguma mudança.</p><p style="text-align: justify;">Aplicando-se o argumento a Deus, não é possível dizer que Deus age em um tempo e não em outro, de modo semelhante ao <i>Intelecto Ativo, </i>que age intermitentemente. Seria falacioso inferir isso do argumento. O que pode justamente ser inferido é que, não sendo<i> </i>um objeto corporal ou uma força em um corpo, o <i>Intelecto Ativo </i>age intermitentemente, e, no entanto, qualquer que seja a causa dessa intermitência, não dizemos que o <i>Intelecto Ativo</i> passou da potência ao ato. Analogamente, Deus, não sendo corpo ou poder em um corpo, qualquer que seja a razão pela qual Ele não age sempre ou a razão pela qual a <i>Criação </i>aconteça em determinado tempo e não em outro, nada disso implica necessariamente qualquer mudança no próprio Deus. </p><p style="text-align: justify;">Alguns dirão que, se a <i>Criação </i>não se dá no momento mesmo da vontade divina, então algo mudou em Deus ou Ele foi impedido por algo externo de realizar a Sua vontade. Maimônides responde a esse argumento apontando para o fato e que essa descrição cabe para os seres finitos e corporais, não para um ser imaterial como Deus. Nada pode impedir Deus de criar o que desejar no momento em que Ele desejar, sendo Sua vontade eterna e imutável. E vale aqui o mesmo argumento contra a mudança em Deus visto acima: o fato de que a <i>Criação </i>aconteça em algum momento, não implica logicamente nenhuma passagem de potência a ato em Deus.</p><p style="text-align: justify;">Outro argumento apresentado contra a <i>Criação </i>é o de que se Deus quer que algo tenha existência, esse algo existe imediata e necessariamente. Tudo o que há se deve à sabedoria de Deus que, por seu turno, é eterna como Deus é eterno. Se a causa do mundo<i> </i>é a sabedoria eterna de Deus, então o mundo deveria ele também ser eterno. Maimônides considera o argumento fraco. A sabedoria de Deus é o próprio Deus, portanto tão incompreensível quanto Deus. Somos completamente ignorantes quanto aos modos e às vias divinas. Nada nos permite saber por qual razão Deus agiu antes ou depois.</p><p style="text-align: justify;">Os aristotélicos consideram, fundamentalmente, que o mundo é um efeito necessário e inseparável de Deus. Segue-se daí que o mundo não é resultado de escolha, desígnio ou desejo. Ao fim e ao cabo, o mundo é um efeito que se segue necessariamente da existência de sua causa. Contrariando Aristóteles, Maimônides afirma que as coisas são produto do desígnio, não somente da necessidade. E aquele que é a fonte do desígnio pode mudá-lo, embora nem todo desígnio seja mutável (há o impossível, o que não pode ser mudado).</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles tem como certeza que tudo neste mundo é resultado da <i>natureza </i>intrínseca às coisas, e não da escolha ou do arbítrio livre (não se está referindo aqui aos atos do ser humano, mas somente das coisas puramente materiais). Toda a sua <i>Física </i>é construída para demonstrar essa tese. No que tange ao <i>mundo sublunar, </i>isto é, o mundo abaixo da esfera da Lua que é composto pelos quatro elementos materiais (água, terra, fogo e ar), Maimônides considera que as explicações do filósofo grego são verdadeiras, ilustrando corretamente as relações de causa e efeito.</p><p style="text-align: justify;">Entretanto, quando Aristóteles se volta para o <i>mundo supralunar, </i>o mundo dos corpos celestes e das suas esferas (constituído de matéria diferente, o <i>éter</i>), ele não consegue o mesmo sucesso em mostrar as relações de causa e efeito. Em alguns casos, as esferas celestes movem-se em maior velocidade com relação às outras, e em outros casos a velocidade é a mesma. Nada disso é explicado a contento somente pelo apelo às naturezas dos corpos celestes. </p><p style="text-align: justify;">Ao que parece, Aristóteles tinha consciência desse defeito, tanto que afirma que vai explicar esses problemas na medida de sua "capacidade, sabedoria e opinião". Maimônides refere-se aqui aos problemas envolvendo a velocidade e a direção do movimento circular perpétuo das esferas celestes, nas quais estavam localizados os planetas. Para dar conta do movimento aparente desses planetas, Aristóteles sentiu-se obrigado a atribuir velocidades diferentes a esses corpos celestes, sem que razões físicas consistentes fossem apresentadas.</p><p style="text-align: justify;">Todo esse problema pode ser resolvido facilmente pelo desígnio divino que, por sua livre sabedoria, ordenou as coisas da maneira em que estão ordenadas. O que não significa que saibamos a razão pela qual Deus organizou as coisas do modo como o fez. Por exemplo, como explicar o porquê das estrelas permanecerem estacionárias e as esferas dos planetas estarem sempre em movimento? Este e outros problemas não são solucionados por apelo à necessidade de pretensas leis permanentes da natureza. </p><p style="text-align: justify;">A resposta é que essas coisas são resultado do desígnio divino cujo propósito é impossível para nós desvendar. Sabemos, no entanto, que nada é feito sem razão, por acaso ou em vão. Então, quaisquer que sejam os motivos de Deus, essas coisas estão ordenadas segundo algum propósito, e não são o resultado da necessidade das naturezas intrínsecas das coisas. As diferentes velocidades e direções das esferas e a fixidez das estrelas são os melhores argumentos a favor do desígnio divino, segundo Maimônides.</p><p style="text-align: justify;">Quando Maimônides nega que o mundo não é um <i>"resultado necessário" </i>da causa eficiente (Deus), ele quer dizer que não se trata do caso de algo que não pode ser separado de sua causa. As porções do mundo são cada uma delas o <i>resultado necessário</i> de sua causa anterior, subindo na escala dos seres até à <i>Causa Primeira. </i>Maimônides concorda com Aristóteles, fazendo a ressalva de que essa <i>Causa Primeira, </i>Deus, <i>"criou o universo inteiro com desígnio e vontade, de tal modo que o Universo que não tinha existência anterior foi trazido à existência".</i></p><p style="text-align: justify;">O rabino cordobês quer preservar a <i>liberdade criativa </i>de Deus. O mundo não pode ser um efeito necessário de Deus como o calor é um efeito necessário do fogo (onde não há nenhuma ação deliberada na criação de seu efeito). Uma vez que alguém acenda uma chama, o calor advirá como consequência necessária e inseparável do fogo. Não existe desígnio, decisão ou vontade do fogo em criar o calor. Simplesmente este se segue naturalmente daquele. Não pode ser esta a relação causal que se estabelece entre Deus e o mundo, dado que Deus não é comparável às coisas deste mundo.</p><p style="text-align: justify;">Se no interior do universo os efeitos são <i>resultados necessários </i>de suas causas, o mesmo não pode ser dito do universo (tomado na sua totalidade) com relação a Deus. Maimônides aponta para a <i>absoluta diferença </i>entre<i> </i>aquilo que há no mundo e <i>o que é Deus</i>. É óbvio que podemos subir dos efeitos às causas, chegando assim a Deus como <i>Causa Primeira </i>de todas as coisas. Permanece válido o raciocínio que mostra Deus como a causa do mundo. O que é problemático é conceber que a causalidade exercida por Deus é do <i>mesmo gênero </i>que a causalidade exercida pelas coisas no <i>interior </i>do mundo já existente.</p><p style="text-align: justify;">Recai sobre Aristóteles conclusão severa de Maimônides segundo a qual o grego estava certo em tudo o que referia ao <i>mundo sublunar, </i>mas<i> </i>no tocante ao <i>mundo supralunar </i>suas doutrinas eram, em sua maioria, <i>"mera imaginação e opinião". </i>Só<i> </i>Deus possui perfeito conhecimento do que vai nos céus. O homem só conhece aquilo que está em seu próprio <i>mundo sublunar. </i>Devemos nos ater àquilo que está sob nosso alcance como seres humanos, e não tentar perscrutar mundo celeste que está tão longe de nós.</p><p style="text-align: justify;">Ademais, a razão pela qual rejeita a eternidade do mundo se encontra em dois motivos, assevera Maimônides: a primeira é que se há uma prova racional que implique em uma contradição patente com as Escrituras, estas devem ser interpretadas de modo diverso do que têm sido. O problema é que a eternidade do mundo, embora esteja em contradição com o relato mosaico, não oferece razões probantes para a sua adoção. Sendo assim, o sentido literal da <i>Torá</i> deve ser mantido. </p><p style="text-align: justify;">O segundo motivo é que a ideia de que o mundo é eterno, e resultado da causalidade necessária de Deus, envolve a impossibilidade de qualquer mudança nas leis naturais fixas, expulsando de vez qualquer ação sobrenatural como os milagres e os sinais, pilares da fé. Com a <i>Criação, </i>milagres são perfeitamente possíveis. Afirmar com Aristóteles que tudo se dá por meios naturais seria negar a própria <i>Torá</i>. Deus criou e mantém as coisas deste mundo com um determinado comportamento natural invariável. Somente no milagre, de forma passageira, as coisas individuais podem ter suas propriedades alteradas. </p><p style="text-align: justify;">Maimônides logo tem o cuidado de esclarecer que nem tudo no relato da <i>Criação </i>deve ser interpretado literalmente, sob pena de criar blasfêmias e concepções errôneas de Deus. É mister interpretar as Escrituras com o conhecimento intelectual e demonstrativo. Por exemplo, na <i>Torá, </i>quando se diz <i>no</i> <i>princípio, </i>é preciso distinguir dois sentidos diferentes: <i>primeiro</i> e <i>princípio. </i>Aquilo que é <i>princípio</i> de algo é coetâneo com aquilo do qual é <i>princípio, </i>como o coração é o princípio do ser vivo. O coração não vem antes do ser vivo, mas, ao contrário, o ser vivo só pode viver justamente porque o coração está nele ao mesmo tempo em que o ser vivo vive.</p><p style="text-align: justify;">O <i>primeiro </i>tem um sentido particular daquilo que vem temporalmente antes de algo, sem que seja a causa desse algo. Tal qual o primeiro morador de uma casa não implica qualquer relação causal com quem vier, se vier, a habitar a casa. O mundo não foi criado por nada anterior a ele, como se <i>princípio </i>implicasse qualquer coisa<i> já existente. </i>O tempo, como dito anteriormente, foi criado na <i>Criação. </i>A verdadeira explicação do verso bíblico é <i>"na criação do princípio, Deus criou os seres acima e os seres abaixo." </i></p><p style="text-align: justify;">Maimônides resume em seguida os fundamentos da fé judaica: Deus criou tudo do <i>nada </i>(não havia nada anterior ao mundo), e o tempo não existiu previamente (foi criado), pois depende (da criação) do movimento das esferas celestes.</p><p style="text-align: justify;">Alguns comentários podem ser feitos a esse texto reconhecidamente difícil do Rabbi Maimônides. O primeiro deles é que parece haver uma ambiguidade na argumentação apresentada com relação à diferença entre a <i>Criação </i>e a <i>eternidade do mundo. </i>Se o rabino admite claramente como o faz que o tempo foi criado com o mundo, qual a real diferença entre as duas teorias? Eliminado o tempo, a <i>Criação </i>seria um "evento" <i>atemporal, </i>isto é, nunca houve um tempo anterior à criação do tempo. </p><p style="text-align: justify;">Assim, o tempo seria necessariamente uma dimensão exclusivamente <i>mundana, </i>um aspecto inelutavelmente ligado ao próprio mundo. Dado que o mundo teria sido criado, não faria mais nenhum sentido em falar de tempo a não ser para se referir a eventos <i>dentro</i> do mundo. Dizer que o tempo foi criado com o mundo (porque, <i>de facto</i>, são realidades inseparáveis) é tornar a <i>Criação </i>não um evento com um <i>antes </i>e um <i>depois </i>(o que implicaria tempo). A <i>Criação </i>teria que ser reinterpretada em termos não mais de um acontecimento, mas sim de uma <i>dependência ontológica </i>do mundo com relação a Deus.</p><p style="text-align: justify;">Não houve uma <i>Criação </i>na qual o mundo antes não existia e passou a existir,. O que está expresso na <i>Criação </i>não é um evento temporal, mas tão somente a afirmação de que o mundo (e tudo que há nele) não existe a não ser pelo poder causal de Deus. Nesse caso, a <i>Criação </i>e a <i>eternidade do mundo </i>se equivalem, pois para ambos o tempo seria necessariamente uma realidade <i>do</i> <i>mundo, </i>não cabendo nenhum momento no qual o mundo pudesse não ter existido (preservando-se aqui a sua dependência de Deus em ambos os casos). </p><p style="text-align: justify;">Os argumentos de Maimônides contra as objeções dos aristotélicos acerca da <i>Criação </i>não parecem ajudar muito a sua causa. Sabemos que o rabino aceita por fé a doutrina judaica da <i>Criação ex nihilo, </i>e que seus argumentos contra Aristóteles não têm a intenção de refutar a <i>eternidade do mundo. </i>O que ele quer é mostrar que os argumentos de Aristóteles a favor da <i>eternidade do mundo </i>são inconclusivos e que as objeções à <i>Criação </i>são fracas.</p><p style="text-align: justify;">Sem julgar a afirmação de que os argumentos aristotélicos não são probantes, as respostas de Maimônides às objeções aristotélicas não parecem ser muito convincentes. O argumento de que Deus, como o <i>Intelecto Ativo, </i>pode ser a um só tempo sempre efetivo e causar em um tempo e não em outo esbarra no fato de que são condições exteriores que impedem ou limitam a atividade do <i>Intelecto Ativo. </i>Que forças externas podem haver que impeçam a ação divina? Qual seria o obstáculo diante do qual a efetividade perpétua de Deus seria limitada?</p><p style="text-align: justify;">Engenhoso que seja, o argumento não parece realizar aquilo que o rabino quer: mostrar que não há contradição em que Deus seja sempre ativo e mesmo assim aja só em momentos determinados. Permanece o problema da mudança em Deus. Se houve um tempo em que Deus não agiu, então houve mudança entre o momento em que não agia e o momento em que passou a agir. </p><p style="text-align: justify;">Todavia, o argumento engenhoso da diferença entre a causalidade divina e a causalidade mundana é mais profundo. De fato, a causalidade divina não pode ser <i>idêntica </i>a das coisas deste mundo. Não parece ser possível falar do mundo como uma consequência necessária de Deus. Seria rebaixar Deus ao nível dos <i>entes. </i>Se há certamente alguma analogia entre a ação causal divina e ação causal das coisas deste mundo, isso não significa que Deus causa as coisas <i>da mesma forma </i>que as coisas causam umas à outras. <i>Deus não é um ente entre outros entes.</i></p><p style="text-align: justify;">As limitações das coisas não se aplicam a Deus, pois Ele é, por assim dizer, o <i>princípio limitador de tudo, </i>no sentido em que é Ele que impões às coisas os seus limites, circunscrições, configurações, essências, etc. Deus é o <i>absolutamente livre</i>, e como tal sua causalidade só pode ser pensada (ainda assim limitadamente, por conta de nossa compreensão limitada) como <i>vontade livre e incontornável, </i>sem que se possa sequer conceber quaisquer obstáculos<i> </i>entre a vontade e a sua realização. Tomada nesse sentido, a existência do mundo não é a realização de nenhuma necessidade ou constrangimento atuando sobre Deus. </p><p style="text-align: justify;">Não faz sentido perguntar sobre as razões do <i>Princípio</i> que é o fundamento das razões que o mundo exibe, comporta, e das quais é constituído.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Maim%C3%B4nides">Νεκρομαντεῖον: Maimônides (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;">* Em hebraico: בְּרֵאשִׁ֖ית בָּרָ֣א אֱלֹהִ֑ים אֵ֥ת הַשָּׁמַ֖יִם וְאֵ֥ת הָאָֽרֶץ:</p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-66083611601660863562023-11-07T13:33:00.000-03:002023-11-07T13:33:19.317-03:00Huang Po, Prajñā e o Buddha<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7e5yJmm5QG0sP_mHMB_7QwxT-y_ustsFPPLK9LqugaIfiDW5yY0z-oMDRVoYpEGro4ckc1OxN9o8EdQ7aSBmAXTEivHZxnz5TTokOZlHb0h1EGzkc1E0gVnBqhxXbBUgNtIxjO8DoM9BGPXE-Dg-ZiQrSzRnt_Nd7odFmAUaFFFXtGj1vwFjak3P5NyHE/s591/922df32386b746497f70468c7932f3f0.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="591" data-original-width="591" height="278" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7e5yJmm5QG0sP_mHMB_7QwxT-y_ustsFPPLK9LqugaIfiDW5yY0z-oMDRVoYpEGro4ckc1OxN9o8EdQ7aSBmAXTEivHZxnz5TTokOZlHb0h1EGzkc1E0gVnBqhxXbBUgNtIxjO8DoM9BGPXE-Dg-ZiQrSzRnt_Nd7odFmAUaFFFXtGj1vwFjak3P5NyHE/w277-h278/922df32386b746497f70468c7932f3f0.jpg" width="277" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"É indispensável não sentir atração por qualquer coisa. Assim, quando virdes os Buddhas, com todas as suas marcas de perfeição, vindo ao vosso encontro, ou que tenhais toda sorte de visões agradáveis, que isso não vos entranhe em nenhum estado de espírito particular."</div><p style="text-align: justify;">HUANG PO, <i>Conversações</i></p><p style="text-align: justify;">O mestre budista chinês Huang Po ensina a seu discípulo P'ei Sieou que o grande mestre indiano <i>Bodhidharma</i>, quando de sua vinda à China, transmitiu um só método: o <i>Buddha</i> com o <i>Buddha</i>. O método não é ensinável e o <i>Buddha</i> é inalcançável, pois ambos são o <i>puro espírito</i>. <i>Prajñā, </i>o conhecimento que ultrapassa o intelecto, a análise e o julgamento, é nosso espírito sem caracteres particulares.</p><p style="text-align: justify;">Ainda que por só um instante, aquele que forma um julgamento sobre <i>Saṃsāra </i>já caiu no caminho infernal. Crer que há nascimento e extinção é sair da <i>Via. </i>Na verdade, nada nasce e nada sai. Sem essas crenças dualistas, não há mais desgosto ou atração pelo que quer que seja. Tudo é um só espírito, e é aí que começa o veículo do <i>Buddha</i>. As pessoas comuns experimentam todos os tipos de estados de espírito a reboque dos objetos. Mas se desejamos que não haja mais objetos, é necessário esquecer o próprio espírito, pois assim os objetos são vazios e o espírito se retira.</p><p style="text-align: justify;">No caso em que não há o esquecimento do espírito, a mera expulsão dos objetos torna-os irremovíveis, e, em consequência, a confusão floresce. Aquele que é adepto de <i>Prajñā </i>não acredita que haja algo a se encontrar, pois a realidade única não é <i>algo </i>que se ganha na <i>Iluminação. </i>Cinco mil pessoas abandonaram o <i>Buddha</i> quando ele pregou o impensável. Foi para elas que ele afirmou não haver nada encontrado na <i>Iluminação. </i>A única coisa que importa é a <i>coincidência silenciosa. </i></p><p style="text-align: justify;">Ao chegar à sua última hora, o homem comum não tem mais do que contemplar a total <i>vacuidade</i> (śūnyatā) dos cinco agregados, a ausência de ser dos quatro elementos, para ver seu espírito verdadeiro, sem início ou fim, sem características, de cuja essência não nos aproximamos pelo nascimento ou nos afastamos pela morte, absolutamente puro, perfeitamente pacífico, e que é uno com os objetos da <i>talidade</i>. Ser capaz de de alcançar diretamente a compreensão instantânea é desfazer os liames dos três tempos, o <i>"homem que transcende o tempo".</i></p><p style="text-align: justify;">Huang Po, mais uma vez, ensina que não há método de <i>Iluminação. </i>Não se busca o <i>Buddha </i>a não ser com o <i>Buddha</i>, e que, por estranho que possa parecer, o <i>Buddha</i> é inalcançável. Para a mentalidade moderna, que se move somente no nível do discurso sobre o fenomênico, as palavras de Huang Po não são mais do que contrassenso. Não há método, mas o método é o <i>Buddha, </i>que por sua vez<i> </i>é inalcançável. Não se trata aqui de vão gosto pelo paradoxo ou de uma simples negação do princípio lógico de não-contradição. </p><p style="text-align: justify;">O significado desse discurso aparentemente sem sentido se encontra no nível de um <i>fundamento abrangente e transcendente que a tudo abarca sem nada negar. </i>Enquanto permanecemos no mundo fenomênico, no mundo dos <i>entes, </i>daquilo que é limitado e que depende de todo o resto para se manter na existência, só encontramos o que é limitado e perecível. Sendo parte desta realidade, nenhum método pode ser a <i>Iluminação. </i>Somente o <i>Buddha</i> pode alcançar o <i>Buddha. </i>Não há medida de comparação entre o limitado e o ilimitado, entre <i>Saṃsāra </i>e <i>Nirvāṇa.</i></p><p style="text-align: justify;">É impossível buscar o fundamento dos <i>entes </i>enquanto se olha para os <i>entes. </i>Procurar o <i>Buddha </i>entre as coisas do mundo fenomênico é torná-lo inalcançável. Ele <i>não é isto ou aquilo.</i> Manter-se entre as coisas é exilar o <i>Buddha</i>, é não enxergar que ele é o espírito puro que transcende a todas as limitações e condicionamentos. Caminhar entre as coisas para chegar ao <i>Buddha </i>é como querer arrancar a si mesmo de um buraco puxando os próprios cabelos. </p><p style="text-align: justify;"><i>Prajñā </i>é o espírito puro sem caracteres, ou seja, sem <i>isto ou aquilo. </i>O desejo mantém nossos olhos fixos nos objetos, e julgamos as coisas a partir de seu agrado ou de seu desagrado. Amamos isto e rejeitamos aquilo. Enxergamos tudo em termos de <i>coisas</i> que serão julgadas favoráveis ou desfavoráveis, prazerosas ou dolorosas, atraentes ou repugnantes. A mente se mantém presa a isto ou àquilo, dentro do dualismo que é característico daquilo que tem limites e condicionamentos.</p><p style="text-align: justify;">Porém, nada há que tenha nascido ou perecido. Só há o espírito puro sem distinções, o <i>fundo </i>indizível de onde nada saiu jamais e nada sairá. A ideia de ponto de vista só faz sentido no mundo dos <i>entes, </i>onde uma coisa não é a outra. A partir de nosso ponto de vista, tudo é limitado, nasce e perece. Mas a limitação só existe para o limitado. Um só pensamento de distinção entre as coisas e o <i>espírito puro</i> desaparece mergulhado nas vagas incessantes dos seres.</p><p style="text-align: justify;"><i>O fundamento só aparece quando aquilo que ele fundamenta desaparece. </i>Se as coisas somem completamente, se elas são reconduzidas à sua fonte última, se elas são engolidas pelo Absoluto que as abarca e as transcende infinitamente, nada resta a ser desejado, pois tudo está eternamente no espírito puro para além das três medidas do tempo. Mas não ganhamos <i>nada </i>com isso no sentido de que não nos apossamos de algum <i>objeto, ente </i>ou <i>estado mental. </i>Ganhar algo seria permanecer no mundo dualista dos fenômenos, no âmbito do <i>ser e do não-ser.</i></p><p style="text-align: justify;">Lá onde as coisas revelam a sua <i>vacuidade, </i>isto é, a sua <i>originação dependente, </i>é que resplandece <i>Prajñā. </i>Toda e cada coisa deste mundo depende de todas as outras para existir. O menor grão de areia, para que ele exista e permaneça existindo, exige que todo o resto da realidade esteja presente, pois uma coisa depende sempre de outras, e estas de outras, assim por diante. Tudo tende ao <i>nada</i>, e é <i>nada </i>em certo sentido. Os entes são desprovidos de real <i>substancialidade</i>, não possuem em si mesmos a verdadeira capacidade de existirem independentes uns dos outros.</p><p style="text-align: justify;">O grande mestre budista <i>Nagarjuna</i> não hesita em dizer que as coisas são <i>vazio </i>(<i>Śūnya</i>) ao apontar para a <i>instabilidade</i> ou <i>indigência ontológica </i>dos seres. Nada há a ganhar com a <i>Iluminação</i>, no sentido de obter <i>isto ou aquilo. </i>Na sua absoluta não-dualidade, <i>Prajñā </i>é justamente o abandono de todas as coisas e de todas as limitações e condicionamentos. <i>O iluminado perde todas as coisas, e, por isso mesmo, ganha tudo</i>. O espírito individual, prenhe de desejos e de gostos, deve ser esquecido para que a realidade se apresente em sua <i>talidade</i>, isto é, em sua verdade última tal como a conhece o <i>Buddha.</i></p><p style="text-align: justify;">A única coisa que importa é a <i>coincidência silenciosa. </i>Quando todas as coisas, incluindo nosso composto psicofísico, coincidem com seu fundamento derradeiro, <i>nada </i>mais permanece, restando o profundo silêncio de <i>Prajñā </i>indizível. É vão tentar <i>imaginar </i>ou mesmo <i>entender </i>o que é <i>Prajñā </i>como se fosse <i>algo, </i>e, portanto,<i> </i>descritível em termos das coisas que conhecemos. Por isso Huang Po afirma que o <i>Buddha</i> é inalcançável. </p><p style="text-align: justify;">Comparar é colocar as coisas em pares, estabelecer relações entre dois ou mais entes<i>. </i>O <i>espírito puro </i>é incomparável, não é um <i>ente</i> entre outros <i>entes</i>. Seria um erro fatal pensar que Huang Po está opondo este mundo a um <i>outro mundo</i>. Qualquer outro mundo que haja ou possa haver será ainda um <i>mundo, </i>um conjunto organizado de entes limitados. O <i>espírito puro </i>não é um mundo alternativo a este em que vivemos ou a qualquer outro no qual vivemos antes ou poderemos viver depois. É justamente por isso que nada se ganha com a <i>Iluminação, </i>nada há de <i>mundano </i>na pura natureza<i> Búdica.</i></p><p style="text-align: justify;">Não há <i>para onde ir, </i>nem <i>aonde chegar. </i>Tudo já está aqui mesmo, pois <i>Saṃsāra </i>é <span style="text-align: left;"><i>Nirvāṇa </i>e vice-versa. Mas não fora dito acima que não há medida de comparação entre os dois? Sim, de fato, são incomparáveis na medida em que não são realidades dualisticamente opostas. Não são duas realidades em um mesmo nível, o que permitiria uma comparação por semelhança, por identidade ou por oposição. Ao contrário, </span><i>Nirvāṇa compreende em si </i><i>Saṃsāra, mas </i><span style="text-align: left;"><i>Saṃsāra não compreende em si </i></span><i>Nirvāṇa. </i>Por isso, no <i>Absoluto, </i>só há <span style="text-align: left;"><i>Nirvāṇa, </i>mas no relativo, e só para o relativo, há<i> </i></span><i>Saṃsāra. </i></p><p style="text-align: justify;">Na sua raiz última tudo é <i>Nirvāṇa, </i>e para compreender isso não é necessário <i>sair</i> de <i>Saṃsāra</i> como quem parte para um outro <i>lugar. </i>Nenhum ente, e nem a totalidade dos entes, pode se constituir em obstáculo real para atingir o <i>Nirvāṇa. </i>Nesse sentido, o <i>Nirvāṇa </i>é aqui em <i>Saṃsāra. </i>O <i>Buddha </i>é aquele que compreendeu que não há dualidade entre os dois porque <i>Nirvāṇa</i> e <i>Saṃsāra </i>não são duas realidades opostas no mesmo nível. </p><p style="text-align: justify;">Os fenômenos manifestam (<i>prādurbhāva</i>) o <i>espírito puro, </i>mas não possuem existência substancial absolutamente independente. Sua substancialidade é apenas relativa, dado que todos os entes dependem de todos os outros para existirem, e que, mesmo assim, todos são passageiros. A <span style="text-align: left;"><i>impermanência, </i>tema central do budismo, manifesta que os fenômenos não possuem neles mesmos suas existências a não ser de modo relativo, condicionado e derivativo. O que permanece, o <i>incondicionado, </i>o </span><span style="text-align: left;"><i>Nirvāṇa, </i>portanto, não pode ser <i>algo, </i>algum <i>ente, </i>nem mesmo um <i>mundo, </i>um conjunto de <i>entes</i>. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">É também por isso que só se pode referir ao </span><i>Nirvāṇa </i>em termos negativos (não é isso, não é aquilo). O <i>espírito puro</i>, o <i>Buddha</i>, é indizível, incompreensível, informe e ilimitado. Não é <i>coisa, </i>nem <i>ente, </i>e nem <i>algo </i>que se possa conquistar ou se apossar por qualquer método. Só se conhece o <i>Buddha</i> pelo próprio <i>Buddha</i>. O <i>Buddha </i>histórico<i>, </i>enquanto aqui esteve, era o <i>espírito puro</i> do <i>Buddha, </i>indizível e <i>incondicionado,</i> e, ao mesmo tempo, o <i>Buddha Sakyamuni, </i>o sábio príncipe <i>kṣatriya, </i>de nome<i> Siddhartha Gautama, </i>que a tudo renunciou na busca pela <i>Iluminação. </i></p><p style="text-align: justify;">Não há diferença porque não há dois <i>entes </i>para se instalar a diferenciação. Há o mundo fenomênico, no interior do qual se pode falar com sentido de <i>diferença </i>e de<i> dualidade, </i>e o <i>espírito puro, </i>que a tudo compreende transcendendo a tudo infinitamente. É o apego aos <i>entes</i> que não nos permite enxergar o <i>Buddha </i>manifestando-se em todos os fenômenos como lótus florescendo infinitamente.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)</a><br /></p><p style="text-align: justify;"><a href="Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)">Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)</a><br /></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/filosofia%20oriental">Νεκρομαντεῖον: filosofia oriental (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-8637755232832871692023-11-02T12:36:00.001-03:002023-11-02T12:37:44.808-03:00Aristóteles, Física e os princípios científicos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4tDUfzayrtleHlLgbLnHEwT2E019djkzYKK5TiKbOzHq2jO8odqafmZGZwX0upIVPR6reH1iiqJbq8MvzE2FhdhkeYSzOSgYgK5BRzbdW0tEvC_r4JWsjkpeFZp5Gqm7JuUVn5W6K_PmkvBnOD76rZKGlUeC0XToJJEsJWHWdt7CGeI3iU5NPSQ_qEQsO/s1024/Aristole-Author.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1024" data-original-width="1024" height="251" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4tDUfzayrtleHlLgbLnHEwT2E019djkzYKK5TiKbOzHq2jO8odqafmZGZwX0upIVPR6reH1iiqJbq8MvzE2FhdhkeYSzOSgYgK5BRzbdW0tEvC_r4JWsjkpeFZp5Gqm7JuUVn5W6K_PmkvBnOD76rZKGlUeC0XToJJEsJWHWdt7CGeI3iU5NPSQ_qEQsO/w266-h251/Aristole-Author.jpg" width="266" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Quando os objetos de estudo, em qualquer área, possuem princípios, condições ou elementos, é por meio da intimidade com eles que o conhecimento, isto é, o conhecimento científico, é alcançado. Pois não consideramos que conhecemos algo até que estejamos cientes de suas condições primárias ou primeiros princípios, e tenhamos conduzido nossa análise tão longe até seus mais simples elementos. Obviamente, então, na ciência da natureza, como em outros ramos de estudo, nossa primeira tarefa será tentar determinar aquilo o que se relaciona a seus princípios."</p><p style="text-align: justify;">ARISTÓTELES, <i>Física, </i>Livro I, 184a [10] a [15] (tradução minha)</p><p style="text-align: justify;">No início do primeiro livro da <i>Física</i>, Aristóteles assevera que em qualquer investigação, seja qual for o seu objeto, é necessário buscar seus princípios, condições ou elementos, pois é justamente por meio do conhecimento dos princípios que se pode alcançar legítimo saber científico (<i>epistḗmē</i>, ἐπιστήμη) do objeto. Não pensamos que conhecemos algo a não ser se estamos a par de suas condições primárias ou de seus primeiros princípios, e se não conduzimos a nossa análise até seus mais simples elementos. Portanto, a ciência da natureza não será diferente no que também buscará determinar, como sua primeira tarefa, aquilo que se relaciona aos princípios.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles mostra aqui que a investigação científica busca sempre os fundamentos e os princípios daquilo que está sob seu escrutínio. Explicar é mostrar aqueles elementos que, em conjunto, tornam um ente o que ele é, e dão conta de suas características essenciais. Obviamente, os princípios, as causas ou os elementos de cada um dos objetos da realidade não serão todos do mesmo tipo: cada espécie da realidade terá seus princípios próprios. Os princípios de um ente natural, um peixe, por exemplo, não serão rigorosamente os mesmos de um objeto artificial, como os de uma cadeira.</p><p style="text-align: justify;">Investigar os princípios das coisas é buscar a sua inteligibilidade, ou seja, é mostrar que eles são compreensíveis a partir de certos elementos que não são, por sua vez, compreendidos a partir de outros a não ser de eles mesmos. Quando encontramos, por análise (divisão), os elementos dos objetos geométricos, como fez Euclides, encontramos os constituintes últimos de todo e qualquer objeto geométrico. Não há para onde “descer” mais na cadeia da realidade. A inteligibilidade deriva do fundamento da coisa que está sendo analisada. Ocorre que, como Aristóteles observa, essa inteligibilidade dos objetos não é dada imediatamente. Não pomos os olhos nas coisas e já as entendemos como se elas fossem evidentes.</p><p style="text-align: justify;">A maneira mais natural de se obter esses princípios é iniciando por aquilo que é mais cognoscível para nós, avançando até aquilo que é mais cognoscível em si mesmo. O fato de uma coisa ser mais cognoscível para nós não implica que ela seja cognoscível em sentido pleno. O procedimento deverá, então, partir daquilo que para nós é mais acessível, embora em si mesmo seja mais obscuro, na direção daquilo que em si mesmo é mais inteligível. Para nós, as coisas mais evidentes são aquelas que percebemos pelos sentidos. No entanto, aquilo que se apresenta aos nossos sentidos ainda não é compreendido cientificamente. </p><p style="text-align: justify;">Ao contrário, o que cai sob nossa observação, em nossa experiência cotidiana, é um conjunto variabilíssimo de objetos sobre os quais não conhecemos nada ou muito pouco. Em outras palavras, as coisas primeiro se apresentam como entes sobre os quais pouco ou nada sabemos, como mistérios a serem revelados, como opacidades a serem esclarecidas. Esses entes, como dissemos, são todos cujos elementos não estão apresentados de modo evidente. Dessa forma, temos de passar daquilo que é mais acessível a nós ao que é mais inteligível em si, que são os princípios e causas dessas coisas que nos são apresentadas sensivelmente. Partindo desse todo que constatamos pelos sentidos, o investigador científico deve analisá-lo até encontrar os princípios e fundamentos que o explicam totalmente.</p><p style="text-align: justify;">Por causa disso, o conhecimento científico não é um empreendimento fácil. Conhecer cientificamente é discernir a estrutura inteligível de um objeto dado para além do que o objeto mostra na sua apresentação aos sentidos. Portanto, para Aristóteles, toda ciência é abstrata: o que interessa não é o objeto dado aqui e agora na sua concretude e singularidade, mas sim a estrutura inteligível que explica e fundamenta todos os objetos do mesmo tipo.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles supõe que os entes deste mundo sejam inteligíveis, que eles possam ser compreensíveis e explicáveis. Para tanto, é óbvio, embora o Estagirita não o diga nessa passagem inicial, que os princípios, os elementos ou as causas não podem ser infinitos. Afirmar que há infinitas causas para um objeto é o mesmo que afirmar que ele é ininteligível. Se não é possível alcançar algum (ou alguns) fundamento (s) além do (s) qual (quais) nada há o que buscar, qualquer explicação será impossível. Se a cada fundamento P houver um fundamento P1 que funda P, e um fundamento P2 que funda P1, um P3 que funda P2, um P4 que funda P3, assim <i>ad infinitum</i>, então realmente nunca haverá um ponto onde parar a explicação, o que significa que não há e nem pode haver explicação.</p><p style="text-align: justify;">Quanto aos princípios, eles podem ser (1) um somente, ou (2) mais de um. Se for um somente há duas possibilidades: que ele seja imóvel, como querem os eleatas, ou que sejam móveis, como querem os físicos. Por outro lado, se os princípios forem mais de um, eles podem ser finitos ou infinitos. Essa discussão é semelhante às investigações empreendidas por aqueles que se perguntam sobre o número de existentes na realidade. Eles discutem se há um só ente ou vários, e sendo vários, se são finitos ou infinitos. Aristóteles observa que essa discussão sobre os existentes não é útil aos físicos. </p><p style="text-align: justify;">Isso porque não faz sentido para o físico questionar o próprio objeto de sua ciência. Se houver somente um ser no mundo, como querem os eleatas, não haverá mudança e, consequentemente, não haverá entes que mudam, que são o objeto de estudo precípuo da Física. Um geômetra não pode negar os princípios da Geometria. Isto é, cada ciência tem seus princípios próprios e compartilha certos princípios muito gerais com todas as outras. Uma ciência não pode pôr seus princípios em questão sem ao mesmo tempo destruir suas bases. </p><p style="text-align: justify;">É por essa razão que um físico não tem a obrigação de discutir com alguém que não conhece ou não reconhece a validade dos princípios de sua ciência. Via de regra, como dirão os medievais, não se discute com quem nega os princípios (<i>contra negantem principia non est disputandum</i>). Debater se só há um ser na realidade é como discutir um argumento defendido meramente por espírito de contenda, sem seriedade, e que é obviamente absurdo por suas consequências.</p><p style="text-align: justify;">Os físicos, afirma Aristóteles, enquanto praticantes da ciência física, não podem negar o fato de que no mundo todas as coisas, ou quase todas, estão em mudança. Ademais, o homem de ciência não tem a obrigação de responder a todas as dificuldades que possam ser concebidas, mas tão somente aquelas que são derivadas falsamente dos princípios. Cada ciência possui princípios próprios que são evidentes dentro de seu âmbito de investigação. Assim como há também princípios que são válidos e evidentes não só para esta ou aquela ciência particular, mas para toda e qualquer ciência (o princípio de não-contradição, por exemplo).</p><p style="text-align: justify;">Para o físico, a existência da mudança é evidente, é um dado indubitável dos sentidos. Não se trata de um dogma, de uma pressuposição ou de uma mera hipótese. Trata-se de uma verdade evidente haurida diretamente pelos sentidos, nossa fonte primária de conhecimento. Mais ainda, a mudança é o objeto mesmo de investigação da física. Negar a mudança é negar a física como ciência. </p><p style="text-align: justify;">Há, então, nesse ponto, uma concordância profunda entre a metodologia científica de Aristóteles segundo a qual nosso conhecimento se inicia nos sentidos, o que é mais evidente para nós, e a condição de possibilidade da ciência física, a evidência dos sentidos. Só é possível a física justamente porque nosso conhecimento inicia nos sentidos e não pode estar em contradição com eles. Qualquer raciocínio abstrato, por mais perfeito que aparente ser, não pode contradizer frontalmente o que os sentidos nos dizem diretamente pela experiência.</p><p style="text-align: justify;">Compreende-se desse modo a razão pela qual Aristóteles considera que o físico não necessita responder aos argumentos contra o movimento engendrados pelos eleatas. Se Parmênides afirma que não há mudança porque o ser não pode vir do não-ser, há algo de errado nas premissas ou na interpretação das premissas desse raciocínio, e nunca na evidência direta e insofismável da experiência sensível. Sabemos com toda certeza que uma flecha lançada de um ponto A a um ponto B se desloca inexoravelmente para seu alvo a despeito de todos os raciocínios sutis de Zenão que implicam que a flecha jamais sai de seu ponto de partida porque ela tem que atravessar sempre a metade de qualquer distância, por menor que essa distância seja. </p><p style="text-align: justify;">Não somente tudo a nossa volta nega a tese imobilista dos eleatas, até mesmo a nossa experiência interna milita decisivamente contra a sua absurdidade. Vemos e sentimos as coisas mudando, inclusive nosso corpo, mas interiormente sentimos a mudança pela passagem dos pensamentos em nossa mente. Negar a mudança é optar pela negação da realidade tal como a conhecemos, o que inclui negar a nossa própria existência nas suas duas dimensões, a externa e a interna.</p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: normal;">Diante disso, o físico está completamente justificado, enquanto físico, a não perturbar-se com as alegações dos que negam a mudança. Contudo, Aristóteles admite que mesmo que as teses eleatas não tenham propriamente a Natureza como seu objeto, elas incidentalmente levantam algumas questões físicas, e, por isso, possuem algum interesse científico. O filósofo dedicará os parágrafos posteriores a responder a essas questões. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: normal;">...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: normal;">Leia também:</span></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Arist%C3%B3teles">Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Filosofia%20da%20Ci%C3%AAncia">Νεκρομαντεῖον: Filosofia da Ciência (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-52360462352695317782023-10-25T14:58:00.001-03:002023-12-10T13:57:05.725-03:00Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro II)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjd7Ob4byE4IpapdSiyQ3AaAeZo3HN82fpAagMjl8dnsT9YvV5KZW4mGvP8dcUXsdjLFs7gyJuyFW32ypG8pby7wS7otov0dF1oFdpb_YblV6OzILj2Scui5axuoCJinTQaKiCBZgfXUozHrf143nfk0AW_vGisE0xR5bASOh56c51d15sSnwyg0P3cKYgA/s500/dionysius.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="375" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjd7Ob4byE4IpapdSiyQ3AaAeZo3HN82fpAagMjl8dnsT9YvV5KZW4mGvP8dcUXsdjLFs7gyJuyFW32ypG8pby7wS7otov0dF1oFdpb_YblV6OzILj2Scui5axuoCJinTQaKiCBZgfXUozHrf143nfk0AW_vGisE0xR5bASOh56c51d15sSnwyg0P3cKYgA/s320/dionysius.jpg" width="240" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Deus não é nem as partes, nem nenhuma das partes, tampouco é o todo ou a totalidade, dado que se assim fosse Ele seria dependente de algum outro. Não obstante, por uma razão diferente, Ele é todas essas coisas, pois o bem que está presente nelas Ele o possui também. Ele não possui o bem da mesma forma que elas (assim parecendo que o possui impropriamente), mas, antes, Ele o possui mais eminentemente e primordialmente. Mais eminentemente, isto é, em um grau eminentemente maior. E primordialmente, isto é, antes que elas o possuam no tempo e igualmente na natureza."</p><p style="text-align: justify;">MARSILIO FICINO, <i>Comentários</i></p><p style="text-align: justify;">No segundo livro de <i>Os Nomes Divinos, </i>Dionísio Areopagita, o santo a quem se credita tradicionalmente a autoria desse texto, adverte o leitor de que a bondade, a vida, o ser, o domínio, a sabedoria e a justiça devem ser atribuídas a Deus igualmente nas Suas três Pessoas. A explicação é que há nomes que são atribuídos à Trindade inteira e nomes que pertencem a cada uma das Pessoas divinas separadamente.</p><p style="text-align: justify;">Marsilio Ficino comenta que a <i>Tearquia</i>, o mais comum dos nomes de Deus invocados por Dionísio, significa a <i>"primeira Deidade da divindade e o princípio de cada divindade". </i>Note-se que a <i>Deidade da divindade</i> é o <i>fundo comum</i> às Pessoas divinas, o fundamento, a essência do ser divino. Em termos dogmáticos, trata-se da <i>substância</i> que torna a Trindade <i>consubstancial, </i>e não permite que se caia em um <i>triteísmo. </i>Não são três deuses distintos e separados, mas sim uma trindade de Pessoas que compartilham uma e a mesma natureza divina.</p><p style="text-align: justify;">Os nomes que se referem a esse <i>fundo substancial comum </i>de Deus são atribuídos igualmente e sem distinção ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Todos eles, segundo Ficino, significam simples perfeição e excelência. Outros nomes há que só se aplicam às Pessoas separadamente, como Pai e Filho. Embora haja uma única natureza em ambos, a distinção se mantém somente na medida em que é necessário indicar a diferença entre o gerador (Pai) e o gerado (Filho). </p><p style="text-align: justify;">Dionísio enfatiza sua ortodoxia mostrando que as próprias Escrituras empregam por vezes um método de <i>Diferenciação, </i>e, por vezes, um método de <i>Indiferenciação. </i>Pertence exclusivamente ao Pai gerar e ao Filho ser gerado, o que não significa que o Filho seja de natureza inferior ao Pai (há uma só natureza divina), ou temporalmente posterior ao Pai. A diferença consiste no fato de que o Filho tem sua origem no Pai e não o contrário. </p><p style="text-align: justify;">Os nomes indiferenciados são aqueles que podem ser empregados para designar a totalidade da divindade, sem distinção entre as Pessoas. O primeiro tipo dos nomes indiferenciados é aquele no qual se indica a superabundância divina, como nos termos <i>Supraessencial, Supradivino, Supravital. </i>O segundo tipo é aquele no qual se indica uma relação causal entre Deus e as criaturas, como <i>Bom, Justo, Existente, Sábio. </i>Os nomes diferenciados são <i>Pai, Filho, Espírito Santo, </i>bem como aqueles que se referem à humanidade de Cristo.</p><p style="text-align: justify;">Em Sua unidade última, Deus é aquele que ultrapassa toda afirmação e toda a negação. Nesse sentido, há uma só e a mesma natureza inefável que deve ser atribuída igualmente às três Pessoas. Uma unidade transcendente, sem confusão das Pessoas, analogamente às fontes de luz em uma casa que, apesar de serem diferentes umas das outras, seus raios unem-se sem nenhuma mistura. Quando as luzes forem separadas, nenhuma delas será diminuída em sua potência. </p><p style="text-align: justify;">Dionísio passa em seguida a expor as doutrinas de Santo Hieroteu, seu mestre, acerca da divindade de Cristo, que é a causa de todas as coisas, que preenche e preserva todas as coisas, sem ser parte ou todo. Mas é parte e todo no sentido de que compreende em Si mesmo todas as coisas, possuindo-as de modo eminente. Ele é a perfeição das coisas imperfeitas, e nas coisas perfeitas Ele é não-perfeito no sentido de que precede a perfeição em excelência e em origem.</p><p style="text-align: justify;">Hieroteu resume a doutrina dos nomes divinos nessa curta passagem. Retomando uma definição que formulamos anteriormente, a teologia negativa, ou teologia apofática, se caracteriza pela necessidade de <i>negar a imperfeição para afirmar a perfeição e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição. </i>Como Hieroteu ensina, quando comparamos as coisas imperfeitas de nossa realidade com Deus, vemos que Ele é a perfeição. Todavia, ao mesmo tempo, percebemos que a noção de perfeição que possuímos é muito limitada quando comparada à perfeição divina. </p><p style="text-align: justify;">Deus excede infinitamente, e é a origem de, qualquer perfeição que possamos imaginar ou conceber. Nesse sentido, Deus não é dignamente representado por essa noção limitada de perfeição que possuímos. Para evitar que se pense a perfeição divina em termos limitados, é necessário afirmar que Deus é <i>não-perfeito</i>, isto é, excede infinitamente a perfeição, é <i>supraperfeito. </i>A linguagem negativa preserva a infinita e incomensurável perfeição divina negando que ela possa ser expressa mesmo pelo conceito mais alto e mais sublime de perfeição que possamos conceber.</p><p style="text-align: justify;">Deus dá origem a tudo sem se tornar múltiplo. É ser em um sentido <i>supraessencial</i>. Marsilio Ficino explica que Deus <i>"ultrapassa as coisas supraessencialmente, pois Ele não está colocado no mais alto grau desses seres com o restante situado no segundo e no terceiro graus". </i>O ponto é que Deus não pode ser entendido como o grau máximo de uma linha gradativa ascensional da qual fazem parte todos os seres. A diferença entre Deus e as coisas não é de grau, como pode ser a diferença entre algo mais claro com relação a algo mais escuro.</p><p style="text-align: justify;">As coisas deste mundo são por definição limitadas, o que faz com que esse seja o mundo <i>do mais e do menos. </i>Todos os entes estão em alguma relação de maior ou menor quantidade e/ou de melhor ou pior qualidade com outros entes. A <i>variação </i>é própria da limitação que caracteriza os seres desta realidade. Deus não está nessa relação <i>de</i> <i>mais e de menos, </i>mas sim como fundamento que torna possível o <i>mais e o menos. </i></p><p style="text-align: justify;">Utilizando uma analogia, a cor vermelha pode ser mais ou menos intensa. Neste objeto A o vermelho é mais intenso e naquele objeto B é menos intenso. Todavia, ambos são <i>vermelhos. </i>O que torna possível que A seja mais intenso e B menos é o caráter da qualidade <i>vermelho</i> presente nos dois. Mas o <i>vermelho, </i>enquanto qualidade, não é nem mais intenso e nem menos intenso. Ele é o <i>padrão</i> que, estando em A e em B inteiramente (o <i>vermelho </i>está inteiro em ambos), permite que haja gradação de intensidade entre A e B. </p><p style="text-align: justify;">O <i>vermelho, </i>enquanto padrão qualitativo, não é diminuído ou acrescido, não sofre mudança alguma pelo fato de que o vermelho em A é mais intenso do que aquele presente em B. Nesse sentido, o <i>vermelho </i>transcende as limitações das suas manifestações em A e em B. O <i>vermelho </i>é a <i>Forma, </i>o <i>Padrão, </i>a <i>Razão, </i>a <i>Medida</i>, o <i>Logos </i>que permanece o mesmo justamente para que nos seres possa haver variação e gradação. É o <i>metro </i>que torna a medição possível, e para que haja medição é necessário que ele permaneça inalterado para que as coisas mensuradas possam variar nas suas medidas.</p><p style="text-align: justify;">A transcendência de Deus não é a da medida, da gradação, como se Ele fosse simplesmente o<i> maior de todos </i>em uma escala de entes de mesmo tipo. Note-se que, mais à frente na Idade Média, Anselmo de Ostia, mui platonicamente, definirá Deus como <i>"o ser do qual não se pode pensar nada maior". </i>Isto é, Deus não é simplesmente o <i>ser</i> <i>maior de todos. </i>Deus<i> </i>está<i> </i>absolutamente fora de toda e qualquer gradação, dado que não se pode pensar nada maior que Ele. Em outros termos, nenhuma medida, por mais excelsa, faz jus a Deus.</p><p style="text-align: justify;">Nenhuma intensidade de vermelho muda em nada o <i>vermelho. </i>Nesse sentido, o <i>vermelho </i>é o padrão absoluto pelo qual tudo que é vermelho é julgado. Nenhuma intensidade de vermelho no mundo, por mais excelsa que seja, pode <i>"ultrapassar"</i> o <i>vermelho. </i>Nem sequer faria sentido uma comparação desse tipo. O <i>vermelho </i>está inteiro nas coisas enquanto <i>padrão, </i>e simultaneamente está presente de modo limitado nas coisas enquanto <i>grau de intensidade</i>. </p><p style="text-align: justify;">Deus está presente nas coisas como <i>Ser</i>, <i>Bondade, Razão, </i>etc<i>, </i>mas se faz presente em medidas diferentes. Cada ente recebe os dons divinos segundo sua capacidade, dizem os platônicos. Isso significa que, por exemplo, se Deus dá o <i>Ser </i>aos seres, cada um terá uma dada proporção ou medida de <i>Ser. </i>Todos serão <i>existentes, </i>mas alguns terão a <i>existência </i>em grau maior do que outros. Um time esportivo tem existência somente na medida em que há jogadores, estes sim existentes de modo mais pleno.</p><p style="text-align: justify;">Nada em Deus muda por conta das variações das coisas das quais é a causa. Uma vez que Ele está acima de tudo, então está acima até de todas essas perfeições que neste mundo se manifestam de modo múltiplo e gradativo. Não há determinações em Deus. O <i>vermelho </i>já é circunscrito, determinado, delimitado, pois o ve<i>rmelho </i>necessariamente não é o <i>azul. </i>Sequer essas limitações se apresentam em Deus. Por isso, como afirmava Ficino, Deus é <i>"não somente indeterminado. Ele tem de ser também indeterminável."</i></p><p style="text-align: justify;">Por fim, observe-se que na figura do Cristo, <i>verdadeiro Deus e verdadeiro homem, </i>onde a natureza divina e a natureza humana estão unidas sem mistura ou confusão, realiza-se a síntese simbólica da realidade. Jesus, a perfeita <i>Imago Dei, </i>se manifesta aos homens como ser humano pleno, sem jamais perder nada de sua divindade. De um lado, há o homem, a limitação, a medida. De outro, o divino, o ilimitado, o infinito. O homem tem seu fundamento em Deus, e Deus se manifesta pelo homem. </p><p style="text-align: justify;">Cristo, uma só e mesma realidade, uma só hipóstase, simboliza o todo da <i>Realidade, </i>onde o limitado tem seu fundamento no ilimitado sem que haja qualquer tipo de mistura ou de confusão. Preservada está a transcendência absoluta de Deus ainda que esteja imanentemente presente no todo singular que é Cristo. Nesse sentido simbólico, a <i>Realidade </i>é um todo no qual estão presentes, unidos sem mistura ou confusão, o <i>limitado</i> e o <i>ilimitado. </i>O segundo é o fundamento transcendente do primeiro. O <i>limitado</i> é a <i>Imago </i>do ilimitado.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Dion%C3%ADsio%20Areopagita">Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/neoplatonismo">Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-8854343393270472622023-10-15T13:13:00.000-03:002023-10-15T13:13:25.097-03:00Eric Voegelin e a origem do cientificismo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVPO3_t8l5lx_A78VgU5CiEqYNreJHp91hIBgPTzLJqQKgn9T7hq-QdvpwYyFJ8k-4IxbRLm93F7G321Zo083pmm8YEXFpjrqCg7fXdzMzq2S1HFzl80AUn2vd07OYPxFqh-_HrrsSVIAWZ5ngFmZ3gArZmhweS83RisMu74XQOIgu_9Hv7a3wQahsKLD8/s692/R%20(2).jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="397" data-original-width="692" height="230" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVPO3_t8l5lx_A78VgU5CiEqYNreJHp91hIBgPTzLJqQKgn9T7hq-QdvpwYyFJ8k-4IxbRLm93F7G321Zo083pmm8YEXFpjrqCg7fXdzMzq2S1HFzl80AUn2vd07OYPxFqh-_HrrsSVIAWZ5ngFmZ3gArZmhweS83RisMu74XQOIgu_9Hv7a3wQahsKLD8/w400-h230/R%20(2).jpeg" width="400" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Aqui podemos observar em estado bruto o fascínio do poder que transpira da nova ciência: é tão esmagador que chega a cegar a consciência de alguém para os problemas elementares da existência humana. A ciência torna-se um ídolo que vai magicamente curar todos os males da existência e transformar a natureza do homem."</p><p style="text-align: justify;">ERIC VOEGELIN, <i>The Origins of Scientism</i></p><p style="text-align: justify;">O filósofo político alemão, radicado nos Estados Unidos, Eric Voegelin, em um artigo publicado em 1948 intitulado <i>The Origins of Scientism</i> analisa o fenômeno do <i>cientificismo*</i> e aponta as suas consequências filosóficas e espirituais. Enquanto movimento intelectual, a sua origem se encontra já na segunda metade do século XVII. Acompanhando o sucesso da <i>Revolução </i><span style="text-align: left;"><i>Científica, </i>o cientificismo caracteriza-se por um fascínio com a nova ciência a ponto de desprezar ou mesmo negligenciar a preocupação com as experiências do espírito.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Simultaneamente, criou-se a impressão de que a ciência seria capaz de fornecer uma visão de mundo que substituiria completamente a visão da ordem religiosa da alma. E, no século XIX, a culminação desse desenvolvimento é a proibição explícita das questões de natureza metafísica. Voegelin aponta três dogmas principais do cientificismo tal como ele se apresenta na contemporaneidade:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">(1) a noção de que a ciência matemática dos fenômenos naturais é o modelo de toda e qualquer ciência; (2) a afirmação de que todos os âmbitos do Ser são acessíveis aos métodos das ciências naturais; (3) o dogma afirma que todas as realidades não acessíveis aos métodos das ciências naturais são irrelevantes, na sua forma mais branda, ou francamente ilusórios, na sua forma mais radical. As consequências filosóficas desses dogmas são a negação da dignidade das pesquisas acerca da substância das coisas na natureza, no homem e na transcendência, e, como resultado, a negação da realidade da substância.</span></p><p style="text-align: justify;">Essa negação da substancialidade fôra notada já no século XVI por Giordano Bruno que, ao tratar da matematização da realidade sensível em suas obras. O teor da crítica de Bruno provém não da negação da possibilidade do emprego da matemática no estudo dos entes sensíveis, e sim da percepção clara de que a quantidade é um acidente das substâncias (como dizia Aristóteles) e não a sua essência. Ademais, a multiplicidade não alcança a essência das coisas, e o homem que nega aquilo que não é perceptível sensivelmente acaba por negar sua própria substancialidade.</p><p style="text-align: justify;">Cabe uma breve explicação do sentido da crítica de Bruno. O que o filósofo aponta é que as características quantitativas de um ente corpóreo (número, altura, comprimento, largura, etc.) não são capazes de <i>definir o tipo de ser </i>que esse ente é. Por exemplo, um homem que tem a mesma altura de um armário não é definido como <i>ser humano</i> pelo fato de ter a mesma altura de um armário e vice-versa. O que o define como <i>ser humano </i>é a sua <i>essência </i>ou <i>substância. </i>Uma ciência que se restringisse a tratar dessas características quantitativas estaria necessariamente se restringindo ao nível mais externo da realidade.</p><p style="text-align: justify;">Em outros termos, o que Bruno e Voegelin apontam é que uma ciência que só estuda as quantidades no mundo natural seria incapaz de determinar uma <i>ontologia</i>, ou seja, de dizer exatamente o que há no mundo e o que as coisas são substancialmente. A quantidade é um acidente, uma propriedade que não existe por si mesma e independentemente de um supósito, de algo que lhe conceda suporte. É possível medir sem saber o que se está medindo. Ninguém precisa saber a definição correta de ser humano para medir a altura de um homem.</p><p style="text-align: justify;">Consequentemente, a quantidade está no âmbito do <i>fenômeno</i>, daquilo que é apreendido diretamente. Já a substância de uma coisa não é captada só pela observação daquilo que ela apresenta aos sentidos diretamente, mas, ao contrário, apesar de iniciar nos sentidos, a apreensão do que é uma coisa é obra do <i>espírito</i> que intelige ("lê dentro") a estrutura intrínseca que torna aquela coisa o que ela é essencialmente. Voegelin considera essa rejeição científica em tratar da substância das coisas e se focar exclusivamente no fenômeno um ingrediente essencial da mentalidade cientificista.</p><p style="text-align: justify;">A atitude acima descrita se espraia para além das ciências naturais, constituindo movimentos intelectuais como o positivismo e o neopositivismo, bem como modernos movimentos políticos de massa como o comunismo e o nacional-socialismo. Afinal, Voegelin aponta, o próprio Lênin havia declarado que o sentido da História é a <i>"transformação da coisa-em-si-mesma em coisa-para-nós, a transformação da essência das coisas em fenômeno". </i>Desse modo, o que importa cientificamente é tão somente o que pode ser acessado por meio dos <i>fenômenos, </i>nunca as naturezas intrínsecas das coisas.</p><p style="text-align: justify;">A efetividade da ciência moderna reforça essa tendência. Tomando o caso paradigmático da vitória da física newtoniana, Voegelin analisa a questão da relatividade do movimento. Desde antes de Copérnico os modelos astronômicos dos céus não eram tomados como exatas descrições de como as coisas realmente eram na realidade. Daí que o próprio Copérnico admite que, a depender do referencia adotado, os cálculos matemáticos podem ser simplificados utilizando ora o sistema heliocêntrico, ora o sistema geocêntrico.</p><p style="text-align: justify;">Giordano Bruno enfatiza, em seguida, que em um universo cujo espaço é infinito não há nenhum centro ou posição <i>absolutas. </i>A escolha do lugar para a origem das coordenadas é arbitrário. Leibniz, tomando a questão, reafirma que o princípio do movimento depende da exigência de que um corpo seja tomado como em repouso para que o outro seja denominado como em movimento. Ocorre que, no âmbito do movimento relativo, essa escolha é meramente uma <i>hipótese. </i></p><p style="text-align: justify;">Isto é, como o movimento precisa de um referencial em repouso, e nunca se sabe realmente se um corpo está em repouso, a escolha de um referencia será orientada pelo grau de simplicidade na descrição dos acontecimentos. Em dada situação, uma descrição pode ser mais simples do que outra, a depender do referencial adotado. Isso não torna a descrição mais simples <i>mais verdadeira </i>do que a alternativa. Há uma <i>equivalência</i> entre as hipóteses, de tal modo que, como Leibniz afirma em carta a Huygens, a escolha entre o heliocentrismo e o geocentrismo é matéria de grau de simplicidade descritiva.</p><p style="text-align: justify;">A introdução do conceito de um <i>espaço absoluto </i>por Isaac Newton configura-se em uma tentativa de resposta a esse problema. Se todas as posições no espaço empírico, aquele acessado por nossos sentidos, são determinadas pela escolha de um referencial tomado arbitrariamente como em estado de repouso, há que haver um referencial absoluto do movimento que não é alcançado pelos sentidos. Enquanto do ponto de vista prático a região das estrelas fixas pode fazer convenientemente o papel de referencial sensível, do ponto de vista ontológico nada pode ser dito realmente em movimento ou em repouso sem um referencial absoluto.</p><p style="text-align: justify;">O problema fica mais complexo se considerarmos que a própria definição do <i>princípio de inércia </i>depende do conceito de <i>repouso </i>algum sentido. Não havendo repouso real, como sustentar que <i>"um corpo permanece em repouso ou em movimento uniforme em linha reta até que ele seja compelido a mudar seu estado pela ação de outras forças impressas sobre ele"</i>? A questão, novamente, não é prática, mas ontológica. Não havendo repouso real, não há movimento real.</p><p style="text-align: justify;">Não obstante a importância dos problemas teóricos, Voegelin aponta também razões teológicas na postulação do espaço absoluto por Newton. A redução da matéria à pura <i>extensão </i>realizada por Descartes, e a consequente concepção do universo como uma máquina governada por leis mecânicas cegas, pareceram a Newton como um expulsão de Deus do quadro da realidade. Deveria haver um lugar para Deus no esquema das coisas físicas. </p><p style="text-align: justify;">Então, Newton concebe o espaço absoluto não como pura matéria extensa, mas como o <i>sensorium </i>divino, isto é, o modo como Deus <i>"percebe" </i>e engloba todas as coisas. A necessidade mecânica não poderia produzir a variedade de coisas que testemunhamos somente pode ser explicada pela vontade e as ideias do Ser Absoluto. Ironicamente, os newtonianos, principalmente após a obra de divulgação de Voltaire, esqueceram totalmente as intenções teológicas do mestre e mantiveram somente a afirmação do espaço absoluto. O mundo tornou-se de fato uma máquina material obedecendo a uma lei universal. </p><p style="text-align: justify;">Newton dispensa-se de discutir as implicações metafísicas de suas teorias físicas por meio de sua famosa negação de <i>inventar hipóteses. </i>Todos os fundamentos da física deveriam ser deduzidos exclusivamente da experiência. Porém, a crítica filosófica do espaço absoluto realizada por Berkeley aponta justamente para o fato de que o espaço absoluto nada tem de experimental, dado que pelos sentidos só discernimos movimentos relativos. E, pior, o espaço destituído e abstraído dos corpos percebidos pelos sentidos não é mais do que um mero <i>nada. </i></p><p style="text-align: justify;">Como a crítica filosófica não persuade o cientista. Este passa a exigir, como Euler, que os filósofos simplesmente aceitem as leis mecânicas como o ponto de partida absoluto de toda investigação natural. Toda questão deve ser abandonada, por mais que a crítica seja definitiva. O filósofo e o cientista encontram-se em um <i>impasse, </i>afirma Voegelin. O filósofo deve ou tentar aclarar a confusão feita pelos cientistas nos seus fundamentos ou deve simplesmente capitular e aceitar o <i>nonsense </i>metafísico e epistemológico. </p><p style="text-align: justify;">A resposta de Leibniz é distinguir entre aquela força intrínseca ao ser da coisa, a <i>vis primitiva, </i>e a força fenomênica, a <i>vis derivativa. </i>A primeira corresponde à <i>essência</i> do ente, sendo objeto da metafísica, enquanto a segunda corresponde às forças observáveis dos seres em interação com os outros, objeto da física. Sobre estas versam as leis naturais que são matematizáveis, muito embora no mundo real não existam <i>entes matemáticos</i> puros na natureza. Não podem ser encarados a não ser como instrumentos para cálculos exatos e abstratos.</p><p style="text-align: justify;">Seja como for, a solução de Leibniz é esquecida e vence o mecanicismo de Newton que, como consequência, afeta profundamente as estruturas políticas e econômicas do ocidente. A ciência torna-se tecnologia, há a industrialização da produção e o aumento da população, acontece o nascimento de novos grupos sociais como o proletariados industrial e o proletariado intelectual, as decisões são tomadas cada vez mais longe do homem comum, urbanização da sociedade, etc. O avanço da ciência após 1700, é o fator isolado mais importante na transformação das estruturas de poder e de riqueza.</p><p style="text-align: justify;">Ademais, a <i>utilidade </i>da ciência, diz Voegelin, foi o maior incentivo para que fossem colocados à disposição do cientista esses meios de poder e de riqueza. É óbvio que essa utilidade sempre esteve presente na história humana, pois o conhecimento das relações entre causa e efeito nos permite traçar ações com meio a fins determinados. O problema é que essa mentalidade racional-utilitarista alcançou as características de um câncer em crescimento. O domínio da natureza se tornou, ou deve se tornar, a única preocupação da humanidade e a única forma de estrutura da sociedade.</p><p style="text-align: justify;">Voegelin adverte que <i>"é preciso que nos resguardemos contra o erro tão frequente em que caíram os críticos dos movimentos totalitários: a crença de que uma ideia é politicamente desimportante porque filosoficamente se trata de um claro disparate. A ideia que a estrutura e os problemas da existência humana podem ser superados na sociedade histórica pelo segmento utilitário da existência é certamente um puro absurdo. (...) Não obstante, o fato de que a ideia é uma tolice não a impediu de se tornar a inspiração do mais forte movimento político de nossa era."</i></p><p style="text-align: justify;">A mesma ideia acompanha não somente os movimentos totalitários, mas também os movimentos liberais e progressistas na medida em que consideram que os males trazidos pela ciência devem ser curados com mais ciência. A ciência que controlou a natureza deve agora controlar a sociedade em nome da construção da sociedade perfeita. Mas o reino dos fenômenos, o âmbito da maestria utilitária, não funciona da mesma forma que o reino da substância. Nenhuma compreensão da substância humana dará a chave para o domínio da sociedade e da história.</p><p style="text-align: justify;">O desejo de operar no âmbito da substância como no âmbito do fenômenos é a definição de <i>magia.</i> A conjunção entre ciência e poder insinuaram na civilização moderna um forte elemento mágico. A restrição da experiência humana ao campo da utilidade, da ciência e da razão corresponde a operar sobre a substância do homem por meio do instrumento da pragmática vontade planejadora. O ápice dessa operação mágica é o plano de criar o <i>super-homem, übermensch, </i>que substituirá enfim a triste criatura de Deus, segundo defendido por Condorcet, Comte, Marx, Nietzsche, o comunismo e o nacional-socialismo.</p><p style="text-align: justify;">A absolutização da ciência expressa o desejo de se encontrar uma orientação absoluta da existência humana na experiência meramente intramundana. Essa orientação só pode se realizar às expensas de considerações acerca do espírito. A desordem existencial encontra na recusa de Newton, a famosa <i>hypotheses non fingo, </i>uma de suas fontes mais fortes. Voegelin bem percebe e admite que se essa recusa se limitasse a uma medida metodológica dentro das ciências dos fenômenos não haveria grandes problemas. </p><p style="text-align: justify;">Quando, porém, essa atitude é expandida para o reino da experiência humana, os efeitos são desastrosos. O primeiro efeito é a crença de que a existência humana pode ser orientada em um sentido absoluto por meio da ciência, o que torna desnecessário o cultivo de qualquer conhecimento para além da ciência. A ignorância dos problemas que são existencialmente importantes acompanha passo a passo as façanhas maravilhosas da ciência. </p><p style="text-align: justify;">Em segundo lugar, a orientação existencial não pode ser alcançada pela ciência dos fenômenos. Ela requer a formação da personalidade por meio de instituições. Uma vez que mesmo as instituições educacionais estão sob o jugo científico, há uma força que ativamente obstaculiza o cultivo da substância humana e corrói os elementos sobreviventes da tradição cultural. E no quesito do cultivo da substância, os homens diferem em capacidade. </p><p style="text-align: justify;">Os cultores do <i>pathos</i> cientificista são justamente os deficientes nessa dimensão, e a sua penetração cultural cria um ambiente que privilegia os tipos humanos deficientes. Essa reestratificação que escapa à descrição em termos de <i>classes sociais </i>passou desapercebida, e deve ser expressa em termos de substância humana com o termo <i>eunuquismo espiritual. </i>O século XIX viu a ascensão desse tipo humano deficiente que preparou o terreno para a anarquia espiritual do século XX.</p><p style="text-align: justify;">Em terceiro lugar, aparece o<i> arrogante diletantismo em matérias filosóficas. </i>Voegelin dá como exemplo importante do início desse ambiente intelectual a resposta de Clarke a Leibniz acerca das objeções filosóficas deste último ao conceito newtoniano de <i>espaço absoluto. </i>O que o porta-voz de Newton no debate responde a Leibniz, <i>"eu não compreendo", </i>torna-se uma atitude padrão. A incompreensão de Clarke não significa que ele tenha se dado conta de sua ignorância em matéria filosófica, mas, ao contrário, significava que não compreender era uma argumento a favor de suas próprias posições. </p><p style="text-align: justify;">Voegelin aponta aqui para o fenômeno que é ainda muito comum no qual a afirmação de ignorância ou de incompreensão parece adquirir o valor de uma refutação da tese alheia. O que seria meramente uma falácia lógica, um <i>argumentum ad ignorantia, </i>torna-se por si mesma uma demonstração de bom senso e de respeitabilidade intelectual. Em vez de responder à objeção, o interlocutor simplesmente alega que sequer compreendeu o que foi dito por seu adversário, insinuando que este afirmou algo sem sentido que não precisa e não deve ser discutido seriamente.</p><p style="text-align: justify;">A atitude descrita acima é bem representada pela arrogância e pela condescendência com a qual os membros do <i>Círculo de Viena</i> encaravam quaisquer declarações que escapassem dos estreitíssimos limites de sua concepção de sentido das sentenças. Rudolf Carnap, em seu <i>Pseudoproblemas na Filosofia, </i>como o título indica, pretendia indicar quais eram as perguntas que poderiam ou não ser feitas legitimamente. Toda proposição que estivesse além ou aquém da sua exigência de conteúdo fatual era considerada uma <i>pseudoproposição.</i></p><p style="text-align: justify;">Segundo Carnap, todas as ciências do real reconheciam a exigência de conteúdo fatual para as suas proposições, e que apenas no domínio da filosofia e da teologia eram aceitas proposições sem tal conteúdo. No suposto trabalho de <i>saneamento</i> da filosofia levado a cabo por Carnap, uma experiência espiritual perfeitamente compreensível como a apresentada por Martin Heidegger em <i>"O que é Metafísica" </i>com a expressão <i>"o nada nadifica" </i>(<i>Das Nichts nichtet</i>) se tornava o exemplo de uma tese cuja mera incompreensão (sincera ou não) seria suficiente para descartá-la como <i>nonsense. </i></p><p style="text-align: justify;">Voegelin mostra que o prestígio da física de Newton explica em grande parte a vitória social do cientificismo como limitação dos horizontes mental e espiritual do homem. Tudo na realidade sendo reduzido à ciência do fenômeno, mesmo a experiência existencial humana, qualquer outro saber deve ser eliminado ou considerado sem sentido. A consequência é que a limitação mental dos propugnadores dessa tese (graças aos sucessos técnicos, práticos e utilitários da ciência moderna), torna-se uma norma social e favorece a ascensão daqueles que são espiritualmente eunucos.</p><p style="text-align: justify;">O diletantismo filosófico desses eunucos nos campos da psicologia materialista, da antropologia filosófica e das ideias políticas é socialmente efetiva, enquanto o argumento do filósofo não o é. Voegelin considera que a vitória do espaço absoluto de Newton foi o primeiro exemplo do sucesso de uma teoria diletante. O cisma se completa meio século após Schelling. Os eunucos formam dali em diante as ideias para as massas. Nos sistemas totalitários o cisma toma a forma da eliminação física dos adversários dos continuadores da tradição.</p><p style="text-align: justify;">Friedrich Hayek mostrara muito bem em seu <i>The Counter-Revolution in Science</i> os planos de Condorcet, Saint-Simon e Comte de uma "<i>organização</i> <i>científica da sociedade". </i>Para tanto, nenhum obstáculo deveria se impor ao projeto propugnado de modo tão racional e benéfico a todos. Explicando as teses de Saint-Simon, Hayek cita o francês que via que <i>"a ideia vaga e metafísica de liberdade (...) impede a ação das massas sobre o indivíduo (...) e é contrária ao desenvolvimento da civilização e à organização de um sistema bem ordenado."</i></p><p style="text-align: justify;">Hayek mostra que <i>"Saint-Simon enxerga mais claramente do que a maioria dos socialistas posteriores que a organização da sociedade para um propósito comum, o que é fundamental a todos os sistemas socialistas, é incompatível com a liberdade individual e requer a existência de um poder espiritual que escolhe a direção na qual as forças naturais deverão ser aplicadas." </i>Comte não fica atrás em seu desprezo pela liberdade de consciência. Para ele, assim como na astronomia, na física, na química e na fisiologia não há liberdade de consciência, esta será eliminada quando a política for elevada ao nível de ciência natural.</p><p style="text-align: justify;">O cientificismo, permitindo a ascensão dos eunucos espirituais e de sua mentalidade restrita, abriu o caminho para os projetos de organização científica da sociedade, cujos frutos malditos foram a violência e o extermínio nos campos de concentração e nos gulags. Os problemas humanos são sempre espirituais e simbólicos, e a restrição dos horizontes mentais a uma direção existencial intramundana resulta em uma castração substancial do ser humano.</p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Eric%20Voegelin" style="text-align: left;">Νεκρομαντεῖον: Eric Voegelin (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/2022/09/michael-oakeshott-racionalismo-e.html">Νεκρομαντεῖον: Michael Oakeshott, racionalismo e política (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;"><i>* Cientificismo </i>ou <i>cientismo.</i></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-1496593090129425422023-10-11T16:56:00.001-03:002023-10-11T16:56:38.896-03:00Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro I) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgschvLu0Y_lttuEKTDRn97Sofk-U4vWGVmgSULfnVojbnLBtBImrZHTejEiTr83W-4D_Db3BgERCOFHhyphenhyphena4Equ5QK6VGjZF0dcwt2WKglhZytEwjOpG54q30CJ2NL2rSBX311EAjlMmAT-aDrb0LOi94ye3SO8lI7SpYOf8lguJ2PwnFox0eEChqZ0aSu-/s1200/icd-129-hand-painted-icons.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="908" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgschvLu0Y_lttuEKTDRn97Sofk-U4vWGVmgSULfnVojbnLBtBImrZHTejEiTr83W-4D_Db3BgERCOFHhyphenhyphena4Equ5QK6VGjZF0dcwt2WKglhZytEwjOpG54q30CJ2NL2rSBX311EAjlMmAT-aDrb0LOi94ye3SO8lI7SpYOf8lguJ2PwnFox0eEChqZ0aSu-/s320/icd-129-hand-painted-icons.jpg" width="242" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Provamos, ao comentar a <i>Teologia Mística, </i>com base em Platão tanto quanto em Dionísio, que o princípio do universo deve ser mais apropriadamente designado como o Uno em si mesmo e o Bem. Mostramos também que tal princípio é superior ao intelecto e a qualquer inteligível, quão eminente possa ser. Portanto, nenhum intelecto alcança o Bem por um ato intelectual, mas por meio de uma união que é mais verdadeira e melhor que o entendimento."</p><p style="text-align: justify;">MARSILIO FICINO, <i>Comentários aos Nomes Divinos</i></p><p style="text-align: justify;">Os tratados atribuídos a Dionísio, o pagão convertido ao Cristianismo pelo apóstolo Paulo no Areópago ateniense (Atos, 17), tiveram uma influência incomensurável na mística e na teologia cristãs desde o seu aparecimento. Textos como a <i>Teologia Mística,</i><i> Hierarquia Celeste, Hierarquia Eclesiástica</i> e <i>Os Nomes Divinos, </i>representam uma das fontes, junto com Agostinho de Hipona, do neoplatonismo que estará presente durante todo o curso da Idade Média e das épocas posteriores. Não à toa, o mago, padre e filósofo renascentista Marsilio Ficino, em seus comentários aos <i>Nomes Divinos, </i>considerará Dionísio como a culminação da doutrina platônica, <i>"doctrine Platonice culmen". </i></p><p style="text-align: justify;">A questão central do tratado acerca dos nomes divinos é esclarecer como devem ser entendidos os diversos termos e expressões que a Deus são atribuídos nas Sagradas Escrituras. Sendo o princípio último de tudo o que é real e de tudo o que é possível, o Senhor necessariamente não pertence à classe dos entes deste mundo, e, portanto, não sofre de suas deficiências e de suas limitações. Dito de outro modo, o <i>Princípio é necessariamente</i> <i>superior àquilo que ele principia. </i></p><p style="text-align: justify;">Assim sendo, nenhum dos termos e das expressões empregados para designar Deus adequam-se a Ele como se adequam às coisas das quais Ele é o <i>Princípio. </i>Dionísio inicia seu discurso já advertindo que, como regra, só devem utilizar-se aqueles termos e nomes revelados pelas Sagradas Escrituras. Essa admissão dos nomes bíblicos deve se dar de uma forma inefável, ultrapassando tanto as nossas capacidades racional-calculativas quanto nossa capacidade intelectiva.</p><p style="text-align: justify;">A razão para isso é que a natureza divina é <i>"supraessencial"</i> (<i>ὑπερούσιος, superessentialitas</i>), isto é, está para além das essências. As <i>essências </i>correspondem às naturezas das coisas, ao seu <i>modo de ser, </i>ao <i>tipo de ser </i>que elas são. Deus, na Sua natureza indizível, ultrapassa infinitamente quaisquer essências das coisas limitadas das quais Ele é o princípio. Na medida em que só podemos conhecer o que é limitado, o conhecimento da natureza divina para nós equivale à <i>ignorância. </i></p><p style="text-align: justify;">Podemos e devemos crer na infalibilidade das Escrituras e empregar somente os nomes ali revelados. Daí não se segue, entretanto, que haja qualquer possibilidade de se compreender Deus como compreendemos algum ente da realidade que nos cerca. A <i>incompreeensibilidade</i> divina é insuperável para nossos poderes de entendimento. Não é possível conhecer os inteligíveis pelos sentidos ou pela imaginação, pois eles são realidades incorpóreas, intangíveis e sem forma (αμορφία).</p><p style="text-align: justify;">Analogamente, não é possível conhecer intelectualmente o <i>Princípio</i> que ultrapassa os inteligíveis, o <i>Uno </i>supraessencial, o Intelecto que ultrapassa o intelecto, <i>νοῦς ἀνόητος. </i>Sendo a Causa Universal da existência, Ele mesmo não existe, pois está para além de todo Ser. Isto é, se consideramos como <i>Ser</i> a característica mais fundamental de tudo aquilo que existe ou pode existir, e sabemos que cada ser é limitado individualmente e em sua essência (seu <i>tipo de ser</i>), então mesmo a atribuição de <i>Ser</i> ou de <i>existência</i> não se aplicam ao <i>Princípio.</i></p><p style="text-align: justify;">Marsilio Ficino, comentando essa passagem, esclarece que <i>"mesmo os Aristotélicos pensam que essência e ser, como os mais comuns atributos, são atribuídos às coisas pelo princípio que é mais comum, e pela causa que é mais universal e mais poderosa. Os Platônicos, por sua vez, </i><span style="text-align: left;"><i>supõem exatamente que o primeiro princípio é separado da essência e do ser".</i> Diferentemente dos aristotélicos, os platônicos não veem a fonte do <i>Ser</i> e das essências como um ser, mas, ao contrário, como aquilo que ultrapassa todo o <i>Ser</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Ficino se refere ao fato de que para os platônicos o mundo do <i>Ser</i> é sempre o mundo da multiplicidade. No momento em que um ser X se afirma na existência como X, ele já nega todas as possibilidades de não-X (A, B, C, D...). Consequentemente, o <i>Ser </i>é o âmbito no qual se instaura a limitação, pois ser X implica a limitação de não ser quaisquer das possibilidades de não-X. Para um platônico, então, o <i>Princípio </i>não pode se encontrar na dimensão do <i>Ser, </i>na<i> </i>multiplicidade e na limitação, mas sim naquilo que ultrapassa o próprio <i>Ser.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Na <i>Enéada 5, </i>Plotino identifica o <i>Ser </i>ao <i>Intelecto </i>(</span><span style="text-align: left;">νοῦς), o âmbito das verdadeiras substâncias, as <i>Ideias </i>eternas e absolutamente estáveis. A sua estabilidade e a sua real existência provém da definição e da forma. Esse é o <i>cosmos noético, </i>o mundo dos inteligíveis, que empresta inteligibilidade a todos os entes. Plotino afirma que o <i>Ser</i> não pode estar suspenso na <i>indefinição, </i>isto é, tudo aquilo que possui ser é ao mesmo tempo algo <i>inteligível, compreensível</i>, graças à <i>definição </i>que lhe fornece a sua <i>essência</i>, seu <i>tipo de ser.</i></span></p><p style="text-align: justify;">A inferência é clara: <i>só possui inteligibilidade aquilo que é definido, portanto limitado. </i>Só compreendemos o que é inteligível, portanto aquilo que está para além do mundo da limitação é para nós incompreensível. Plotino ensina que Platão denominava <i>"Pai da causa" </i>aquilo que estava na origem do <i>Intelecto </i>ou <i>Ser, </i>a saber,<i> </i>o <i>Bem </i>que é <i>Supraessencial. </i>O <i>Uno, </i>ou o <i>Bem, </i>dado que é o fundamento da multiplicidade, é anterior à <i>Identidade </i>e à <i>Diferença, </i>e ao <i>Número. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>"Antes da Díada está o Uno. A Díada vem em segundo, e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe definição à ela, enquanto o Uno mesmo é indefinido", </i>afirma Plotino. E acrescenta que Parmênides não estava longe disso quando identificou o <i>Ser </i>ao <i>Intelecto, </i>e afirmou que só há pensamento dentro da <i>Esfera</i> do <i>Ser, </i>que tudo contém e nada é externo à ela. Platão, no <i>Parmênides, </i>fez a mesma coisa, quando distingue o <i>Um, </i>propriamente dito, do <i>um-muitos </i>(o <i>Ser</i>). Aristóteles, embora ensinasse que o primeiro princípio era <i>separado </i>e <i>inteligível, </i>ao afirmar que ele <i>pensa a si mesmo</i>, não pôde mais fazê-lo o primeiro princípio de todas as coisas. </p><p style="text-align: justify;">Ficino comenta que pela luz natural da razão humana podemos saber que Deus existe, o que Ele não é, o que Ele cria e como é Sua governança do mundo, e, por fim, qual a condição das coisas com relação a Ele. Mas pela razão natural é impossível saber a Sua natureza. A razão natural é poder de conhecimento que todos os seres humanos possuem por serem seres humanos. Dado que a nossa razão discursiva e o nosso intelecto só alcançam as essências limitadas, elas não podem penetrar na vastidão infinita do <i>Princípio. </i></p><p style="text-align: justify;">A única forma de ultrapassar tais limites é um tipo de <i>"união divina"</i> por meio de <i>"um tipo de luz que é mais que natural", </i>afirma Ficino. É preciso compreender que essa união, experimentada inclusive por Plotino quatro vezes em sua vida, implica no desaparecimento de toda dualidade, mesmo aquela que há entre sujeito e objeto. Não à toa, ao fim dessa <i>unio mystica,</i> nada ou quase nada pode ser dito por aquele que a experienciou. Tudo permanece um mistério insondável tanto para o agraciado por essa união quanto para aqueles que tentam compreender o que se passou com o místico.</p><p style="text-align: justify;">Dionísio prossegue afirmando que, mesmo com todos os nomes revelados pelas Santas Escrituras, a natureza divina permanece supraessencialmente inacessível. A luz do <i>Princípio</i> se difunde e alcança as coisas de acordo com as suas respectivas capacidades. Só Deus conhece Deus. As coisas O conhecem somente na medida de seu próprio ser. A doutrina neoplatônica aqui exposta é a da famosa <i>participação. </i></p><p style="text-align: justify;">Participar é ter parte em algo. É receber parte de ou atuar de modo limitado em uma realidade. Nunca há identidade entre o participante e o participado, isto é, o participante sempre está no âmbito da parcialidade e da limitação. Se digo que Pedro e João são dotados de Razão, não quero com isso afirmar que eles são idênticos à Razão. Pedro e João possuem não a Razão de forma absoluta, mas somente de forma parcial. Ambos possuem o mesmíssimo conjunto de características essenciais da Razão, só que sempre em medida limitada. </p><p style="text-align: justify;">Assim, a luz divina se manifesta igualmente em todos os seres sem que isso implique que os seres sejam essa luz infinita. O seu próprio ser é uma limitação, um <i>"afunilamento"</i> de uma realidade que, em si mesma, é infinita e sem limites. Ficino expressa essa verdade dizendo que <i>"o conhecimento de Deus em Si mesmo existe em Deus acima das essências. Não obstante, o conhecimento de Deus nas coisas subsequentes não transcende os limites da essência". </i>Deus somente conhece Deus tal como Ele é. Nós conhecemos Seus <i>rastros </i>no mundo. Vemos os raios de luz, não o próprio Sol. </p><p style="text-align: justify;">As coisas dependem absoluta e ontologicamente de Deus. Em seu comentário, Marsilio Ficino descreve essa dependência nos seguintes termos:</p><p style="text-align: justify;"><i>"Tudo aquilo sobre o que falamos nas coisas depende inteiramente de Deus, e igualmente Deus está presente como o mais profundo interior em todas as coisas (...) Olhe para uma imagem, se houver, em um espelho. Ela (a imagem) depende de tal modo da pessoa viva, que sua essência, poder, mudança, e repouso são a própria pessoa - a pessoa viva que está olhando a si mesma no espelho. Muito mais, então, Deus, Ele próprio, é a essência das coisas, a vida, o poder, o ato, a perseverança, a perfeição, a reforma. E, nas almas, Ele é sua pureza, iluminação, perfeição e divindade."</i></p><p style="text-align: justify;">A analogia de Ficino significa que a imagem no espelho não é a pessoa viva que olha a si mesma pelo seu reflexo. A imagem (εἰκών, ícone) é uma representação, uma <i>imitação </i>da pessoa que se posta diante do espelho. Ela depende de modo absoluto da pessoa da qual é a imitação. Mas não há identidade entre ambas. A imagem <i>participa, </i>possui algo, da pessoa real. Trata-se de <i>semelhança</i>, jamais de<i> identidade. </i>A pessoa é a <i>essência </i>da imagem no sentido de que é a pessoa que transmite, sempre parcialmente, tudo aquilo que sustenta a existência tênue e fugidia da imagem.</p><p style="text-align: justify;">A representação não existe a não ser a partir do representado. Ela é uma figura limitada, circunscrita e insubstancial do ente verdadeiro da qual é uma representação. A imagem esculpida de Atena jamais será a deusa de glaucos olhos. Não haveria a escultura sem a deusa que ela representa. Porém, a estátua é uma imagem da venerável deusa que imita alguns de seus atributos, sem jamais igualar-se substancialmente àquela que saiu da cabeça de Zeus completamente armada.</p><p style="text-align: justify;">Ficino recorda que, por mais que Deus esteja no mais profundo das coisas, Ele é o <i>Princípio </i>supraessencial, e que não há comensurabilidade entre Ele e as criaturas. Dionísio afirma que Deus é o <i>"princípio acima do princípio" </i>por conta de Sua <i>supraessencialidade</i>. Ele é a Vida de tudo aquilo que vive, o Ser de tudo aquilo que existe, a Origem e a Causa de tudo que existe, existiu e vai existir. Deus é analogamente a pessoa diante do espelho que é a fonte da tênue existência da imagem refletida.</p><p style="text-align: justify;">A inefabilidade e a incognoscibilidade do <i>Princípio </i>foram recobertas simbolicamente pelas Escrituras com termos provenientes do mundo sensível, como <i>véus sagrados</i>*, roupagens que nos permitem acessar imperfeitamente o <i>Inacessível</i>. Dionísio faz alusão a um tratado de sua autoria intitulado <i>Teologia Simbólica</i> que, infelizmente, não chegou a nossos tempos. Ele ali considera os nomes divinos apresentados nas Escrituras como <i>símbolos. </i>Qual seria o sentido desses símbolos? </p><p style="text-align: justify;">A filósofa, teóloga, santa e mártir Edith Stein, em um estudo dedicado à teologia simbólica de Dionísio Areopagita (curiosamente um dos seus últimos textos antes de sua prisão e de seu assassinato em Auschwitz), aponta que os <i>Mistérios Divinos</i> se manifesta sob os véus das espécies sensíveis. Os símbolos das Escrituras demandam interpretação para que não sejam tomados em sentidos grosseiros e literalistas. Aquele que souber compreendê-los encontrará neles muitos traços de luzes reveladoras:</p><p style="text-align: justify;"><i>"Tal é justamente o sentido desses símbolos: trata-se afastar aquilo que é santo do olhar profanador dos tolos, e de apresentá-lo àqueles que buscam a santidade, que se libertaram das representações infantis, e que adquiriram uma sabedoria suficiente para entrar na consideração da simples Verdade."</i></p><p style="text-align: justify;">Dionísio prossegue no seu texto reafirmando a incognoscibilidade sensível, imaginativa, racional e intelectiva de Deus. O <i>Uno, </i>o <i>Supraessencial, </i>o <i>Bem Absoluto </i>é inacessível até aos anjos, e as comunicações místicas que esses seres têm com Deus estão para além da descrição e do seu conhecimento natural. Do mesmo modo, aquelas entre as almas que entram nesses estados de união são introduzidas e deificadas, por meio da cessação de suas atividades naturais, na Luz que ultrapassa a Divindade, e só concebem celebrar seus louvores negando a Deus todos e quaisquer atributos.**</p><p style="text-align: justify;">Deus é <i>"a Causa de todas as coisas, e, ainda assim, Ele mesmo não é nada, pois transcende supraessencialmente todas elas", </i>afirma o Areopagita. Não é justo celebrar a <i>Supraessência da Divindade </i>como Razão, Poder, Mente, Vida ou Ser. Os escritos sagrados afirmam que Deus possui a um só tempo muitos nomes e, ainda assim, permanece sendo o <i>Inominável. </i>Os nomes que Ele recebe são os reflexos d'Ele nas coisas. Na qualidade de <i>Bem, </i>Deus<i> </i>é a<i> </i>Causa, a Origem e o Fim de todas as coisas. </p><p style="text-align: justify;">Consequentemente, todos os nomes Lhe pertencem, dado que as perfeições com as quais O nomeamos têm sua exclusiva origem Nele. Todas as coisas, enquanto contidas no <i>Princípio, </i>são o próprio <i>Princípio. </i>Ficino comenta que <i>"todas as coisas estão e igualmente não estão em Deus, da mesma forma que uma casa está em um arquiteto, como as formas dos membros estão no vegetal e na natureza seminal, como o calor está no Sol, os números no número um, como o comprimento de uma linha está contida no ponto".</i></p><p style="text-align: justify;">Em Deus, nenhuma das coisas residem na forma finita na qual existem aqui ou são imaginadas aqui. O que é múltiplo nas coisas, em Deus é absoluta <i>Unidade. </i>Pela via da excelência, Deus é todas as coisas em tudo. Pois Nele tudo é absoluto poder, o próprio Deus ilimitado. Ficino usa uma fórmula próxima da <i>coincidentia oppositorum </i>empregada por Nicolau de Cusa. Em Deus tudo é Deus. Nada disso implica qualquer identificação substancial entre o <i>Princípio </i>e o <i>principiado. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>.</i>..</p><div style="text-align: justify;">Leia também: </div><div style="text-align: justify;"><br /><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Dion%C3%ADsio%20Areopagita" style="text-align: left;">Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)<br /></a><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/neoplatonismo">Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">...</div><div style="text-align: justify;">* Na <i>Kabbalah, </i>um dos símbolos da manifestação das coisas é o <i>Pargod, </i>o véu visível por trás do qual se esconde o <i>Ain Soph, </i>a natureza imanifestada e imanifestável, indizível e incompreensível de YHWH. No mundo muçulmano, o tema dos véus de <i>Al'lah </i>é também frequente.</div><div style="text-align: justify;">** Compare-se essa negação dos atributos divinos às doutrinas de Ibn Sina e de Moisés ben Maimônides sobre o mesmo tema: <br /><a href="https://oleniski.blogspot.com/2015/12/ibn-sina-e-natureza-de-deus.html">Νεκρομαντεῖον: Ibn Sina e a natureza de Deus (oleniski.blogspot.com)<br /></a><a href="https://oleniski.blogspot.com/2023/05/maimonides-tora-e-negacao-dos-atributos.html">Νεκρομαντεῖον: Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus (oleniski.blogspot.com)</a></div>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-41220068097304394722023-10-03T14:33:00.000-03:002023-10-03T14:33:17.184-03:00Meister Eckhart, a alma e a unicidade divina<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsTtfQ1BvvDVM81BjIjryxyWlttd13AFqT3G9KLs-dU0Ctn29-Qy0UKvJ0uzPkF1piYLmUZW8lkrJzyZn8Uu2DCXOqceowI4YivKUfkgB_x6hr1Q-9JKXBB0KVXCNoIgR6qnziawik8hzpfDiynJsAFaEQC4wyp7BzjI15EE2mfJIW5IvLP2tke35GefI8/s650/image.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="380" data-original-width="650" height="234" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsTtfQ1BvvDVM81BjIjryxyWlttd13AFqT3G9KLs-dU0Ctn29-Qy0UKvJ0uzPkF1piYLmUZW8lkrJzyZn8Uu2DCXOqceowI4YivKUfkgB_x6hr1Q-9JKXBB0KVXCNoIgR6qnziawik8hzpfDiynJsAFaEQC4wyp7BzjI15EE2mfJIW5IvLP2tke35GefI8/w400-h234/image.jpg" width="400" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Posso adquirir a sabedoria, e posso também perdê-la. Mas tudo aquilo que está em Deus, é Deus. E isso não pode escapar-Lhe."</p><p style="text-align: justify;">MEISTER ECKHART, <i>Sermão 3</i></p><p style="text-align: justify;">O místico, teólogo e frade dominicano alemão medieval Meister Eckhart, em seu <i>Sermão 2, </i>interpreta simbolicamente o texto evangélico de Lucas 10, 38 segundo o qual Jesus havia subido a uma aldeia e ali havia sido recebido por uma mulher que era uma virgem. A virgindade designa o ser humano cuja alma é tão vazia de imagens estrangeiras quanto vazio seria antes de haver existido.</p><p style="text-align: justify;">O tema do <i>vazio </i>é caro a Eckhart e se refere tanto a Deus quanto à alma quando unida àquele mesmo fundamento último, uno e indizível. Em Sua <i>essencialidade simples, </i>Deus é puro <i>vazio, não-ente, </i>e o homem, na medida em que mantém-se apegado a qualquer coisa que não seja Deus, mostra não haver ainda alcançado a <i>Gelassenheit, </i>o <i>desapego </i>absoluto no qual todas as coisas são transcendidas no <i>vazio </i>divino. A alma é ali tão <i>vazia</i> como era antes mesmo de sua própria existência.</p><p style="text-align: justify;">A questão é saber como um homem pode estar tão desapegado de tudo quando está neste mundo cercado de entes. Para Eckhart nada há aí de impossível, pois não se trata de negar as coisas depois que a alma e elas vieram à existência. Bem diferente disso, a <i>Gelassenheit </i>significa retornar intimamente ao seio indiviso de Deus, a raiz de todas as coisas, <i>antes</i> que todas as coisas tomassem existência. Em outros termos, o <i>vazio </i>de Deus não nega as criaturas, mas, ao contrário, é o seu fundamento e as contém como seu princípio derradeiro.</p><p style="text-align: justify;">Nesta vida é possível viver de tal modo que não se considere como propriedades quaisquer das nossas ações realizadas. E, mais ainda, é possível viver na <i>eternidade, </i>lá mesmo onde indizivelmente não há outra coisa senão o Filho sendo gerado eternamente pelo Pai. A virgindade é, assim, a afirmação exclusiva de Deus que, por assim dizer, <i>reabsorve </i>todas as criaturas em Si mesmo no próprio ato de Seu <i>aparecimento. </i></p><p style="text-align: justify;">Dito de um modo filosófico-metafísico, <i>o Ser só "aparece" no desaparecimento dos entes. </i>Usando uma analogia, aquele que tem diante de si uma paisagem só pode contemplá-la inteiramente se não enxerga <i>esta </i>árvore ou <i>aquela </i>pedra. Isto é, o <i>Todo </i>só se encontra quando a <i>parte </i>desaparece. Se o foco permanece <i>nisto </i>ou <i>naquilo, </i>a paisagem se perde como totalidade. Mas se <i>isto </i>e <i>aquilo </i>"desaparecem" como objetos de foco, a paisagem "aparece" como totalidade em que tudo está nela contido, ainda que de forma não distinta ou separada.</p><p style="text-align: justify;">O <i>vazio </i>de Deus não é infrutífero, entretanto. Não é o <i>Nada</i> da negação absoluta de todo ser real ou possível. O <i>vazio </i>da alma não pode, por conseguinte, ser ele mesmo infrutífero. Eckhart ensina que é por isso que a virgem da passagem evangélica é chamada de <i>mulher. </i>Os frutos da gravidez dessa mulher são as ações realizadas pela alma vazia sem nenhuma pretensão de propriedade, dado que advém exclusivamente da vontade divina. O fruto máximo é, obviamente, o Cristo, que é gerado pelo Pai ali naquele <i>fundo </i>indizível e insondável de Deus.</p><p style="text-align: justify;">Eckhart reafirma em seguida sua doutrina de que <i>"há na alma humana uma potência que não é tocada nem pelo tempo, nem pela carne, que emana do espírito e permanece no espírito e é absolutamente espiritual."</i> Surpreendente ensinamento segundo o qual há na alma algo mais <i>alto </i>ou mais <i>profundo</i> que a alma e suas potências mais humanas como o intelecto e a vontade! O espírito<i>, spiritus, Geist</i> em alemão, designa a <i>mens </i>de Agostinho, geralmente traduzida como <i>alma </i>ou mesmo <i>mente. </i></p><p style="text-align: justify;">Na metafísica de<i> </i>Eckhart, <i>mens </i>ou <i>Geist</i> adquire o significado de um <i>fundo </i>na alma que não é tocado por nada, fora das variações da vontade ou das intelecções. É nessa potência abscôndita que se encontra o <i>Deus Absconditus</i>, onde o Pai eternamente engendra o Filho que é Ele mesmo. Nesse <i>fundo </i>indizível<i> </i>e inexprimível anterior a todas as diferenciações, alma e Deus se encontram em um <i>Grund, ground, fundamento. </i></p><p style="text-align: justify;">Filosoficamente, esse fundo pode ser designado mais precisamente como <i>Urgrund, </i>o <i>fundamento primeiro ou originário </i>de<i> </i>todas as coisas. O <i>Urgrund</i> só se encontra quando todas as coisas desaparecem, inclusive a própria alma naquilo que ela possui de cambiante e de determinado. Eckhart afirma que se só por um instante a alma contemplasse Deus como Ele é nesse <i>fundo</i>, a alegria seria tanta que, ainda que a alma fosse condenada a uma vida de sofrimentos mais atrozes do que quaisquer outros infligidos na história a um homem, ela suportaria tudo até o fim.</p><p style="text-align: justify;">Sem dúvida, o que seriam os sofrimentos humanos diante da beatitude divina? Ivan Karamazov pode querer <i>devolver o seu ticket </i>para<i> </i>o Paraíso<i> </i>se isso implicar no sofrimento de tantos inocentes. O problema é que não existe comensurabilidade entre o temporal e o eterno, de modo que o <i>instante </i>que não perdura, e que não pode perdurar entre dois<i> agoras </i>sob pena de tornar-se <i>tempo, </i>é inimaginável (imaginação é proveniente dos sentidos). </p><p style="text-align: justify;">Comumente, podemos, no máximo, <i>inteligir</i>, compreender o significado do conceito de <i>instante</i> que caracteriza a <i>eternidade.</i> Se o experienciássemos em um só <i>instante, </i>todo o tempo desapareceria e, com ele, todo o câmbio que gera a possibilidade do sofrimento. Eckhart, contudo, não se limita a dizer que os sofrimentos, por mais atrozes que sejam na dimensão temporal, nada são quando tomados na eternidade divina. </p><p style="text-align: justify;">Mesmo que Deus, depois de haver permitido a um homem contemplá-Lo nesse <i>instante eterno</i>, negasse a ele em seguida o Reino dos Céus, tal homem teria recebido maior salário por todo o seu sofrimento. O homem unido a Deus nesse <i>nunc aeternitatis, </i>nesse <i>agora eterno, </i>jamais envelheceria, pois o instante em que Deus cria o primeiro homem e aquele em que o último homem desaparece coincidem perfeitamente no Senhor. E mais, ele nunca sofreria ou se abalaria com nada, e teria <i>nele mesmo todas as coisas de modo substancial.</i></p><p style="text-align: justify;">O significado dessas declarações surpreendentes é mais simples do que parece à primeira vista. Se o homem vive unido a Deus nesse <i>Urgrund, </i>nesse <i>fundamento originário, </i>ele e Deus são uma só realidade. Isto é, nesse <i>fundo comum </i>anterior a toda diferenciação, <i>tudo é Um, </i>nada há de distinto e de <i>determinado</i> (aquilo que tem <i>termo</i>, fim, limite). Ali, no <i>fundo</i> indizível onde Deus é puro <i>Um, </i>todas as coisas estão contidas substancialmente, ou seja, tudo o que pode e o que não pode existir está unido indistintamente naquele que é o único que realmente <i>existe</i> no sentido mais excelso do Ser. </p><p style="text-align: justify;">A pouca substancialidade que os entes possuem, o que caracteriza a sua <i>indigência ontológica, </i>eles a<i> </i>recebem exclusivamente de Deus. Nenhum ente possui o poder de existir como uma propriedade de sua essência. Consequentemente, em Deus convivem todas as possibilidades antinômicas justamente porque elas ainda não se <i>realizaram, </i>não se tornaram <i>reais </i>no mundo temporal. O homem unido a Deus nesse <i>fundo </i>é ele mesmo o próprio Deus, e possui tudo o que está contido na onipotência divina.</p><p style="text-align: justify;">Regressar ao <i>fundamento originário</i>, por assim dizer, é desaparecer para si mesmo, é despojar-se de seu próprio ser limitado, tênue e diminuto, para <i>"tornar-se" </i>o próprio Deus na Sua <i>unicidade suprema</i> que não admite qualquer possibilidade de um <i>outro. </i>Como Eckhart adverte na sua interpretação simbólica da passagem evangélica, nada impede que essa realidade seja vivida neste mundo, em meio aos entes que nos cercam e que parecem <i>esconder </i>a face divina. </p><p style="text-align: justify;">O homem liberto em vida (<i>jīvanmukta</i>) é exteriormente idêntico a qualquer homem que come e bebe, acorda e dorme, e vive entre os outros homens. Os entes só são obstáculos para aquele que os toma ou quer tomar para si como coisas que lhe são próprias. Não somente os objetos externos, mas também seu corpo e aquilo que lhe é interior, como a vontade própria e até mesmo o fato de sua existência. <i>Nada nos pertence, até mesmo o nosso ser. </i>Reconhecido isso, retorna-se ao <i>fundamento originário </i>nesta vida, e se vive como se não se vivesse mais.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo", </i>diz o Cristo. O <i>si mesmo </i>a ser negado é, segundo Eckhart, muitíssimo mais radical (<i>radix, "</i>raiz" em Latim) do que a renúncia ao pecado e aos desejos desordenados. É uma renúncia a tudo que comumente pensamos ser nosso, inclusive, e mais fundamentalmente, <i>o nosso próprio ser</i> como um suposto ente independente e que existe por si mesmo. <i>"Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, este a salvará".</i> O homem só salva a sua vida perdendo o seu ser no Um divino, e, desse modo, tornando-se o próprio Um.</p><p style="text-align: justify;">Eckhart prossegue dizendo que essa potência do espírito que ele por vezes adjetivou como <i>separada e livre, luz do espírito, pequena fagulha, </i>na verdade <i>não é isso e nem aquilo, </i>é <i>livre de todo nome e destituída de toda forma. "É tão completamente una e simples quanto Deus é uno e simples",*</i><i> </i>afirma o místico alemão. Tão acima está de <i>"todo modo e de todas as potências",</i> ela que é o <i>Um, </i>que nenhum modo ou potência, nem o próprio Deus a pode contemplar. </p><p style="text-align: justify;">Novamente, uma afirmação chocante é apresentada. Sim, compreende-se que todo o modo e toda a potência, na medida em que são realidades distintas e delimitadas, não podem participar do <i>ens realissimum </i>que é igualmente <i>ens</i> <i>simplissimum. </i>Não obstante, o próprio Deus não pode contemplar Sua própria simplicidade? A fim de compreender Eckhart, é necessário recordar que a beatitude se encontra justamente naquele <i>fundo </i>indizível <i>"anterior" </i>à própria geração eterna do Verbo. </p><p style="text-align: justify;">O belíssimo prólogo do Evangelho de João diz:<span style="text-align: left;"><i> "</i></span><i>No princípio (ἀρχῇ, </i><span style="text-align: left;"><i>arkhêi) era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. </i></span><i>Ele estava no princípio com Deus. </i><i>Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez". </i>Há uma plena comunidade de natureza (<i>ὁμοούσιος</i>) entre Pai e Filho desde toda a eternidade. Por outro lado, há diferença entre as <i>hipóstases, </i>as <i>Pessoas </i>divinas, na medida em que o Pai não é o Filho. E foi pelo Verbo que tudo que há foi criado. </p><p style="text-align: justify;">A geração do Filho não é uma criação <i>ex nihilo, </i>a partir do <i>nada. </i>As criaturas é que foram tiradas do nada para o ser. O Verbo, ao contrário, está em Deus desde toda a eternidade, ou seja, atemporalmente. Não houve um momento no qual o Filho não fosse coetâneo ao Pai justamente porque em Deus não há momentos, variações de <i>antes e depois. </i>Então, quando Eckhart diz em outro escrito que quer conhecer <i>Deus antes que Deus seja Deus</i>, ele não está dizendo que Deus tenha mudado de condição, como se houvesse passado de não-Deus a Deus.</p><p style="text-align: justify;">Similarmente, mas não de modo idêntico, o <i>Intelecto</i> (νοῦς) emana do <i>Uno </i>(ἓν), nas <i>Enéadas</i> de Plotino, desde toda a eternidade. Não há nenhum tipo de mudança ou de movimento, como se algo <i>saísse </i>do <i>Uno </i>após<i> </i>estar<i> </i>contido nele. O <i>Uno </i>é o fundamento da realidade, isto é, é o <i>princípio</i> que sustenta todas as coisas, é absolutamente coetâneo àquilo que ele fundamenta. Usando uma analogia, os fundamentos de um prédio são simultâneos ao prédio, dado que sem eles nenhum dos andares que compõem o edifício podem permanecer onde estão.</p><p style="text-align: justify;">Todavia, em certo sentido, Deus é Deus somente para as criaturas, enquanto seu Criador. A relação Criador-criatura só existe <i>na criatura. </i>É o ser <i>criatural</i> das coisas que <i>"torna" </i>Deus Criador, pois, em Sua essência divina, nada exige que Deus crie o que quer que seja. Estritamente nesse sentido, Deus se torna <i>Deus </i>somente na Sua relação causal com as criaturas. Não se trata, de novo, de uma mudança temporal em Deus, como se em algum momento Ele não fosse o Criador. </p><p style="text-align: justify;">Trata-se apenas do fato de que os termos <i>Criador </i>e <i>Deus </i>não designam a natureza insondável de Deus, mas tão somente <i>a relação que nós, criaturas, temos com Ele. </i>Deus é <i>Deus</i> para nós, não para Ele mesmo. Quando Eckhart deseja encontrar-se em Deus antes que Deus fosse Deus, ele deseja penetrar na puríssima simplicidade divina em si mesma, onde não há nenhuma relação ou distinção. Na tradição apofática neoplatônica cristã que remonta a Dionísio Areopagita, até o nome <i>Deus</i> não cabe na excelsa e insondável natureza divina. </p><p style="text-align: justify;">Dito de outro modo, até <i>Deus</i> pode ser um obstáculo para se conhecer Deus. Temos agora a chave para compreender o que Eckhart ensina ao afirmar que esse <i>fundo </i>indizível do divino não pode ser acessado por nenhuma potência ou modo, e que nem o próprio Deus a pode contemplar segundo o modo das <i>Pessoas. </i>Se as <i>Pessoas </i>da Trindade são diferenciações, apesar de possuírem igualmente a mesma <i>natureza divina</i>, então a penetração no <i>fundo, </i>no <i>Urgrund</i>, só pode se dar quando Deus <i>"deixa de ser" </i>Trindade. </p><p style="text-align: justify;">Eckhart é cristão, não está dizendo que a Trindade seja diferente de Deus. O que ele está querendo expor é que a <i>natureza divina, </i>a <i>divinitas, </i>que é a mesma nas três <i>Pessoas, </i>é simplíssima e sem diferenças: <i>"eis a razão pela qual, se Deus quiser alguma vez lançar ali um olhar, isso custará necessariamente todos os Seus nomes divinos e Suas propriedades pessoais". </i>O mestre alemão não está insinuando nenhuma mudança ou ignorância em Deus. Ele está usando a linguagem humana, apropriada aos entes limitados desse mundo, para expressar a intimidade ilimitada da vida divina.</p><p style="text-align: justify;">Obviamente, Deus conhece a Si mesmo do modo mais perfeito possível desde toda a eternidade. O místico alemão jamais negaria isso. Ocorre que a contemplação de Eckhart <i>desce,</i> atravessando toda e qualquer diferenciação, inclusive a das <i>Pessoas </i>da Trindade, para alcançar o <i>fundo originário</i> da essência divina, esse <i>"Um sem modo ou propriedade". </i>E é nesse <i>fundo </i>simplíssimo que a alma e Deus se encontram como que em um terreno comum. </p><p style="text-align: justify;">No <i>Sermão 3, </i>Eckhart repete o tema da nobreza da alma ao asseverar que os mestres do passado não encontravam nenhum nome para designá-la. O seu <i>fundo </i>se encontra lá onde Deus <i>"ainda" </i>não se tornou <i>Deus, </i>onde a verdade e a cognoscibilidade <i>"ainda" </i>não se manifestaram, onde não há emprego de quaisquer nomes. <i>Deus </i>é uma fixação (<i>fixatio</i>) à Sua pura <i>essencialidade, </i>que nada admite de externo. Deus é uma <i>"insistência em si mesma, onde não há isto ou aquilo. Pois tudo o que está em Deus é Deus."</i></p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">* Na linguagem vedantina, <i>neti neti </i>(nem isso, nem isso), <i>amurtah </i>(sem forma, sendo que "nome e forma", <i>nama-rupa,</i> são as características essenciais do mundo fenomênico). A alma é tão una e simples quanto Deus é uno e simples, <i>Atman </i>e <i>Brahman </i>são<i> </i>uma só e a mesma realidade. O fundamento último, <i>Brahman</i>, por sinal, é o <i>Um sem segundo.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Meister%20Eckhart">Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/m%C3%ADstica">Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)</a> </p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-64129590679897370912023-09-22T18:11:00.000-03:002023-09-22T18:11:31.426-03:00Surendranath Dasgupta e a natureza da filosofia indiana<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8NhVGmNUYRsThcIbRBVhnQbGuBOrEDOweKxNy1sZgOptrVdwjAChlz0GioVvJsQAwmW-AsJs2bZmkxrIDU-kWprjHRVvM8kCHguCY53I4e2GaRh_392Zlb8uVq7_yXGg2KEf-z1_xOI8WaWq0eM5Go5RdopuzyEAmTrVOkdRd6e6VAtvBwuDhgijoajJ9/s2920/1358596338.0.x.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2920" data-original-width="1982" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8NhVGmNUYRsThcIbRBVhnQbGuBOrEDOweKxNy1sZgOptrVdwjAChlz0GioVvJsQAwmW-AsJs2bZmkxrIDU-kWprjHRVvM8kCHguCY53I4e2GaRh_392Zlb8uVq7_yXGg2KEf-z1_xOI8WaWq0eM5Go5RdopuzyEAmTrVOkdRd6e6VAtvBwuDhgijoajJ9/s320/1358596338.0.x.jpg" width="217" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Os sistemas de filosofia da Índia não foram movidos meramente pelas demandas especulativas da mente humana que possui uma inclinação natural de se entregar ao pensamento abstrato, mas por um desejo profundo desejo pela realização do propósito religioso da vida. É surpreendente notar que os postulados, objetivos e condições para tal realização encontrados foram idênticos em todos os sistemas conflitantes. Quaisquer que fossem as suas diferenças de opinião em outros temas, no que se referia aos postulados para a realização do estado transcendente, o <i>summum bonum </i>da vida, todos os sistemas estavam praticamente em total concordância."</p><p style="text-align: justify;">SURENDRANATH DASGUPTA, <i>A History of Indian Philosophy, </i>volume 1, p. 71</p><p style="text-align: justify;">O grande scholar indiano Surendranath Dasgupta, no capítulo IV do primeiro volume de sua obra clássica <i>A History of Indian Philosophy, </i>realiza uma série de observações acerca dos sistemas de pensamento da filosofia indiana. A primeira observação que faz refere-se à dificuldade de se escrever mesmo uma história da filosofia indiana. No mundo ocidental, os filósofos se seguiram uns aos outros propondo suas especulações independentes, e os historiadores organizaram essas informações em ordem cronológica comentando as influências de uma escola de pensamento sobre as outras.</p><p style="text-align: justify;">Tal não se dá na filosofia indiana pela escassez de fontes referentes às épocas nas quais os sistemas filosóficos nasceram. Essas escolas surgem quase imediatamente após a composição e organização do mais antigo dos <i>Upaniṣads</i>. Contudo, os tratados sistemáticos foram escritos em curtas sentenças (<i>Sūtras</i>) as quais não elaboram o seu tema em detalhe, mas servem como resumo para a memória das discussões sofisticadas que foram realizadas.</p><p style="text-align: justify;">É difícil tanto saber a extensão do significados desses sutras tanto quanto se as discussões que eles suscitaram em épocas posteriores refletiam realmente as intenções de seus autores. Os sutras do <i>Vedānta,</i> por exemplo, os <i>Brahma Sūtras, </i>deram azo a mais de seis interpretações divergentes, cada uma, como era de se esperar, considerando a sua interpretação como a correta. O pertencimento a uma escola determinava uma atitude de conciliação de todo e qualquer pensamento novo com as doutrinas já estabelecidas.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Ao invés de produzir uma sucessão de livres pensadores tendo seus próprios sistemas a propor e a estabelecer, a Índia produziu escolas de pupilos que sustentavam as visões tradicionais de sistemas particulares de geração a geração, que as explicavam e as expunham, e as defendiam dos ataques das escolas rivais as quais eles constantemente atacavam com o objetivo de estabelecer a superioridade do sistema ao qual aderiram."</i></p><p style="text-align: justify;">Há uma tradição de comentários, não de inovações teóricas ou especulativas. A cada ataque de uma escola rival, um comentário aos sutras é feito, e estes são respondidos por outros comentários, e assim por diante. Até mesmo Śaṅkarācārya, a quem Dasgupta descreve como o <i>"provavelmente o maior homem da Índia após o Buddha", </i>limitou-se a compor comentários aos <i>Brahma Sūtras, </i>os <i>Upaniṣads </i>e ao <i>Bhagavad Gītā.</i> Os comentários, com o passar dos séculos, buscavam responder a questões e objeções que não haviam sido explicitamente pensadas nos escritos originais. E nesse processo, há o desenvolvimento das escolas nessa discussão contínua com as suas rivais.</p><p style="text-align: justify;">Dasgupta afirma que uma história das sucessivas filosofias da Índia não é possível. Cada escola deve ser estudada e compreendida em seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Os <i>sutras</i> são como um bebê recém-nascido, e seu desenvolvimento até à maturidade corresponde à história dos conflitos da escola com suas rivais por meio da tradição impessoal dos comentários dos pupilos. Nenhum estudo dos sistemas indianos é adequado enquanto não tiver como objeto o desenvolvimento inteiro realizado por seus abnegados aderentes e defensores que se dedicaram a compor os seus comentários.</p><p style="text-align: justify;">O centro do espírito de investigação era que a essência final ou verdade última era o <i>Ātman, </i>sendo, portanto, a busca por ele nosso mais alto dever. Enquanto não nos imergirmos nele, permaneceremos insatisfeitos com qualquer outra coisa. O <i>Ātman </i>não é isso, não é aquilo (<i>neti, neti</i>). Dasgupta sugere que os sistemas filosóficos surgiram na época e em torno dos <i>Upaniṣads</i>, a partir de discussões elaboradas que eram resumidas nos <i>sutras </i>e passadas adiante pelos discípulos que, embora pudessem acrescentar ou mesmo suprimir certas porções recebidas, não faziam alterações que corrompessem a essência da doutrina da escola.</p><p style="text-align: justify;">Os comentadores não expunham suas opiniões próprias ou suas inovações a não ser naqueles casos onde os mestres antigos não tivessem deixado nenhum ensinamento. Por isso, diz Dasgupta, é impossível entender as escolas indianas pelas contribuições individuais dos comentadores. É só no conjunto de seu desenvolvimento que se pode compreendê-las adequadamente. A literatura filosófica indiana é precipuamente uma literatura de disputas, de objeções e de respostas à objeções. Cada escola cresceu justamente no embate discursivo com as suas rivais, de tal modo que para compreender uma escola é preciso estudar todos os sistemas em suas oposições mútuas.</p><p style="text-align: justify;">Os sistemas de filosofia indianos são divididos em duas categorias: <i>Nāstika</i> e <i>Āstika. </i>Os primeiros são sistemas que não aceitam a validade, a autoridade e a infalibilidade dos <i>Vedas</i>. Exemplos de sistemas <i>Nāstika </i>são o <i>Budismo</i>, o <i>Jainismo</i> e o <i>Cārvāka</i>. <i>Āstika </i>são as escolas ortodoxas, que aceitam os Vedas, e são seis em número: <i>Sāṃkhya, Yoga, Vedānta, Mīmāṁsā, Nyāya, Vaiśeṣika</i>. O <i>Sāṃkhya </i>é atribuído a <i>Kapila</i>, e o <i>Yoga </i>é atribuído a <i>Patañjali, </i>tendo como texto fundamental os <i>Yoga Sūtras. </i>O <i>Purva Mīmāṁsā</i> é um código de princípios sistematizado para a interpretação dos textos védicos para propósitos sacrificiais. O sistema <i>Nyāya </i>e o sistema <i>Vaiśeṣika </i>são geralmente encarados como uma unidade, embora os <i>Nyāya Sutras </i>sejam focados na lógica, e os <i>Vaiśeṣika Sūtras</i> tenham seu centro na física e na metafísica.</p><p style="text-align: justify;"><i>Last but not least, </i>há o sistema <i>Vedānta, </i>cujos <i>Brahma Sūtras </i>foram compostos por <i>Bādarāyaṇa. </i>O termo <i>Vedānta </i>significa <i>"fim dos Vedas"</i>, no sentido de realização, termo, encerramento. O <i>Vedānta </i>corresponde aos <i>Upaniṣads</i>, e os <i>Brahma Sūtras </i>correspondem a um sumário das visões gerais contidas nos <i>Upaniṣads. </i>O mais antigo comentário que chegou a nós é o do grande santo Śaṅkarācārya, cuja interpretação não-dualista, <i>Advaita, </i>foi contraposta por comentários de mestres dualistas como <i>Rāmāṉuja, Madhvā, Baladeva</i>, entre outros.*</p><p style="text-align: justify;">Entretanto, é preciso recordar que não há um termo em sânscrito correspondente a <i>"filósofo"</i> no sentido técnico ocidental. Os termos <i>siddha, Jñānin, ṛṣis </i>não significam filósofos no sentido moderno e se referem antes aos <i>"perfeitos", "sábios", </i>e<i> "videntes". </i>Dasgupta<i> </i>não desenvolve mais detidamente esse tema, mas seria aqui necessário ponderar que, à luz da exposição acima e dos estudos clássicos em filosofia indiana conduzidos por outros <i>scholars, </i>não há na Índia exatamente a figura ocidental do filósofo. </p><p style="text-align: justify;">Seria um grande erro, por exemplo, confundir os <i>ṛṣis</i> (<i>rishis</i>) que compuseram os <i>Upaniṣads </i>com filósofos que contrapunham suas teses às teses de outros pensadores operando no âmbito do discurso teorético como no caso dos pré-socráticos e de seus sucessores. Se não é possível descartar algum componente especulativo nos <i>Upaniṣads, </i>é, contudo, impossível reduzir seus ensinamentos a meras hipóteses sobre a constituição fundamental da <i>Phýsis. </i>Antes de tudo, os <i>rishis </i>são sábios, os que experimentaram a <i>Realidade.</i></p><p style="text-align: justify;">O grande santo e mestre advaita Adi Śaṅkarācārya<i>, </i>de<i> </i>indisputável ortodoxia, comentando o segundo verso da primeira parte dos <i>Brahma Sūtras, </i>expôe a razão da autoridade dos <i>Upaniṣads</i>: <i>"É a experiência que tem peso, e as escrituras possuem autoridade porque são os registros da experiência das mentes mestres que estiveram face a face com a Realidade (Āptavākya). Essa é a razão pela qual as escrituras são infalíveis". </i>A <i>Realidade </i>citada é <i>Brahman</i>, o <i>"Um sem segundo", </i>aquele sobre o qual nunca se fala afirmativamente, mas sempre negativamente: <i>"neti, neti".</i></p><p style="text-align: justify;">Apesar da diversidade das escolas, Dasgupta ressalta que há um conjunto de ensinamentos que são compartilhados unanimemente por todas elas, excetuando-se somente o materialismo <i>Cārvāka. </i>A primeira dessas doutrinas é o <i>Karma </i>e o <i>renascimento. </i>Todas as ações individuais deixam para trás uma certa potência que trará alegria ou sofrimento de acordo com a bondade ou maldade dessas ações. Se os frutos são tais que não possam ser colhidos nesta ou em uma outra vida humana, o indivíduo terá de renascer como homem ou como outro ser a fim de sofrer suas consequências.</p><p style="text-align: justify;">Já no período védico havia a noção de que os atos sacrificiais tinham o poder invisível (<i>Adṛṣṭa</i>)<i> </i>ou inobservado (<i>Apūrva</i>) que realizaria a possessão do objeto desejado. Analogamente, as escolas ortodoxas acreditam que os frutos das ações levam tempo para se realizarem na forma de satisfação ou de sofrimento, e que seu acúmulo prepara tanto a dor quanto alegria da próxima vida do agente. Somente ações particularmente boas ou más têm seus frutos colhidos nesta vida. </p><p style="text-align: justify;">Não há começo para as encarnações que são sucessivamente determinadas pelas ações nas vidas anteriores. Se as ações realizadas nesta vida humana exigem como seu fruto necessário o retorno como um animal, por exemplo, um homem pode retornar como um bode. Infinitas vidas em diversas modalidades deixam suas marcas a cada renascimento e possuem suas próprias consequências. Os frutos ainda não maduros para a realização podem ser interrompidos pelo conhecimento último, mas aqueles já maduros não são evitáveis nem para o homem liberto.</p><p style="text-align: justify;">Entretanto, a doutrina do <i>Mukti </i>ou <i>Mokṣa, </i>a libertação final, ensina que o ciclo pode ter fim na medida em que o homem abandona as emoções, desejos e ideias que o conduzem à ação interessada, e encontra em si mesmo aquele <i>Ātman </i>desinteressado que não sofre ou frui, que nem age ou renasce. Em sua natureza real, o <i>Ātman </i>não é tocado ou manchado pelas impurezas da vida ordinária, e é somente pela ignorância (<i>Avidyā</i>) e pelas paixões herdadas no ciclo dos renascimentos que nos identificamos com elas. A realização desse estado transcendente é o objetivo a último ser alcançado. </p><p style="text-align: justify;">Apesar de ser negada pelos budistas (é preciso entender em qual sentido ela é negada), a doutrina de uma entidade permanente, pura e não contaminada por nenhuma ação ou paixão, chamada diversamente de <i>Ātman, P</i><span style="text-align: left;"><i>uruṣa</i></span><i> </i>ou <i>Jīva, </i>é ensinada por todas as outras escolas indianas. O <i>summum bonum </i>é alcançado quando todas as impurezas são removidas e a natureza verdadeira de <i>Ātman </i>é completa e permanentemente apreendida, de modo que todas as conexões estranhas são absolutamente desfeitas.</p><p style="text-align: justify;">Dasgupta admite que há uma certa atitude pessimista que permeia os sistemas indianos, principalmente no <i>Sāṃkhya, </i>no <i>Budismo</i> e no <i>Yoga. </i>O ciclo das experiências boas ou ruins sempre termina no sofrimento. Mesmo os prazeres desembocam no sofrimento, uma vez que sofremos quando os perdemos, sofremos quando ansiamos por eles e sofremos quando tentamos em vão prolongá-los. A dor é a a verdade última desse processo do mundo.</p><p style="text-align: justify;">Não se deve pensar, contudo, que essa atitude derive uma negação do mundo e dos deveres da vida, nem mesmo uma defesa do suicídio ou do quietismo. A dor do ciclo mundano deve ser transcendida pela correta compreensão do <i>Ātman, </i>nossa verdadeira natureza que está desde sempre acima e dissociada das ações e dos sofrimentos que a identificação com essa existência trazem consigo. A elevação moral é a condição de possibilidade para que o homem possa aspirar à realização do <i>Ātman, </i>em comparação com a qual os prazeres deste mundo e mesmo as alegrias do Paraíso encolhem até à insignificância.</p><p style="text-align: justify;">O pessimismo se esvai na consideração da verdadeira natureza de nosso <i>Ātman. </i>Os sistemas indianos concordam sobre os princípios gerais de conduta ética que devem ser seguidos para se alcançar a realização final. Todas as paixões devem ser controladas, não se deve ferir qualquer qualquer forma de vida, todos os desejos por prazeres devem ser verificados. É somente quando o homem alcança uma grau muito alto de grandeza moral que ele deve preparar e fortificar sua mente para purificações ulteriores a fim de chegar ao ideal supremo.</p><p style="text-align: justify;">O objetivo da vida, a atitude frente ao mundo e os meios para alcançar a realização final compõem a <i>Sādhanā, </i>unidade<i> </i>que permeia todos os sistemas indianos. Surendranath Dasgupta arremata a exposição afirmando que <i>"de fato, parece a mim que um sincero anseio por alguma autorrealização ideal bem-aventurada e calma é realmente o fato fundamental do qual não somente sua filosofia, mas muitos dos fenômenos complexos da civilização da Índia, podem ser logicamente deduzidos."</i> (p.77)</p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;">*Para uma exposição mais detalhada das doutrinas de cada uma das <i>darsanas</i>, recomendo a leitura do compêndio de <i>Madhava </i>intitulado<i> Sarvadarsanasamgraha. </i>Mais acessíveis são as introduções ou histórias da filosofia indiana escritas por Surendranath Dasgupta, Sarvepalli Radhakrishnan, T.M.P. Mahadevan, P.T. Raju, M. Hiriyanna e Arvind Sharma. Os links abaixo conduzem a textos introdutórios sobre temas variados do Hinduísmo e da filosofia indiana.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Hindu%C3%ADsmo">Νεκρομαντεῖον: Hinduísmo (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/filosofia%20oriental">Νεκρομαντεῖον: filosofia oriental (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-62321980114275096892023-09-17T18:09:00.001-03:002023-12-23T13:12:00.759-03:00Leibniz, Deus e o conceito de Natureza<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxEtXB7HGe6o96v8dJzJDDVJLGz8AUZkwUU7ts4UtfQB_iR5kDkpdsBrwAU_XH_e06ZuLp8dyueSxcM69lT4i4-aILLEYPSIchpZy21TYq1oSW59CvtwdLesKe2RhuT2DmIxo_XtMEUENKR8aAXVDAIA_AJofwOQzU1vmwLTUOzKYcsM-ZJCqCy0snNBZp/s599/LeibnizWC1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="599" data-original-width="495" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxEtXB7HGe6o96v8dJzJDDVJLGz8AUZkwUU7ts4UtfQB_iR5kDkpdsBrwAU_XH_e06ZuLp8dyueSxcM69lT4i4-aILLEYPSIchpZy21TYq1oSW59CvtwdLesKe2RhuT2DmIxo_XtMEUENKR8aAXVDAIA_AJofwOQzU1vmwLTUOzKYcsM-ZJCqCy0snNBZp/w264-h320/LeibnizWC1.jpg" width="264" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"Sem uma substância eterna, não há verdades eternas. É possível derivar disso também uma prova acerca de Deus: Ele é a raiz da possibilidade, sendo Seu espírito a própria região das ideias ou verdades."</div><p style="text-align: justify;">G.W. LEIBNIZ, <i>Échantillon de découvertes sur les secrets de la natureprise en général, </i>1688</p><p style="text-align: justify;">O filósofo, matemático e físico alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em novembro de 1697 um opúsculo em latim intitulado <i>De Rerum Originatione Radicali. </i>O tema da obra, nunca publicada, como o título anuncia, a origem das coisas a partir de sua raiz última. Este mundo, inicia o filósofo, possui uma Unidade dominante que não é somente como a da alma com relação a mim mesmo, e nem como eu mesmo com relação a meu corpo, mas que é mais elevada.</p><p style="text-align: justify;">Essa unidade dominante não somente rege o mundo, ela o construiu e o fez, sendo portanto superior a ele e, por assim dizer, exterior a ele, e, por conseguinte, é a razão última de todas as coisas. A razão suficiente da existência dos seres em separado ou em conjunto não se encontra neles mesmos. Suponhamos que sempre tenha havido o livro dos <i>Elementos </i>de Euclides. Poderíamos explicar a existência do exemplar presente pela cópia do exemplar anterior, e assim sucessivamente. Entretanto, por mais que recuemos na cadeia dos livros copiados, não importa sua extensão, a cópia não seria suficiente para explicar a existência dos livros, isto é, por qual razão há livros e por que livros assim redigidos.</p><p style="text-align: justify;">O mesmo, analogamente, acontece com os diversos estados do mundo. Embora cada um possa ser derivado do anterior, a cadeia antecessora de causas não explicaria de modo suficiente a existência das coisas. A razão suficiente não reside nas coisas isoladamente e nem no conjunto delas, tão grande quanto se queira que seja esse conjunto. Os seres deste mundo são contingentes, poderiam ou não existir, e como um existente só pode vir de um existente, há que se admitir que a razão última das coisas se encontra fora do mundo, em um ser absolutamente necessário.</p><p style="text-align: justify;">A fim de se compreenda melhor o que foi dito, Leibniz lança mão do primeiro princípio inegável de que algo há em vez do nada. Isto é, há algo de existente no mundo e não o nada completo. E se há algo existente, esse algo era possível. Tudo aquilo que é possível possui pretensão à existência, ou seja, o possível exige uma essência que não proíbe a sua existência, mas, ao contrário, a capacita para a existência, dá a ela o direito à existência igual a todos os outros possíveis. </p><p style="text-align: justify;">Leibniz considera que a essência de um possível exibe sua <i>quantidade de realidade </i>ou de<i> perfeição. </i>Daí que aquilo que se torna real é sempre aquilo que possui mais perfeição, o <i>máximo possível </i>dadas as circunstâncias concretas. Há uma espécie de <i>matemática divina</i> ou uma <i>mecânica metafísica</i>, segundo a qual, como na geometria e na física, reina a lei do máximo desempenho. Porém, as leis físicas derivam da necessidade metafísica, e não o inverso. </p><p style="text-align: justify;">O mundo não é metafisicamente necessário, dado que podemos pensá-lo como não existente sem implicar nenhuma contradição lógica. Por outro lado, o mundo é fisicamente necessário no sentido de que a sua inexistência seria uma imperfeição ou um absurdo moral. Leibniz distingue aqui dois tipos de necessidade, uma cuja negação implica contradição lógica (princípio de não-contradição, por exemplo) e outra que possui caráter hipotético, que não implica contradição se negada. Por exemplo, se X não existia e passou a existir, X precisou necessariamente de uma causa (Y, digamos). Mas nada exige que necessariamente Y tinha que causar X.</p><p style="text-align: justify;">As essências e as verdades eternas não são ficções, adverte Leibniz. Elas existem, por assim dizer, no <i>mundo das ideias</i>, em Deus mesmo, fonte das essências e das existências das coisas. Como dito acima, a cadeia dos existentes não encontra em si mesma a razão suficiente de sua existência, ela precisa buscá-la nas necessidades metafísicas, e como só um existente pode dar origem a um existente, há que haver um ser metafisicamente necessário, ou seja, um ser no qual essência e existência coincidem, no qual tomam origem todos os possíveis e todas as verdades eternas.</p><p style="text-align: justify;">Com efeito, tudo no mundo se faz de acordo com verdades eternas, matemáticas, geométricas e metafísicas. Quando observada no detalhe, encontram-se na natureza razões formais, leis metafísicas de causa, potência e ação operando mesmo sobre leis geométricas da matéria. O mundo existente tanto quanto os possíveis têm sua origem e fundamento em Deus, e como só se tornam reais aqueles possíveis que possuem essências com maior quantidade de realidade ou perfeição, segue-se que este mundo não é somente o mais perfeito fisicamente, mas também moralmente.</p><p style="text-align: justify;">Leibniz afirma que este mundo é não só a máquina mais perfeita como é igualmente, na medida em que é composta de espíritos, a melhor das repúblicas. Dirão certamente que não é isso que a realidade observável manifesta com todas as suas desgraças e sofrimentos. Leibniz responde que não se julga a obra inteira pela consideração de uma de suas partes. Não conhecemos a realidade em sua inteireza e, portanto, não sabemos como as coisas se encaixam, como a desordem em uma parte pode se conciliar com a harmonia do todo.</p><p style="text-align: justify;">Obviamente, a harmonia do todo não deve ser assegurada ao custo da miséria humana. A justiça está presente, e significa que cada um receba felicidade proporcional à sua virtude e seu zelo pelo bem comum, o qual chamamos de caridade ou amor de Deus. Essa é a força e a potência da religião cristã. E não podemos nos espantar que os espíritos humanos sejam objetos de tanta solicitude da parte de Deus, pois eles refletem mais perfeitamente a imagem do Criador. </p><p style="text-align: justify;">A relação entre os espíritos e Deus vai além da relação que há entre a máquina e seu construtor. A sua relação é a do cidadão com o seu príncipe. Junte-se a isso o fato de que os espíritos durarão tanto quanto o próprio universo, e que eles exprimem e concentram neles mesmos de alguma forma o todo como partes totais. Por último, o sofrimento dos bons concorre para o seu bem, para o seu aperfeiçoamento moral.</p><p style="text-align: justify;">Em 1698, Leibniz publica o opúsculo <i>De Ipsa Natura </i>(Sobre a Natureza ela mesma), onde discute a força inerente às coisas criadas e as suas ações. Embora não seja uma intencionalmente uma sequência do <i>De Rerum, </i>que nunca foi publicado, a obra discute a relação entre Deus e a máquina do mundo, bem como aprofunda a concepção do filósofo sobre a essência daquilo que chamamos de <i>Natureza. </i>A ocasião para compor o opúsculo foi dada pela polêmica em torno das teses do livro <i>De Idolo Naturae</i>, do astrônomo e matemático alemão Johann Christophore Sturm.</p><p style="text-align: justify;">Segundo Leibniz, os dois problemas principais propostos por Sturm eram, primeiro, a questão sobre a constituição da Natureza que costumamos atribuir às coisas, cujos atributos, aos olhos de Sturm, têm algo de paganismo, e, segundo, se reside nas coisas alguma força (ενέργεια), tese que Sturm nega. Leibniz concorda com a inexistência de uma <i>alma do mundo </i>(<i>Anima Mundi</i>), embora considere que a natureza é uma obra de Deus, uma máquina natural composta de uma infinidade de órgãos que exigem, para sua criação e seu funcionamento, uma sabedoria e um poder igualmente infinitos.</p><p style="text-align: justify;">Essa posição conduz à outra questão em voga no tempo de Leibniz. O filósofo natural britânico Robert Boyle defendia que pela natureza de um corpo dever-se-ia entender o seu <i>mecanismo. </i>Em outros termos, dentro do mecanicismo do século XVII, todos os fenômenos da natureza deveriam ter explicações que recorressem apenas ao movimento e ao contato entre porções de matéria. <i>Grosso modo, </i>diz Leibniz, essa explicação pode ser aceita.</p><p style="text-align: justify;">Não obstante, a origem mesma do mecanismo não pode ser derivada nem da matéria e nem das leis matemáticas. O que Leibniz quer apontar aqui é que a matéria inerte, seja ela pura extensão ou seja ela formada por corpúsculos, não se organiza espontaneamente em padrões imutáveis, e as leis matemáticas, tomadas em si mesmas, apenas descrevem tais padrões naquilo que neles há de quantitativo. Desse modo, será metafisicamente impossível dispensar a ação e o governo de alguma inteligência imaterial.</p><p style="text-align: justify;">Nem tampouco seria possível pensar que o <i>fundamento das leis naturais </i>seja a arbitrariedade. Ao contrário, Leibniz assevera, as leis que há no mundo foram impostas por Deus a partir de razões de sabedoria e de ordem. Portanto, as causas finais não são úteis somente no campo da ética e da teologia natural. Elas servem mesmo na física para descobrir verdades ocultas da natureza. Nesse ponto, como em outros escritos, Leibniz resgata o papel da <i>teleologia </i>no estudo da filosofia natural, algo abertamente rejeitado por René Descartes:</p><p style="text-align: justify;"><i>"Nós não nos deteremos também para examinar os fins que Deus se propôs ao criar o mundo, e nós rejeitaremos inteiramente na nossa filosofia a busca das causas finais (...) mas O considerando como o autor de todas as coisas, vamos nos encarregar somente de encontrar, pelo emprego da faculdade de raciocinar que foi posta em nós por Ele, como aquelas das quais nos apercebemos por meio de nossos sentidos poderiam ter sido produzidas." </i>(Descartes, <i>Principia Philosophiae, </i>artigo 28)</p><p style="text-align: justify;">Leibniz não critica o argumento de Descartes nesse texto sobre Sturm, mas não é difícil perceber, cremos, que ele é claramente falacioso, pois as causas finais não se referem necessariamente aos objetivos divinos ao criar o mundo. Na realidade, a teleologia pode ser <i>externa </i>ou <i>interna. </i>O fim externo de algo se refere àquilo para o quê a coisa foi feita. Por exemplo, o caso mais evidente é o do artefato, no qual o artífice impõe à matéria uma forma que não pertencia originalmente à ela. Trata-se de uma <i>causalidade transitiva</i>, isto é, há uma transição da forma ou da ideia na mente do artífice para a matéria que será trabalhada. </p><p style="text-align: justify;">Curiosamente, a máquina e o mecanismo, ao contrário de abandonar a teleologia, na realidade a instala no próprio centro da realidade. Na medida em que se deseja explicar o mundo como um mecanismo, como uma espécie de <i>máquina natural</i>, é inescapável a pergunta acerca do construtor do mecanismo. As leis mecânicas sozinhas ou em mero conjunto descoordenado não explicam por qual motivo elas estão reunidas exatamente naquele padrão específico que produz aquele tipo de máquina. </p><p style="text-align: justify;">Idêntica crítica já era feita por Sócrates, Platão e Aristóteles ao atomismo de Demócrito e Leucipo, e permanece uma questão para todo o materialista desde então. O padrão no qual a matéria se organiza, por definição, não é material. Uma porção de argila pode se tornar um vaso ou um prato. Nada há na argila que determine uma ou outra dessas formas. O próprio Descartes, que nada tinha de materialista, quando tenta explicar o mundo material como uma máquina, necessita de Deus como construtor e mantenedor do mecanismo.</p><p style="text-align: justify;">Até para entender um mecanismo, é necessário compreender como as leis mecânicas estão reunidas e coordenadas em um padrão fixo que não se deriva dessas mesmas leis, transcendendo-as como seu princípio organizador e mantenedor. Isso é mais verdadeiro ainda no caso da teleologia interna, onde se dá uma <i>causalidade imanente</i>, como no caso dos organismos. A matéria do organismo, de um feto, por exemplo, não recebe de fora o seu padrão. Ao contrário, de dentro de si mesma, a matéria se diversifica em órgãos cuja forma e função são determinados pela realização do todo que é pré-estabelecido.</p><p style="text-align: justify;">Retornando ao texto de Leibniz, Sturm defende que os movimentos que se apresentam hoje acontecem em virtude de uma <i>lei eterna, </i>um ato de vontade e um comando, promulgada de uma vez por todas por Deus. A questão é saber se esse comando divino é somente uma determinação <i>extrínseca</i> ou se é uma determinação <i>intrínseca</i>, isto é, uma <i>lei inerente </i>da qual decorrem suas atividades e suas passividades. Leibniz observa que não basta que Deus tenha decretado uma lei no início se essa lei não perpetuar seus efeitos durante o tempo.</p><p style="text-align: justify;">Logo, o comando de Deus não vale só para o momento imediato da criação, configurando-se em um traço gravado nas coisas. A <i>natureza </i>é uma certa eficácia, força inerente ou forma da qual decorrem a série dos fenômenos de acordo com a lei divina. Essa força inerente, contudo, não é passível de ser compreendida pela imaginação (que está presa sempre aos dados dos sentidos), mas somente pela inteligência (<i>intellectus</i>). Aparentemente, Sturm exige que se explique pela imaginação como opera essa força inerente, e na ausência de explicação, infere que a única resposta é que nada se move sem a vontade de Deus.</p><p style="text-align: justify;">Leibniz responde que Sturm está pedindo algo parecido com pentear os sons ou entender as cores. Hobbes também estaria correto em dizer que tudo é material persuadido que está de que só o que é corporal é explicado e representado pela imaginação. Sturm deriva do fato de que, segundo ele, a força inerente aos seres não pode ser explicada via imaginação, que essa força é uma essência desconhecida, e que, ato contínuo, seria melhor admitir logo que é Deus a fonte de cada movimento das coisas no mundo. Seria um <i>ocasionalismo divino, </i>isto é, a tese segundo a qual não há outra ação causal no mundo que não seja Deus.</p><p style="text-align: justify;">O ponto levantado por Leibniz é muito interessante na medida em que lança luz sobre um defeito epistemológico comum a muitos pensadores modernos, notadamente aos empiristas e aos materialistas. Como tais filósofos afirmam que o conhecimento inicia e termina nos dados dos sentidos, a única forma na qual esses dados se reúnem na mente é por meio da memória e da imaginação. Ocorre que a imaginação somente tem o poder de compor e recompor, combinar e recombinar, o que os sentidos fornecem à ela. </p><p style="text-align: justify;">A imaginação pode formar novas imagens cortando, adicionando, combinando partes de muitas imagens, inventando imagens de seres que não existem na realidade <i>extra mentis. </i>Em todas essas atividades, por mais importantes que sejam para o conhecimento, nunca é ultrapassado o nível das imagens presas a conteúdos sensíveis e singulares, <i>este</i> isso e <i>este</i> aquilo. Sendo assim, a imaginação não pode alcançar verdades universais como as da matemática, da geometria, da lógica ou da metafísica, dado que estas são <i>universais</i>, válidas para todos e não para <i>este </i>ou <i>aquele</i>.</p><p style="text-align: justify;">Aquilo que Leibniz chama de <i>força inerente </i>ou <i>natureza</i> é justamente o padrão comum (pleonasmo, admito) a todos os membros de uma determinada classe ou espécie, aquilo que determina o que é o mínimo necessário para que X seja X e não Y. Isso não está sob o alcance dos sentidos ou da imaginação. É o <i>intelecto</i> (<i>intellectus, </i>verbo<i> intellegere, "ler dentro"</i>)* que <i>"penetra" </i>nos dados recolhidos pelos sentidos e encontra neles um padrão que os próprios sentidos não percebem. Não testemunhamos no mundo somente <i>"coleções de percepções sensíveis unidas regularmente"</i>, como querem os empiristas modernos. </p><p style="text-align: justify;">Testemunhamos no mundo <i>entes, substâncias, </i>seres reais que repetem aqui e agora, na sua singularidade irrepetível, um determinado padrão que os ultrapassa em um número indefinido de outros seres do mesmo tipo. É por isso que Leibniz, em seguida, questiona como seria possível que as coisas pudessem durar qualquer tempo se os seus atributos, que chamamos de <i>natureza, </i>não pudessem eles próprios durar de um momento que fosse? A razão exige que o <i>fiat </i>divino tenha instalado nas coisas uma tendência de produzir seus atos, tendência da qual fluem suas operações se nada se colocar como obstáculo.</p><p style="text-align: justify;">Metafisicamente, ensina Leibniz, a própria <i>substância</i> da coisa consiste na sua força de agir e de sofrer (receber a ação de outros). O filósofo que dizer que todas as características da coisa, o que quer que ela seja, expressam exatamente o que ela é. Seu <i>ser </i>é essa <i>força</i> de agir como age e sofrer como sofre. Tudo o que a coisa mostra exibe essa força que constitui o seu <i>ser.</i> Em certo sentido, embora Leibniz não use essa definição explicitamente, poderíamos afirmar que <i>ser é ser capaz de manifestar, capaz de operar e de sofrer. </i></p><p style="text-align: justify;">Deus não poderia somente criar em um momento determinado e, em seguida, nenhuma das características das coisas criadas permanecer no momento seguinte. Analogamente, se as coisas corporais nada tivessem imaterial, seu padrão, elas não seriam mais do que um fluxo perpétuo e insubstancial, como Platão já havia reconhecido. Leibniz aponta para o fato de que nada neste mundo existe sem instanciar um padrão ou uma natureza. Por definição, essa natureza não é material, pois está presente em muitos sem ser dividida ou diminuída.</p><p style="text-align: justify;">Exemplificando, o padrão matemático que descreve um determinado tipo de movimento dos corpos se repete inteiramente, sem diferença, divisão ou diminuição, em todas as situações nas quais os corpos se engajam naquele tipo de movimento. Não se trata de algo material. É uma <i>estrutura formal </i>que se manifesta em cada um de seus exemplares concretos e irrepetíveis. Sem esses padrões, as coisas sequer poderiam <i>ser algo</i>. Leibniz compara com um fluxo insubstancial, mas até essa comparação é imprópria, pois o fluxo é fluxo de algo, como o <i>fluxo de água.</i></p><p style="text-align: justify;">Em resposta à segunda pergunta proposta no início do texto, se as coisas agem realmente, não há dúvida da resposta positiva se se compreendeu corretamente que a natureza das coisas não se distingue de sua força de agir e de sofrer. Toda substância individual age ininterruptamente. O contrário disso seria admitir que Deus é que age em cada uma das ações das coisas, tese que defendem os ocasionalistas como Malebranche. Além dos problemas expostos acima, isso seria negar a liberdade humana e o testemunho íntimo da origem das <i>ações imanentes </i>na vontade.</p><p style="text-align: justify;">É comumente afirmado que o corpo é naturalmente inerte. Leibniz considera que isso é verdade, se bem compreendido. Um corpo em repouso não se colocará a si mesmo em movimento e nem será posto em movimento por outro sem opor alguma resistência. Tampouco mudará espontaneamente sua direção ou sua velocidade. Nenhuma dessas verdades pode ser deduzida somente das característica geométricas da matéria (<i>res extensa </i>de Descartes). A matéria, portanto, não é indiferente ao movimento e ao repouso como dizem comumente, mas é dotada de uma <i>inércia natural. </i></p><p style="text-align: justify;">Essa força passiva, a impenetrabilidade e alguma coisa de mais que Laibniz considera a noção de <i>matéria primeira </i>ou <i>massa, </i>que é a mesma nos corpos e proporcional à sua grandeza. Como há na matéria uma inércia natural ao movimento, assim também os corpos e todas as substâncias possuem uma resistência natural à mudança. Por outro lado, o mesmo corpo, posto em movimento por outro, tende a manter o <i>élan</i> recebido, e a velocidade constante, resistindo à mudança. </p><p style="text-align: justify;">Como essas atividades não podem ser deduzidas da massa, que é passiva, nem da extensão (característica geométrica), resta admitir que há nos corpos uma <i>entelequia primeira** </i>que age sempre. Nos seres vivos, esse princípio se chama <i>alma, </i>e nos outros seres é a <i>forma substancial. </i>A verdadeira substância, unidade constituída de forma e de matéria, é que Leibniz denomina como <i>mônada. </i>Sem essa unidade verdadeira os corpos não seriam mais do que agregados.***</p><p style="text-align: justify;">Tudo isso mostra, encerra Leibniz, que o ocasionalismo de Sturm e de outros, conduz não ao engrandecimento da glória de Deus pela supressão de um suposto ídolo da Natureza, ideia de origem pagã. Ao contrário, dilui as coisas criadas, torna-as meras meras modificações de uma única substância divina, e, tal qual Spinoza, Sturm parece fazer de Deus a verdadeira natureza das coisas. Aquilo que é desprovido de toda potência ativa, de toda marca distintiva, de toda razão de subsistir, não pode ser considerado uma substância. </p><p style="text-align: justify;">É interessante como o mesmo ocasionalismo será reafirmado por George Berkeley doze anos depois em seu <i>Treatise. </i>Entre os argumentos do bispo anglicano de Cloyne está exatamente a noção de que o conceito de Natureza é de origem pagã e de que verdadeiros cristãos deveriam admitir que todas as coisas provém de Deus, como afirma explicitamente a Bíblia. O problema é que negar a natureza significa dissolver as criaturas, pois se Deus é a única agência causal não há nada de substancial nas coisas, nada que caracterize X como X. </p><p style="text-align: justify;">No fundo, não há X, existe somente Deus agindo do modo X costumeiramente e enquanto Ele assim o desejar. Nada, rigorosamente nada, garante ou implica a permanência de qualquer traço, marca, propriedade ou característica de nenhum ser no momento seguinte. Inexiste forma, essência, natureza ou padrão. Tudo o que identificamos (o que consideramos <i>idem</i>) como classes, padrões ou constâncias não existem na realidade. De certo modo, poderíamos até afirmar que não existe <i>realidade, </i>se por esse termo entendemos um todo ordenado.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Leibniz">Νεκρομαντεῖον: Leibniz (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/George%20Berkeley">Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;">...</p><div style="text-align: justify;">*Em inglês, <i>understanding, </i>"estar por baixo", algo como estar no fundamento da coisa, no que a sustenta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">** Entelequia, ἐντελέχεια, no grego. Em Aristóteles, significa o princípio interno de organização e de ação do ente. A tradução seria algo como "ter o fim dentro". Possuir em si mesmo como algo intrínseco o fim, o termo, a natureza que determina o que a coisa é, e que, por conseguinte, determina o desenvolvimento imanente da coisa, bem como seus poderes, suas operações, o que ela pode fazer ou sofrer.</div><p style="text-align: justify;">*** Agregado tem aqui o sentido daquilo que está junto sem nenhum princípio unificante real. Como várias folhas de árvore pode ser arrastadas pelo vento e juntas formarem um monte sem que haja nenhuma unidade real por trás dessa união que é meramente fortuita.</p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-19903434990453148612023-09-10T16:35:00.000-03:002023-09-10T16:35:20.899-03:00Mestre Eckhart, o vazio e a liberdade de Deus<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSZ6Wbgj3kxvuKgrN1d90-S0QlKsc_fmg2Qb9mvutVhR2f9AKAkQ6vmiMm7qcx2qnnVrWlFytprw6ltksDqqPD7noWyqbyRjedLwigY-sxjAl2J88vmLvi10oCRLhgNIg6N7N8CjLAQsXZprAw6w2FQJfZHrT1m0UDIk8RPl9YlGnuiqOEos1Dq_58Q_dZ/s700/Giotto_-_Scrovegni_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="690" data-original-width="700" height="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSZ6Wbgj3kxvuKgrN1d90-S0QlKsc_fmg2Qb9mvutVhR2f9AKAkQ6vmiMm7qcx2qnnVrWlFytprw6ltksDqqPD7noWyqbyRjedLwigY-sxjAl2J88vmLvi10oCRLhgNIg6N7N8CjLAQsXZprAw6w2FQJfZHrT1m0UDIk8RPl9YlGnuiqOEos1Dq_58Q_dZ/s320/Giotto_-_Scrovegni_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg" width="320" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Com efeito, Deus não busca Seu próprio bem. Em todas as Suas operações, Ele é vazio e livre, e opera por verdadeiro amor."</p><p style="text-align: justify;">MEISTER ECKHART, <i>Sermão 1</i></p><p style="text-align: justify;">No seu Sermão 1, o místico medieval renano Meister Eckhart, interpreta simbolicamente a passagem evangélica (Mateus 21, 12) na qual Cristo expulsa os vendilhões do Templo. A interpretação óbvia, à primeira vista, é a de que o Senhor simplesmente desaprova o comércio dentro das dependências do espaço consagrado ao culto espiritual de Deus. Eckhart, sem negar o sentido literal do texto, transporta a dinâmica dos acontecimentos para a interioridade da alma humana.</p><p style="text-align: justify;">A razão pela qual aqueles que vendiam e compravam dentro do Templo é que este simboliza a alma humana cujo centro deve ser ocupado por Cristo, o próprio Deus. A alma do homem é o que o diferencia de todos os outros entes da realidade criada por sua semelhança com o próprio Princípio de todas as coisas, como explicitado pelo texto bíblico do Gênesis (1,26): <i>"Façamos o homem à nossa imagem e semelhança".</i> Essa similaridade entre a alma e Deus é o que fundamentará metafisicamente a possibilidade do total esvaziamento do cristão no <i>Vazio </i>divino.</p><p style="text-align: justify;">Sendo a alma o Templo, os vendilhões só podem ser simbolicamente conteúdos ou atos da própria alma. No caso, só podem ser obstáculos à entrada de Cristo. Os comerciantes não são exatamente más pessoas, diz Eckhart, mas representam aqueles cristãos que na vida se abstém de todos os pecados grosseiros, e que realizam boas obras como jejuns, vigílias e orações. O seu erro, o que constitui o seu <i>comércio</i>, sua <i>venda e compra, </i>é o fato de que todas essas boas ações serem ditadas pelo desejo de receber de Deus algum outro dom que não Ele mesmo.</p><p style="text-align: justify;">Eckhart ultrapassa uma interpretação moralista óbvia a fim de enunciar verdades metafísicas fundamentais. Sim, de fato, o cristão peca quando só faz o bem motivado pelo interesse por bens que não o próprio Senhor. Deus se torna um meio e não um fim em si mesmo. A questão, porém, tem dimensões mais profundas. O homem que faz esse comércio com Deus se esquece que qualquer bem que ele deseje é infinitamente menor que o próprio provedor desse bem. Não basta fazer o bem, embora seja um passo necessário. É preciso fazer o bem com a correta disposição de espírito, por assim dizer.</p><p style="text-align: justify;">Novamente, não se trata aqui de mero discurso moral. Eckhart está ensinando como o homem pode ser verdadeiramente bom, no seu grau mais alto de perfeição que sua semelhança ontológica com Deus lhe concede. Em certo sentido, o que o místico renano quer expressar é que só se age bem quando se manifesta através de nós o Bem, e não as nossas preferências. </p><p style="text-align: justify;">Embora o próprio Eckhart não a cite, creio que a passagem evangélica seguinte fornece a chave desse mistério: <i>"Replicou-lhe Jesus: 'Por que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus!'" </i>Isto é, rigorosamente, o Bem reside somente em Deus, ou melhor, o Bem é Deus, e mais nenhum ente que não seja Ele pode reivindicar esse título. Comerciar com Deus em troca de qualquer bem é não compreender quem é Ele, <i>in the first place.</i> </p><p style="text-align: justify;">Tudo o que esses comerciantes são, eles recebem de Deus, e tudo o que possuem, também o recebem de Deus. Nada pertence a eles. Portanto, o Senhor nada deve a eles por seus supostos atos de bondade. Se Ele concede bens aos homens, não é por recompensa ou por troca de favores. <i>"Sem mim, nada podeis fazer" </i>(Jo 15,5). O mestre renano chama a atenção aqui para um tema comum da metafísica neoplatônica medieval, a <i>indigência ontológica. </i></p><p style="text-align: justify;">O fato mais patente de nossa realidade humana é que a nossa existência foi precedida por nossa inexistência e será sucedida novamente por nossa inexistência. Só existimos porque fomos trazidos à existência por entes que já existiam, pai e mãe, nossas causas próximas, e, subindo a cadeia, todas as nossas causas remotas, como nossos ancestrais. Sequer o fato de existir é algo que nos pertença como uma propriedade intrínseca. Nós <i>recebemos</i> a existência, não a possuímos absolutamente, dado que ela cessará, em algum momento do futuro, na morte, queiramos ou não.</p><p style="text-align: justify;">Metafisicamente, sequer nossa realidade pertence a nós. Toda posse se torna ilusória diante do fato de que os bens também são transitórios em si mesmos ou, pelo menos, só podem ser fruídos transitoriamente, dado que nosso tempo de existência é limitado. Todo o bem que nos atrai no mundo só é um bem <i>participado, </i>e não o Bem <i>imparticipável. </i>A condição das coisas deste mundo é tão fugidia e precária que alguns neoplatônicos medievais, como Ulrich de Strasburg, afirmavam sem peias que as criaturas são <i>falsos entes. </i></p><p style="text-align: justify;">Agostinho de Hipona, outro neoplatônico (da antiguidade tardia), no início do Livro XI de sua obra magna <i>Confissões, </i>já afirmava a relativa inexistência das coisas cambiantes deste mundo:</p><p style="text-align: justify;"><i>"Portanto, Senhor, Tu as criastes, Tu que és belo, pois elas são belas; Tu que és bom, pois elas são boas; Tu que existes, já que elas existem. No entanto, nem são tão belas, nem tão boas, nem existem tal como existes, Tu que és o Criador delas. Comparadas contigo, nem são belas, nem boas, nem mesmo existem". </i></p><p style="text-align: justify;">O bispo africano expressa perfeitamente o <i>circuito </i>da realidade. Conhecemos o belo limitado nas coisas, subimos na direção de sua Fonte última, e ali, já fora de todas as limitações e particularidades, compreendemos que, comparadas com a Fonte última, nenhuma das coisas belas é realmente bela. Do mesmo modo, a existência contingente das coisas deste mundo eleva o intelecto na direção de uma existência <i>necessária</i>, ou seja, sem limites, de tal modo que, quando atingimos esse ápice, compreendemos que nenhum dos entes daqui merece o título de <i>existente.</i></p><p style="text-align: justify;">Entendidos corretamente, os argumentos cosmológicos tradicionais de demonstração da existência de Deus buscam responder justamente à seguinte pergunta: de onde vem o poder de existir que as coisas evidentemente exibem, mas que, ao mesmo tempo, evidentemente não reside em nenhuma delas como uma propriedade que lhes seja intrínseca? A instabilidade ontológica dos entes, sua <i>impermanência</i> radical, nivela todos na mesma relativa inexistência. É óbvio que as coisas existem, mas somente de forma derivativa e fugidia.</p><p style="text-align: justify;">Mestre Eckhart prossegue o sermão afirmando que aqueles que tentam comprar e vender em suas relações com Deus não entendem a verdade. Quando Cristo entra no Templo, como a luz que expulsa as trevas, a ignorância é expulsa da alma e a Verdade se revela inteiramente. Deus não age por nenhum bem externo a Ele mesmo. Deus é <i>vazio e livre</i>, age por verdadeiro amor. Assim também age o homem unido perfeitamente ao Senhor, não a partir de si mesmo, <i>vazio e livre</i>, sem jamais buscar seus próprios interesses, tudo realizando pela glória de Deus.</p><p style="text-align: justify;">O que Eckhart afirma nessa curta, porém metafisicamente densa, passagem sobre a entrada de Cristo se segue do que foi dito sobre a <i>indigência ontológica </i>dos entes. O que significa a entrada de Deus na alma senão a completa desaparição de todo e qualquer ente? Deus não <i>aparece </i>na alma como <i>algo</i> em meio a outros <i>algos. </i>Enquanto Ele <i>aparecer </i>na alma como <i>algo, </i>Ele não estará plenamente na alma. Será um ídolo, uma imagem, um pensamento, um conceito, ou um bem que compete com tantos outros bens o coração do homem.</p><p style="text-align: justify;">Note-se que Eckhart não está sugerindo que Deus deva ocupar a alma como um objeto de obsessão pode ocupar a mente do obcecado. Um homem pode ser obcecado por dinheiro a tal ponto que nada mais tem lugar em sua mente. Todavia, esse é o caso extremo oposto do que Eckhart está tratando. A obsessão significa conceder a um ente determinado o estatuto de única realidade, expulsando simultaneamente toda a multiplicidade de bens que há no mundo. É o caso de um <i>objeto </i>inflado à condição de <i>fundamento.</i></p><p style="text-align: justify;">A despeito de fato de que todo e qualquer outro bem seja expulso da alma do obcecado, ainda se trata de um <i>ente, </i>de <i>algo </i>determinado. Deus não aparece na alma como <i>algo, </i>repito. Se é possível expressar dessa maneira imperfeita, o <i>modo de aparição de Deus é o desaparecimento dos entes</i>. Enquanto houver entes, não há Deus na Sua plenitude. Óbvio, admito, Ele se manifesta (pradurbhava) nos entes, e os entes não se constituem necessariamente em obstáculo para o homem santo contemplá-Lo.</p><p style="text-align: justify;">A questão aqui não é rejeitar os entes, desprezá-los, negá-los ou julgar a sua existência um mal. Isso seria absurdo. O ponto é que Eckhart se refere a um grau de perfeição espiritual supremo no qual a alma não tem mais olhos para nada que não seja o próprio Deus, posto que compreende a verdade de que todas as coisas que há no mundo devem sua existência a Ele, sendo, portanto, sempre e necessariamente, bens de segunda ordem. Amar os bens acima do Criador dos bens seria como amar os frutos e desprezar a árvore que os gera. Quem possui a árvore, possui os frutos, mas o contrário não é verdadeiro.</p><p style="text-align: justify;">Deus <i>aparece</i> na alma, como Cristo entra no Templo, esvaziando suas dependências de qualquer outra coisa que não seja Ele mesmo. Se a luz penetra completamente, sem limitações, não há como haver sombras. O <i>Ser,</i> para usar um termo caro à filosofia ocidental, só se revela na sua plenitude quando os entes desaparecem, e resta somente o <i>vazio. </i>Deus é <i>vazio, </i>afirma Eckhart. Deus é <i>Nada, </i>mas não é o <i>Nada</i> no sentido da ausência completa, absoluta e total de qualquer realidade efetivamente existente ou meramente possível. </p><p style="text-align: justify;">Deus é <i>vazio</i> justamente porque Ele não é nenhuma das coisas limitadas. Não sendo nenhuma das coisas, não <i>aparece</i> como uma coisa entre outras coisas, um ente entre outros entes. A entrada de Cristo no Templo tem que necessariamente ser acompanhada da expulsão dos vendilhões que ainda confundem Deus com algum ente, e que, por isso, têm o coração dividido. Aquele que é o fundamento último e a fonte de todos os entes não pode sofrer das limitações dos entes que Ele fundamenta.</p><p style="text-align: justify;">Deus é <i>vazio </i>porque não cabe em nenhuma das categorias do pensamento humano e não está sob o jugo de nenhuma limitação. Por isso, é <i>vazio </i>e <i>livre. </i>Se ser livre é não estar sob algum tipo de limitação ou constrangimento interno ou externo, então não há liberdade real a não ser em Deus. Nele estão ausentes todos os tipos de obrigação ou de constrangimento. O que poderia ser a <i>Realidade,</i> no seu grau último e fundamental, senão absoluta <i>liberdade </i>e <i>vazio</i>?*Nesse sentido, buscar a <i>Realidade</i> é buscar o <i>Vazio.</i></p><p style="text-align: justify;">Perguntas sobre se Deus segue a lógica ou sobre se o certo moralmente é certo somente porque Deus assim o quis e não por ser certo em si mesmo, são questões próprias de quem não compreendeu o que Deus é, e O confunde com algum ente, por mais poderoso que esse ente seja. Não há sentido em se perguntar à <i>Realidade </i>por qual razão ela é do jeito que ela é. Se houvesse alguma razão anterior à <i>Realidade, </i>essa razão seria a <i>Realidade. </i>E a pergunta poderia ser refeita sempre com o mesmo resultado <i>ad infinitum.</i></p><p style="text-align: justify;">A absoluta liberdade divina não pode ser compreendida em termos de arbítrio humano. Não há diferença entre as leis racionais e a liberdade na unicidade infinita de Deus. Ele não obedece a leis das quais Ele mesmo é o fundamento. Nem tem outro bem ao qual se inclinar. Não age por interesse próprio, pois só possui interesse aquilo que sente a falta de algo. Age por puro amor, por pura doação. Entretanto, a ação divina não deve ser entendida como a ação humana, que é limitada e temporal.</p><p style="text-align: justify;">Só pode <i>receber </i>Deus na alma, como Cristo entra no Templo, quem não possui <i>nada</i> ali além do próprio Deus. O cristão unido plenamente ao Senhor, afirma Eckhart, deve ser <i>como </i>o Senhor, <i>vazio </i>e <i>livre.</i> Quem é <i>vazio </i>não possui interesses próprios e nem age movido pelo desejo de algum bem útil para si mesmo. O seu <i>vazio</i> não é o vazio de quem está morto para a vida, daquele que não enxerga valor em nada. Não se trata de <i>nihilismo</i>, nem de uma impotência ou de uma incapacidade.</p><p style="text-align: justify;">Ao contrário, é o <i>vazio </i>de quem se encontra no âmago da <i>coincidentia oppositorum**, </i>lá mesmo onde todas as coisas têm a sua origem <i>"antes"</i> de serem originadas. Poderíamos afirmar que <i>só se conhece Deus não conhecendo mais nada. </i>O Senhor entra no Templo, necessariamente todo o resto é desaparece. Os entes desaparecem não porque são ofuscados por um outro ente muito maior que eles, mas sim porque são <i>reabsorvidos </i>na sua Fonte última<i>.</i> </p><p style="text-align: justify;"><i>Solve et coagula. </i>O que antes se solidificou agora se dissolve. O que foi expirado é inspirado. O interesse por qualquer ente desaparece quando se está no centro emanador de toda e qualquer possibilidade. Nesse sentido, é correto afirmar que <i>aquele não possui nada, possui tudo.</i> O que é mais valioso, o produto de uma capacidade ou a capacidade que o produz? A onipotência não é mais do que a <i>liberdade </i>e o <i>vazio</i> de Deus, ou seja, a capacidade inesgotável da <i>Realidade </i>de tornar <i>real </i>o que quer que ela determine que se torne <i>real.</i> </p><p style="text-align: justify;">A perfeição espiritual do cristão consiste em ser completamente <i>vazio</i> como Deus é <i>vazio. </i>A alma não busca mais seu<i> </i>interesse quando age. Situada no mais íntimo do <i>Princípio</i>, a alma não deseja mais nada, não age por interesse próprio, e nem em troca de algum bem. <i>"Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim", </i>diz o apóstolo (Gálatas 2:20). A alma deve permanecer tão vazia como se ela ainda não existisse. A alma também <i>desaparece</i> quando Deus aparece.</p><p style="text-align: justify;">Dito de outra forma, enquanto ainda há <i>algo</i>, ou, principalmente, enquanto ainda há <i>alguém</i>, a presença do Senhor não é perfeita. O Absoluto não nega o relativo, mas o engloba precisamente porque o transcende. Tudo desaparece diante de Deus porque todas as coisas são reunidas sem antinomia em seu <i>Princípio. </i>É somente quando o cristão se esvazia de si mesmo que ele pode agir exclusivamente por Deus e como Deus.</p><p style="text-align: justify;">Retornando ao texto evangélico, Eckhart nota que Jesus, mansamente, exorta aqueles que ofereciam pombos no Templo que libertassem os pequenos animais. Simbolicamente, os pombos são as boas obras dos bons cristãos que tudo realizam por amor a Deus, e não por interesse próprio, mas que permanecem ligados à propriedade, ao tempo e ao número, ao antes e ao depois. Falta-lhes ultrapassar até mesmo essas boas ações realizadas por amor a Deus no âmbito do tempo e da propriedade.</p><p style="text-align: justify;">Esses bons cristãos deveriam ser como Jesus, o <i>Verbo</i>, que tudo recebe eternamente no seio do Pai, sem nenhum obstáculo de propriedade, de antes ou depois, <i>vazio </i>e <i>livre.</i> Não é necessário entrar aqui em todas as sutilezas da teologia trinitária católica, embora alguns comentários sejam oportunos. O Catolicismo afirma que Deus é uma <i>trindade consubstancial</i>, isto é, há uma só e mesma natureza divina (monoteísmo), que preserva sua unicidade a despeito da presença de três <i>Pessoas</i> divinas, Pai, Filho e Espírito Santo.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro"</i>, assim o Credo Niceno-Constantinopolitano se refere a Cristo. O Filho é gerado, não criado, pelo Pai desde toda a eternidade, em um <i>evento atemporal</i>, onde não há antes ou depois, mas que, por assim dizer, ocorre sempre e desde sempre. O Filho tudo recebe do Pai e O reflete perfeitamente. É por isso que o mestre renano afirma que Cristo é <i>vazio e livre. </i>Ele não guarda nada para si mesmo, não possui outra vontade que a do Pai desde toda a eternidade.</p><p style="text-align: justify;"><i>Gelassenheit,</i> termo que Eckhart utiliza para descrever esse nível de perfeição a que o cristão pode alcançar, admite várias traduções como <i>desapego, </i><span style="text-align: left;"><i>serenidade, calma, repouso, equanimidade, declinação, </i>entre outros. Em um de seus tratados, o mestre define <i>Gelassenheit</i> como um estado de absoluta imperturbabilidade e imobilidade com relação a qualquer acontecimento, bom ou ruim, alegre ou triste. Mais profundamente, esse é o modo de ser de Deus, pois nada O move em qualquer direção. No caso do ser humano, Eckhart explica </span><span style="text-align: left;">que <i>"estar vazio de todas as coisas criadas é estar cheio de Deus, e estar cheio das coisas criadas é estar vazio de Deus."</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">A alma <i>desapegada, </i>tendo abandonado a si mesma, mergulha na Luz eterna, incriada e sem mescla de Deus. Ali ela encontra o seu <i>nada, </i>e nesse <i>nada</i> ela está tão completamente afastada de qualquer coisa criada que, por seu poder próprio, não pode retornar à nada daquilo que é criado. A alma ousou se aniquilar, não possui mais nada de si mesma para retornar ela mesma a si mesma. Nesse estado de perfeição, quando só Deus <i>aparece, </i>todo o resto necessariamente desaparece. Todos os entes são reduzidos a <i>nada</i>, dado que sempre foram <i>nada.</i></span></p><p style="text-align: justify;">As coisas não são literalmente destruídas ou aniquiladas por Deus. Ocorre que a alma, quando perfeitamente unida a seu Senhor, percebe com insofismável clareza a sua absoluta <i>indigência ontológica </i>(assim como a de todas as outras coisas). Nada há nela que lhe pertença realmente, nada que se deva exclusivamente à ela. Não possuímos em nós mesmos o poder de existir. No fundo, somos <i>nadas </i>provisoriamente interrompidos. A nossa inexistência foi interrompida durante um curtíssimo espaço de tempo.</p><p style="text-align: justify;">A entrada de Cristo no Templo acompanhada da expulsão dos vendilhões corresponde à compreensão do que realmente somos na escala da realidade. Nada é nosso, nada possui substancialidade. Do pecador mais grosseiro ao homem bom que ainda não se desapegou inclusive de suas boas obras, todos, em graus diversos, trocam Deus pelos entes. As almas se apegam ao <i>nada </i>dos entes em vez de receber tudo no <i>Nada </i>divino.</p><p style="text-align: justify;">Em Cristo, a alma cresce incessantemente em todas as virtudes e potências, e se identifica com o Senhor de tal modo que nenhuma das coisas criadas no tempo e no espaço podem ter sobre ela qualquer efeito. Além disso, unida à Cristo, a alma se une à própria sabedoria divina, o que faz desaparecer de si toda a dúvida, todo o erro e toda a obscuridade. <i>"Eu e o Pai somos um". </i>Só se conhece Deus em Deus, a luz na luz. </p><p style="text-align: justify;">A alma retorna ao seu <i>Primeiro Princípio, </i>lá mesmo onde Cristo recebe e partilha com o Pai a mesma <i>essencialidade simples</i>, isto é, a natureza divina comum à Trindade. Ekhart usa a expressão <i>einweiltigen weselicheit, </i>que o medievalista Alain de Libera traduz como <i>l'essentialité </i>ou <i>étantité simple, </i>referindo-se à unidade da essência de Deus. Eckhart não está afirmando que exista uma causa essencial da Trindade, como se o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem criaturas ou efeitos de uma causa externa à eles. </p><p style="text-align: justify;">O que existe é uma única e indivisa natureza divina presente nas três Pessoas. Essa <i>essencialidade simples </i>é tanto a <i>uniformitas, </i>a consubstancialidade divina da Trindade, quanto o princípio primeiro criador de todas as criaturas. Poderíamos dizer, creio, que é a <i>divinitas </i>de Deus, aquilo que propriamente torna Deus o que Ele é: Deus. Obviamente, na Trindade, essa <i>divinitas </i>é a <i>essencialidade simples</i> que há em comum nas três Pessoas desde toda a eternidade. </p><p style="text-align: justify;">No caso das criaturas (nós e todas as outras coisas), a mesma <i>essencialidade</i> divina é seu princípio <i>criador, </i>ou seja, os entes são<i> criados </i>por Deus, trazidos à existência. Acontece que, quando está unida à Cristo perfeitamente, a alma se encontra no fundo dessa <i>essencialidade</i>, tendo retornado à fonte infinita de onde saiu. Eckhart assevera que a alma está nela mesma, fora dela mesma, acima dela mesma e acima de todas as coisas.</p><p style="text-align: justify;">A perfeição espiritual é o retorno ainda em vida ao <i>vazio </i>divino, lá onde todas as coisas estão presentes antinomicamente como possibilidades eternas no seio da <i>essencialidade simples </i>de Deus. Que não esqueçamos que quando falamos da natureza ou da essência divina não nos utilizamos desses termos de modo unívoco. Sem dúvida Deus não possui uma essência no sentido de um conjunto limitado de características necessárias e suficientes para que um ente pertença a uma certa classe ou espécie. </p><p style="text-align: justify;">Deus não é <i>um ente, </i>e nesse sentido Ele não possui uma essência que O distingue de outros entes. A <i>essencialidade simples </i>é um termo imperfeito (como são todos os termos) para expressar a diferença absoluta de Deus. Na realidade, a <i>divinitas, </i>a <i>essencialidade simples</i>, é completamente indizível, inexprimível, incognoscível, incompreensível e inefável. Não é por capricho que Meister Eckhart fala de <i>Vazio </i>ou de <i>Nada </i>a fim de referir-se ao Senhor.</p><p style="text-align: justify;">A alma, unida a Cristo no fundo insondável da <i>essencialidade </i>divina, realiza o grau máximo do desapego<i>, Gelassenheit, </i>ainda nesta vida. Sem negar as criaturas, mas transcendendo-as em seu <i>Princípio</i>, o cristão se instala imóvel e equânime no centro da <i>Realidade. </i>Nada o abala, e nada o move ou o interessa a não ser o próprio Deus. Cristo entrou no Templo, os vendilhões se foram e as pombas alçaram voo. Não há sequer eu e Tu. Só o Tu.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">*<i>Sunya, Sunyata, </i>(vazio, vacuidade) na linguagem budista Mahayana</p><p style="text-align: justify;">** O termo não é originalmente utilizado por Eckhart no texto.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia mais:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Meister%20Eckhart">Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/m%C3%ADstica">Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-39670683691215133642023-08-31T16:13:00.002-03:002023-08-31T16:13:59.048-03:00Huang Po, Buddha e o método da Iluminação<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgT07oomqPi_ZzlfbFek05WadZ2nnMF2trcLZVIZlMbrQtp6CdIaGNmzum21rPqS1rMlZ6-YAoR1AfJSXtE38LTbCEEuwxud31kx6wQCZka-E-el5DOhYbM_wcDbZwPcOXRjGuvTGujVtFYN4bQSGBzLhsUWjRvT7FQTCDontkyA_KRLLoQ5kUYr-suXM68/s780/R.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="780" data-original-width="690" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgT07oomqPi_ZzlfbFek05WadZ2nnMF2trcLZVIZlMbrQtp6CdIaGNmzum21rPqS1rMlZ6-YAoR1AfJSXtE38LTbCEEuwxud31kx6wQCZka-E-el5DOhYbM_wcDbZwPcOXRjGuvTGujVtFYN4bQSGBzLhsUWjRvT7FQTCDontkyA_KRLLoQ5kUYr-suXM68/w283-h320/R.jpeg" width="283" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"Doutrinas existem somente para apontar na direção do espírito. Tendo visto o espírito, por que dar atenção a doutrinas?"</div><p style="text-align: justify;">BODHIDHARMA, <i>Sermão da Corrente Sanguínea</i></p><p style="text-align: justify;">O método de iluminação espiritual é um dos temas principais dos ensinamentos e discursos do mestre Ch'an (Zen, no Japão) Huang Po. O que causa certa estranheza a seus ouvintes é a sua aparente negação da importância dos métodos espirituais transmitidos pela tradição. É preciso, no entanto, entender que essas negações aparentes adquirem seu sentido pleno quando compreendidas a partir de <i>Sunyatta, </i>a "vacuidade".</p><p style="text-align: justify;">Na rica tradição budista <i>Mahayana</i>, não é raro encontrar ordens paradoxais como <i>"se encontrar o Buddha, mate o Buddha!"</i> dadas por mestres aos seus discípulos. A mentalidade ocidental só consegue enxergar contradição nessas declarações porque não compreende <i>de onde</i> elas estão sendo proferidas. Assim como o ditado Zen que diz que o mestre aponta para a Lua e o tolo olha para o dedo, o discípulo só vê o instrumento, o método, sem se atentar para o fato de que o método ele mesmo faz parte do mundo fenomênico a que se quer ultrapassar.</p><p style="text-align: justify;">O grande mestre indiano Bodhidharma, considerado como o introdutor do budismo na China e como mestre das artes marciais, dizia que <i>"seu espírito é o Buddha. Não use o Buddha para venerar o Buddha". </i>A advertência é dirigida aos discípulos que absolutizam o método, ou mesmo hipostaziam o Buddha, transformando a natureza búdica informe em um fenômeno entre outros fenômenos. No fundo, o método e o Buddha são, tais como se apresentam a nós nessa realidade fenomênica, são ainda fenomênicos.</p><p style="text-align: justify;">Não obstante, aquilo para o qual eles apontam, não é o fenomênico. Em certo sentido, o Buddha é fenômeno na medida em que se mostra a nós como algo entre outras as coisas deste mundo. Em outro sentido, o Buddha, na sua verdade última, é a realidade que ultrapassa tudo aquilo que é fenomênico. Analogamente, o método de iluminação é um fenômeno que aponta para o que ultrapassa todo fenômeno. Na sua verdade última, o método é o espírito puro sem distinções do qual fala Huang Po. Não há outro método. </p><p style="text-align: justify;">Huang Po ensina que se os discípulos querem uma fórmula essencial, basta a eles nada fixar no espírito. O corpo absoluto do Buddha é comparado metaforicamente ao céu. Não significa que o corpo do Buddha seja contido pelo céu, e sim que o corpo e o céu são uma e só realidade. Não há diferença entre um e outro, como não há diferença entre <i>Samsara</i> e <i>Nirvana.</i> O espírito do Buddha reside onde não há caracteres particulares. O mundo fenomênico não se distingue do espírito búdico como algo separado. </p><p style="text-align: justify;">O método não é mais do que esquecer os objetos e o espírito, diz Huang Po. Nesse caso, o mestre chinês se refere ao espírito individual e aos objetos que nos cercam. Mas as pessoas comuns têm receio de esquecer deles porque temem tombar no vazio sem ter onde se agarrar. A nossa natureza búdica, porém, não é um simples vazio, ela não possui início e nem fim, nem acima e nem abaixo, nem silenciosa e nem sonora, nem número e nem quantidade, , jamais se sujou ou se purificou, não possui voz, silhueta ou voz, não é antiga e nem nova, não possui lugar e nem direção.</p><p style="text-align: justify;">O Buddha é o espírito puro, e o Buddha é o método. O método, portanto, não é esta sequência de práticas que supostamente conduz a alguma <i>coisa. </i>Mesmo o método e as práticas espirituais ainda são fenômenos. O sentido profundo do método é a negação da substancialidade do próprio método e de sua importância. Em outros termos, o método, visto a partir do espírito absoluto do Buddha onde todas as distinções desaparecem, também ele é uma entidade distinta que desaparece e deve desaparecer. Seu valor não reside nele mesmo, reside na sua negação na real Iluminação.</p><p style="text-align: justify;">Como já afirmamos em outros momentos, aqui estamos usando a linguagem para ultrapassar a linguagem a fim de falar daquilo que é o fundamento das coisas e da própria linguagem. Não à toa, o budismo, e Huang Po, não preconizam o pensamento conceitual para compreender a Iluminação. Não há compreensão conceitual daquilo que ultrapassa o conceito. O que dizemos, inclusive o que Huang Po ensina verbalmente a seus discípulos, é um vestígio, uma imitação imperfeitíssima dessa realidade búdica que só é <i>"compreendida"</i> quando <i>"experimentada"</i>.</p><p style="text-align: justify;">Quando os mestres falam do <i>espelho claro</i>, por exemplo, eles usam um símile para esclarecer as pessoas de faculdades medianas e inferiores. O espírito puro é como o espelho completamente limpo que reflete tudo o que se lhe coloca à frente sem nada distorcer e sem nada acrescentar ou subtrair, mantendo sempre sua pureza original intocada. Aqueles que desejam fazer a real experiência, por assim dizer, não devem mais pensar usando esses símiles, dado que causam apego aos objetos. </p><p style="text-align: justify;"><i>"No ser se afunda a realidade. Então, não crer em ser ou não-ser é suficiente para enxergar"</i>, arremata Huang Po. Na primeira sentença, o mestre sintetiza uma verdade metafísica profunda: nas coisas que são, isto é, nas coisas que existem ou podem existir, a realidade última que funda a existência de todas as coisas submerge ou é "escondida" por esses mesmos seres aos quais dá origem. O mundo fenomênico (ou o mundo dos <i>entes,</i> o mundo da limitação e das oposições), "submerge" a realidade búdica por causa de nossos apegos ou de nossas rejeições a este ou àquele ser em particular.</p><p style="text-align: justify;">Toda a nossa percepção é dirigida para a distinção e separação dos entes como se eles fossem absolutamente independentes uns dos outros e como se algum deles ou alguns deles tivessem o condão de, ainda que sendo limitados como são, satisfazer completamente os nossos desejos. Então, a realidade do Buddha, que sempre está lá onde estão as coisas (sem que nenhuma delas ou a sua totalidade se constitua em real obstáculo para a Iluminação), desaparece como a Lua desaparece para o tolo que olha para o dedo que aponta. </p><p style="text-align: justify;">A segunda sentença pode dar a impressão aos ouvidos ocidentais de que se trata de uma negação pura e simples da distinção entre ser e não-ser. Se fosse esse o caso, ser e não-ser seriam igualmente inexistentes, o que equivaleria a uma afirmação do nada puro. Huang Po não afirma que a cadeira não é um ser, isto é, não é um ente existente, e nem nega a existência de tudo aquilo que é não-cadeira, nem mesmo a simples inexistência de alguns entes. Mais uma vez, é mister ter em mente a partir <i>"de onde"</i> o mestre fala.</p><p style="text-align: justify;">O seu objetivo é evitar o apego aos métodos como se fossem fins em si mesmos ou como se conduzissem a algo a ser descoberto <i>fora </i>das coisas. <i>Não crer em ser ou não-ser</i> é enxergar a realidade na sua totalidade, na sua <i>talidade </i>(caráter de ser <i>tal</i>), como o enxerga o Buddha <i>Tataghata, </i>aquele que conhece a realidade <i>tal</i> como ela é. Não há nada a excluir ou a separar, nada que seja substancialmente separado de todo o resto, de modo que todas as oposições, como <i>ser e não-ser</i>, são reunidas e <i>transcendidas </i>no <i>espírito puro </i>do Buddha. </p><p style="text-align: justify;">Aquilo que transcende, não nega. Só há negação onde há entes de uma mesma natureza a serem contrapostos. O <i>espírito puro </i>transcende e, portanto, reúne em si, as oposições e as negações. Ser e não-ser é a oposição mais básica do mundo fenomênico, isto é, do nosso mundo limitado. <i>Não crer em ser ou não-ser </i>é não absolutizar as diferenças, é reuni-las naquilo que as transcende e as fundamenta. No caso do mestre Huang Po, significa reunir e transcender as dualidades e oposições na sua fonte última, o <i>espírito puro </i>do Buddha. Nada é perdido, tudo é remetido à sua realidade última.</p><p style="text-align: justify;">Essa é a simplicidade de que fala o mestre chinês. O método consiste em tão somente não absolutizar as oposições e dualidades. É não se afundar nos entes a ponto de tomá-los como a única realidade. O método não conduz à nenhuma <i>novidade</i>, à nada <i>fora </i>daquilo mesmo que as coisas sempre foram. Não é o método, mas a <i>transcendência do método</i> que é a Iluminação. Vistas todas as coisas a partir de sua raiz no<i> espírito puro</i>, todas as oposições se esvaem, são reconduzidas a seu fundamento, transcendidas sem serem negadas ou destruídas. </p><p style="text-align: justify;">Perseguir as coisas exteriores, confundir os objetos com o <i>espírito puro</i>, é como <i>reconhecer como teus filhos aqueles que te saqueiam, </i>ensina Huang Po. É exatamente por causa da existência do desejo, do ódio e da ilusão (as fontes básicas do sofrimento humano) que existe a Iluminação. O problema não reside na realidade enquanto tal, mas em nossa tendência de nos <i>afundarmos</i> nas coisas, buscarmos isso e rejeitarmos aquilo, absolutizarmos as dualidades e as oposições. Nada deve ser acrescentado à nossa natureza búdica original.</p><p style="text-align: justify;">O <i>espírito puro </i>é como céu. Se quiséssemos orná-lo de pedras preciosas, nenhuma delas se fixaria nele nem por um momento. Embora se enfeite com méritos e sabedoria, nada se fixa no espírito búdico original. Basta se desviar de sua natureza fundamental para não mais a enxergar. Isto é, basta se fixar nos entes para não mais enxergar o <i>espírito puro. </i>Todavia, como todas as grandes religiões afirmam, o que há de mais fundamental nas coisas e nos homens jamais é afetado, manchado, diminuído ou acrescentado em sua pureza transcendente.</p><p style="text-align: justify;">...</p><div style="text-align: justify;">As nuvens passam pelo Monte Fuji. <br />Sem este, quem as notaria? </div><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também:</p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Zen">Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/budismo">Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-63566013618993189962023-08-17T20:56:00.004-03:002023-12-19T11:23:05.423-03:00George Berkeley, metafísica e ciência moderna<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnfH6YpVdYyRaVjVpiQCIxz9lfCV6bQ_4tE2sdsgzdZv0eGusibrWJx7UBQGxsglCE-6fnsBa0ZnL-Cbi3C-f6BA7tSj3vwhH5M-ZBS5XUQthwT2tPB_pJkffehaiHh88lVGWX-q-8E4qGz5mfcHa1l8bMUhvwZFvPY3bzStul5f6ExdcsQYLysQET0De8/s398/R%20(1).jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="398" data-original-width="330" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnfH6YpVdYyRaVjVpiQCIxz9lfCV6bQ_4tE2sdsgzdZv0eGusibrWJx7UBQGxsglCE-6fnsBa0ZnL-Cbi3C-f6BA7tSj3vwhH5M-ZBS5XUQthwT2tPB_pJkffehaiHh88lVGWX-q-8E4qGz5mfcHa1l8bMUhvwZFvPY3bzStul5f6ExdcsQYLysQET0De8/s320/R%20(1).jpeg" width="265" /></a></div><p style="text-align: justify;">"Na física, sentidos e experiência dominam, os quais alcançam somente os efeitos aparentes. Na mecânica, as noções abstratas dos matemáticos são admitidas. Na filosofia primeira ou metafísica, estamos preocupados com os entes incorpóreos, com causas, verdade, e a existência das coisas."</p><p style="text-align: justify;">GEORGE BERKELEY, <i>De Motu, </i>parágrafo 71</p><p style="text-align: justify;">O filósofo e bispo anglicano George Berkeley publicou em 1710 o <i>Treatise Concerning the Principles of Humean Knowledge, </i>sua obra mais importante na qual expunha os princípios epistemológicos e metafísicos de sua filosofia <i>imaterialista. </i>O seu ponto de partida é o mesmo de praticamente toda a filosofia moderna desde o argumento do sonho em René Descartes, a saber, a tese segundo qual o espírito humano produz ou pode produzir, parcial ou totalmente, suas próprias ideias ou representações sem nenhum auxílio ou material do mundo externo. </p><p style="text-align: justify;">O que diferencia a metafísica de Berkeley é sua eliminação da matéria ou a redução ontológica da realidade ao <i>imaterial. </i>No título do <i>Treatise</i>, o bom bispo deixa claro seu intento de combater os ateus, os céticos e os irreligiosos, e a sua estratégia é exatamente retirar dos tradicionais inimigos da fé cristã a sua base comum: o<i> materialismo. </i>Evidentemente, Berkeley não acha que todos os que creem na existência da matéria sejam necessariamente <i>materialistas</i> (os que reduzem a realidade à matéria), não obstante o fato de seu alvo serem os <i>materialistas.</i></p><p style="text-align: justify;">As premissas sobre as quais toda a filosofia berkeleyana está assentada são simples. O que temos em nossa mente são <i>ideias</i>, algumas das quais são impressões dos sentidos, paixões ou operações do espírito, e outras são formadas pela memória ou por composições e recomposições da imaginação. As ideias geralmente vêm em conjunto e de modo constante e regular, de modo que atribuímos a esse feixe de sensações unificado um <i>nome. </i>Vejo a cor vermelha, sinto o cheiro adocicado, provo o gosto doce, toco e sinto a textura da superfície, e se todas essas sensações vêm sempre juntas, então o conjunto chamo de <i>maçã.</i></p><p style="text-align: justify;">Ora, tudo isso são <i>ideias </i>em nosso espírito e não a suposta maçã real e independente de mim. Em outros termos, só tenho acesso às <i>minhas percepções, </i>e, como dito acima, percepções sensoriais são <i>ideias. </i>Ninguém admite que ideias tenham existência fora da mente ou do espírito que as concebe ou sente. Sendo assim, seria absurdo sugerir que haja algo que subsista na realidade fora da minha percepção ou da percepção de algum outro espírito. <i>Existir, </i>propriamente dito, é ser objeto de uma consciência.</p><p style="text-align: justify;"><i>Esse est percipi. </i>Ser é ser percebido. Isto é, não há o menor sentido em pensar que haja algo que não seja percebido por alguma mente. Montanhas, rios, casas, animais, plantas existem não de forma independente de nossa percepção, mas somente e tão somente na medida em que são percebidos. O <i>realista </i>crê que permaneça na existência uma montanha mesmo que não seja percebida por ninguém. Berkeley argumenta que isso não faz sentido, pois o que seria uma montanha não percebida por ninguém? Um <i>nada.</i></p><p style="text-align: justify;">Só conhecemos o que percebemos, só percebemos nossas <i>ideias, </i>e nossas <i>ideias </i>só existem em nossa mente ou espírito. A conclusão é a de que só há na realidade <i>espíritos </i>e <i>ideias.</i> A existência do espírito ou da mente é indiscutível dado o fato inegável de que pensamos, percebemos, sentimos, e temos outros muitos estados mentais. A existência das ideias é igualmente evidente, afinal elas são o conteúdo sobre o qual a mente se debruça. Mas a matéria, os seres corporais fora de mim, não são também reais?</p><p style="text-align: justify;">Berkeley responde negativamente. Descartes defendera que havia dois tipos de qualidades, as <i>qualidades primárias</i> e as <i>qualidades secundárias. </i>As primeiras seriam extensão, comprimento, largura, altura, movimento, figura, etc. As secundárias seria cor, cheiro, sabor, valor, etc. As características primárias constituiriam as propriedades da <i>matéria </i>e, por isso, teriam existência substancial, real e independente de nossas percepções. Já as características secundárias teriam valor meramente <i>subjetivo, </i>residindo na mente do sujeito.</p><p style="text-align: justify;">O que Berkeley faz notar, com razão, é que as propriedades materiais como extensão, comprimento, largura, figura, etc, só aparecem para nós pelos sentidos e, portanto, são ideias tanto quanto as cores, sabores, etc. Esse é o argumento que coloca todo idealista em vantagem quando confrontado com o materialista. Em outros termos, se o materialista quer reduzir toda a realidade à matéria, qualquer que seja o seu conceito de matéria, ele tem que admitir que só tem acesso a ela por meio do espírito ou da consciência. </p><p style="text-align: justify;">O movimento de Berkeley é simples. Quando o leitor aceita a premissa de que só temos acesso às nossas percepções, todo o resto se segue naturalmente. Sendo as percepções ideias, então só conhecemos nossas ideias. Não havendo nada mais de evidente na realidade a não ser as ideias e as mentes que as concebem, a conclusão é a de que somente existe um tipo de substância no mundo: <i>espíritos. </i>Por sua vez,<i> </i>o espírito (ou a mente) não é material, não tem aquelas características extensivas da matéria.</p><p style="text-align: justify;">Realiza-se assim a <i>redução imaterialista da realidade. </i>Berkeley é geralmente encarado como um <i>empirista</i>, embora seu empirismo não seja <i>realista. </i>O princípio do conhecimento está nos sentidos, sem dúvida. Contudo, as percepções sensoriais não nos informam de uma suposta realidade exterior e independente de nós. As percepções sensoriais <i>são os únicos dados a que temos acesso. </i>Segue-se daí que o empirismo de Berkeley desemboca em um <i>idealismo</i>, ou em um <i>imaterialismo, </i>ou ainda, de um modo jocoso, em um <i>espiritismo.</i></p><p style="text-align: justify;">A metafísica imaterialista de Berkeley terá interessantes consequências para a sua concepção das Leis da Natureza e para a sua interpretação da ciência moderna, principalmente a física de Isaac Newton. Quando inspecionamos as nossas ideias, percebemos que controlamos algumas delas (nossos movimentos, alguns de nossos pensamentos, sentimentos, etc.), mas que estamos totalmente a mercê de outras tantas, algumas até desagradáveis. Percebemos também que essas ideias sobre as quais não exercemos nenhum controle são mais vivazes e têm um curso regular, ordenado e coerente.</p><p style="text-align: justify;">Essas cadeias regulares de ideias, tão sabiamente ordenadas, atestam a sabedoria e a bondade de seu Autor. Nada sabemos sobre elas <i>a priori, </i>temos que aprender a reconhecer seu sentido no curso da experiência. A elas damos o nome de <i>Leis da Natureza. </i>Tudo o que percebemos que não seja fruto de nosso arbítrio ou do arbítrio de outro espírito, e que apresente um curso uniforme no tempo é uma <i>Lei da Natureza. </i>O que faz o filósofo natural, como Isaac Newton em seu <i>Philosophiae Naturalis Principia Mathematica</i>, de 1687, é descrever acuradamente essas mesmas Leis.</p><p style="text-align: justify;">Ora, Newton acreditava na existência do mundo externo, e, mais ainda, na existência da matéria, tanto que na sua obra de 1704, <i>Opticks, </i>na <i>Query 31, </i>o sábio inglês especula uma teoria corpuscular da luz. Não parece que Berkeley esteja tratando das mesmas Leis que Newton. Em certo sentido, não está, e está aqui uma consequência da sua metafísica imaterialista. As <i>Leis da Natureza</i> são cadeias ordenadas, constantes e regulares de ideias que se apresentam ao nosso espírito de forma tão imperiosa que não as podemos controlar ou as modificar segundo nosso arbítrio.</p><p style="text-align: justify;">Sabemos, entretanto, que ideias não são entes independentes das mentes que as concebem. Sabemos também que ideias são inertes, ou seja, nenhuma ideia tem o poder de mudar ou causar uma outra ideia. O único agente causal real das ideias e nas ideias é o <i>espírito, </i>seja ele humano ou divino. É o espírito que cria, modifica, une, compõe, recompõe, separa as suas ideias. As <i>Leis da Natureza</i> são cadeias regulares de ideias impostas por Deus diretamente aos espíritos humanos. </p><p style="text-align: justify;">A conclusão óbvia é a de que não há nas ideias nenhum poder causal real, de modo que o que chamamos de <i>Natureza</i> não se refere a nenhuma dimensão da realidade que tenha em si mesma a sua regra de desenvolvimento, que contenha poderes causais, e que opere de modo independente. A <i>Natureza </i>não é mais do que um conjunto de sequências regulares e ordenadas de ideias que não possuem nenhuma realidade independente dos espíritos que as concebem mentalmente.</p><p style="text-align: justify;"><i>Natura sive Deus. </i>A <i>Natureza </i>é a sequência de ideias ordenadas por Deus. Note-se que, como as ideias são inertes, sem poder causal, nenhuma ideia implica naturalmente uma outra ideia. A consequência é que as <i>Leis da Natureza </i>são fruto única e exclusivamente da <i>vontade </i>de Deus. Nenhuma ideia gera ou causa outra ideia. Toda <i>uniformidade</i> que observamos na <i>Natureza </i>é meramente uma <i>hipótese</i>, pois nada, absolutamente nada, obriga Deus a ordenar as ideias sempre da mesma forma.</p><p style="text-align: justify;">O "fundamento" da <i>Natureza</i> é o <i>ocasionalismo </i>divino. Toda e qualquer situação do mundo natural é ocasião da ação direta de Deus. A pergunta é se Berkeley pode realmente ainda falar de <i>Natureza </i>depois de a reduzir à <i>vontade </i>absolutamente livre de Deus. Tradicionalmente, concebia-se que o mundo natural havia sido criado por Deus com uma série de ordenações ou de naturezas intrínsecas às coisas que, por sua vez, se desenvolviam e operavam a partir daí de modo relativamente independente de Deus. </p><p style="text-align: justify;">O cachorro foi criado com uma determinada estrutura essencial que não varia no tempo. Talvez o cachorro pudesse ter sido criado um tanto maior ou um tanto menor, pois Deus é absolutamente livre. Ocorre que, uma vez criado, ou seja, possuindo uma natureza própria, o cachorro não precisa de Deus para atuar e operar como um cachorro. A independência na operação é um dos traços distintivos do que usamos chamar de <i>natureza. </i>Berkeley elimina completamente a independência operativa dos entes naturais quando os identifica a ideias inertes nos espíritos.</p><p style="text-align: justify;">O bispo afirma ao final do <i>Treatise </i>que, para ele, a concepção da <i>Natureza </i>como algo distinto de Deus e das coisas percebidas pelos sentidos não passa de um som vazio e sem qualquer sentido inteligível. E acrescenta que<i> Natureza nessa acepção é uma vã quimera introduzida por aqueles pagãos que não possuíam noções justas da onipresença e da infinita perfeição de Deus. Porém, é mais inexplicável que isso seja acolhido entre Cristãos professando fé nas Sagradas Escrituras, as quais constantemente atribuem tais efeitos à imediata mão de Deus, do que entre filósofos pagãos que costumam imputar à Natureza.</i></p><p style="text-align: justify;">O filósofo natural, como Newton, pode identificar as <i>Leis Naturais, </i>usá-las para enquadrar outros fenômenos ainda não incluídos, e pode mesmo deduzir novas <i>Leis, </i>desde que recorde que se tratarão sempre de <i>hipóteses </i>sobre o comportamento costumeiro de Deus. No <i>Scholium Generale, </i>ao final do <i>Principia</i>, Isaac Newton confessa que não sabe apontar a causa da <i>força gravitacional, </i>e,<i> </i>prudente, prefere não <i>criar hipóteses. </i>Berkeley conhece a causa da <i>força gravitacional. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Au rigueur</i>, as forças nem mesmo existem como entidades. São ideias insubstanciais produzidas constantemente pela vontade sábia e bondosa do Espírito Supremo. O <i>imaterialismo </i>afirma que só há na realidade um tipo de substância ou entes, o <i>espírito</i> ou a mente, seguindo-se disso que a única causalidade real será o poder de concepção mental. Resta explicar como a ciência moderna alcançou tantos êxitos teóricos e práticos utilizando princípios exclusivamente mecânicos se a verdadeira causalidade não reside nas coisas corporais. </p><p style="text-align: justify;">No ano de 1721, Berkeley publicou o curto tratado <i>De Motu: Sive, de Motus Principio & Natura, et de Causa Communicationis Motuum. </i>Seu objetivo, como indica o título, seria determinar a natureza do movimento e explicar a causa de sua comunicação nos corpos. A crítica de Berkeley se dirige imediatamente aos fundamentos das explicações mecânicas dos fenômenos observáveis. O filósofo questiona o que significariam termos como <i>esforço, solicitação, força, gravidade</i> na física moderna. </p><p style="text-align: justify;">Quando sentimos o peso de um corpo em nosso corpo, sentimos nosso esforço para sustentá-lo. Quando vemos um corpo caindo na direção do solo, percebemos uma aceleração. <i>That's all. </i>Nada na experiência concreta nos permite inferir a existência, por exemplo, de uma <i>força gravitacional</i> intrínseca aos corpos. Não se trata de uma qualidade sensível e observável. É uma <i>qualidade oculta</i>, justamente aquilo contra o qual os filósofos naturais se ergueram. </p><p style="text-align: justify;">Isaac Newton defende explicitamente em seu método que o filósofo natural deveria utilizar somente os dados que pudessem ser deduzidos dos fenômenos, denominando tudo aquilo que não pudesse ser deduzido dos fenômenos como <i>hipóteses. </i>Por essa razão, ele se recusava a especular no <i>Principia </i>sobre a <i>causa</i> da gravidade. Mais à frente, Newton é cuidadoso em enfatizar que considera <i>"essas forças matematicamente, e não fisicamente, e que o leitor não deve imaginar que ele, por essas palavras, tome para si a tarefa de “definir o tipo, ou a maneira de qualquer ação, as causas ou a razão física."</i></p><p style="text-align: justify;">Segundo Berkeley, as <i>forças </i>não explicam nada, são meras <i>abstrações, </i>meros nomes, <i>flatus voces. </i>A razão disso é simples, e decorre dos princípios epistemológico-metafísicos de sua filosofia. Só temos acesso a <i>nossas </i>percepções e estados de consciência. Portanto, qualquer atribuição de existência independente fora desses<i> </i>dados é fruto de um uso abusivo de nossa razão. Não vemos nada a não ser uma sequência regular de ideias na nossa consciência quando presenciamos o fenômeno da queda dos corpos.</p><p style="text-align: justify;">Aristóteles explicava a <i>gravidade</i>, o caráter de ser <i>grave,</i> por uma tendência intrínseca que os corpos formados predominantemente de terra têm de se dirigir em linha reta para o solo, o seu <i>lugar natural. </i>Os modernos chamaram essa tendência natural de <i>qualidade oculta </i>(termo que tem ligações com a magia medieval), e a rejeitaram como fantasia. No entanto, Berkeley aponta, o que são as <i>forças </i>se não <i>qualidades ocultas </i>intrínsecas aos corpos? Seis por meia dúzia.</p><p style="text-align: justify;">No parágrafo 17 do <i>De Motu, </i>o bispo explica como devem ser interpretados esses conceitos científicos:</p><p style="text-align: justify;"><i>"Força, gravidade, atração, e termos desse tipo são úteis para raciocínios e cálculos sobre corpos e corpos em movimento, não para compreender a simples natureza do movimento enquanto tal ou para indicar tantas qualidades. Como no caso da atração, que foi claramente introduzida por Newton não como uma qualidade física, verdadeira, mas somente como uma hipótese matemática. De fato, Leibniz, quando distingue o esforço elementar ou solicitação do ímpeto, admite que tais entidades não são realmente encontradas na natureza, mas têm que ser formadas por abstração."</i></p><p style="text-align: justify;">Em termos contemporâneos, Berkeley defende uma interpretação <i>antirrealista </i>da física moderna. As <i>forças </i>não são reais, são meras <i>hipóteses matemáticas</i>, ficções úteis aos cálculos e raciocínios e não afirmações ontológicas sobre o que há no mundo. O que importa ao filósofo natural não é saber se a <i>gravidade </i>existe<i> </i>como um propriedade dos corpos, mas tão somente identificar o comportamento constante e regular dos corpos, as leis mais gerais do movimento, e utilizá-las para trazer cada vez mais fenômenos à regra.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Na filosofia mecânica, a verdade e o uso dos teoremas sobre a atração mútua dos corpos se mantêm firmes, fundados exclusivamente no movimento dos corpos, quer se suponha que esse movimento seja causado pela ação dos corpos atraindo uns aos outros, quer pela ação de algum agente diferente dos corpos, impelindo-os e controlando-os. De modo similar, as tradicionais formulações de regras e leis do movimento, junto com os teoremas daí deduzidos, permanecem inabaladas, desde que os efeitos sensíveis e os raciocínios fundados sobre eles sejam garantidos, não importa se supomos que a ação em si ou a força que causa esses efeitos estejam no corpo ou em um agente incorpóreo."</i></p><p style="text-align: justify;">A passagem acima do <i>De Motu, </i>resume perfeitamente a concepção antirrealista em geral. Não é necessário pensar que o mundo seja um mecanismo para empregar explicações mecânicas nos fenômenos do movimento dos corpos. Basta que os princípios mecânicos sejam encarados como <i>hipóteses matemáticas</i>, ou <i>conceitos operativos, </i>das quais se serve o físico na qualidade de auxiliares para o cálculo e para o raciocínio. Tudo se passa <i>como se </i>o mundo fosse mecânico.</p><p style="text-align: justify;">O conceito de <i>explicação</i> também sofre mudanças, pois não é mais dever do filósofo natural, do físico moderno, determinar as reais <i>causas agentes </i>dos fenômenos. A <i>explicação</i> mecânica se limita a, identificadas pela experiência as leis do movimento, solucionar com elas fenômenos particulares. Ou seja, demonstrar que o comportamento de um determinado fenômeno pode ser deduzido das leis gerais do movimento obtidas pela experiência. </p><p style="text-align: justify;"><i>"39. E tal qual os geômetras que, por conta de sua arte, fazem uso de muitos artifícios os quais eles mesmos não podem descrever e nem encontrar na natureza das coisas, o mecânico também faz uso de certos termos gerais e abstratos, imaginando nos corpos força, ação, atração, solicitação, etc, os quais são de primeira utilidade para teorias e formulações, assim como para computações sobre movimento, mesmo se na verdade das coisas, e nos corpos realmente existentes, seriam buscados em vão, tal como as ficções dos geômetras feitas por abstração matemática."</i></p><p style="text-align: justify;">Conceitos como <i>espaço absoluto </i>e <i>tempo absoluto</i> não podem possuir um significado realista. Um espaço sem nenhum corpo é um <i>nada. </i>Tempo sem as coisas que mudam é um <i>nada. </i>Nenhum movimento absoluto é perceptível pelos sentidos, então não há utilidade alguma em manter um referencial que pode ser substituído, <i>for all practical purposes,</i> pelo céu das estrelas fixas. Tomando como referência somente o movimento relativo, que é observável, todos os cálculos se mantém tão válidos quanto antes.</p><p style="text-align: justify;">A primeira regra metodológica que o filósofo natural deve seguir é distinguir a <i>hipótese matemática</i> da natureza das coisas. A segunda é cuidar-se contra as abstrações. A terceira é considerar sempre o movimento como um fenômeno sensível, e, portanto, restringir-se ao movimento relativo, que é a quarta regra. O ponto central é que a aceitação de uma <i>hipótese matemática</i> não implica em compromissos ontológicos realistas. Utilizar o conceito <i>força </i>não significa afirmar a existência real de alguma entidade ou propriedade entre as coisas que há no mundo. A <i>hipótese matemática </i>é<i> </i>um <i>modelo </i>simplificado da realidade, e não a própria realidade. </p><p style="text-align: justify;">Embora Berkeley não use a expressão clássica, a sua tese está em consonância com a tradição astronômica grega segundo a qual os modelos matemáticos das órbitas inobserváveis dos planetas tinham somente que <i>salvar os fenômenos, </i><span style="text-align: left;">σῴζειν τὰ φαινόμενα. Isto é, a função do modelo era só e tão somente ser <i>adequado empiricamente, </i>estar de acordo com o que era observável e acurado nas suas predições. </span><span style="text-align: left;">Não havia nenhum constrangimento no fato de dois modelos matemático-astronômicos incompatíveis um com o outro serem ambos adequados empiricamente. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">É exatamente o que Berkeley defende ao afirmar que <i>"e</i></span><i style="text-align: left;">mbora Newton e Torricelli pareçam estar em desacordo um com o outro, eles defendem visões consistentes, e a coisa é suficientemente explicada por ambos. Pois todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, exatamente como eram as forças atrativas nos planetas e no Sol. Entidades matemáticas, porém, não possuem uma essência estável na natureza das coisas, e dependem da noção do definidor. Consequentemente, a mesma coisa pode ser explicada de diferentes formas."</i></p><p style="text-align: justify;">A física matemática só versa sobre aquilo que é quantitativo ou pode ser descrito em termos quantitativos. Ela não tem condições de definir uma ontologia, ou seja, é incapaz de distinguir <i>qualitativamente</i> um ente de um outro. Não há diferença quantitativa que distinga essencialmente um ovo de um prego. As <i>forças, </i>a <i>atração </i>e a <i>repulsão </i>não são coisas na realidade, mas somente quantidades mensuráveis de um <i>je ne sais quoi </i>que pode ser diferentemente definido. É perfeitamente possível medir e quantificar aquilo cuja natureza desconhecemos.</p><p style="text-align: justify;">Resolvido o problema de como interpretar os princípios mecânicos utilizados na filosofia natural, resta saber qual a natureza do movimento e da sua comunicação nos corpos. A solução está dada desde o <i>Treatise. </i>Só há uma substância na realidade, o <i>espírito </i>ou a <i>mente, </i>sendo<i> </i>todo<i> </i>o resto ideias inertes produzidas por Deus ou pelos espíritos finitos. A filosofia natural encontra seu limite epistemológico naquilo que é observável, perceptível pelo espírito. Logo, seu âmbito é o das ideias ordenadas e regulares produzidas por Deus.</p><p style="text-align: justify;">A fonte do conhecimento das causas eficientes reais reside em uma ciência superior, a <i>filosofia primeira</i> ou <i>metafísica</i>, cujo ofício é lidar com os entes incorpóreos, com as causas, com a verdade e com a existência das coisas. A metafísica imaterialista de Berkeley elimina a matéria enquanto um ente substancial e independente de nossas percepções, o que, consequentemente, elimina na raiz o materialismo e o mecanicismo. A filosofia natural não pode então ser o estudo da <i>Natureza</i>, considerada como um poder relativa ou completamente independente de Deus. </p><p style="text-align: justify;">O mecanicismo não pode ser nada além de uma <i>hipótese matemática </i>útil para os cálculos e os raciocínios, jamais uma ontologia do mundo sensível. No fundo, o filósofo natural é um estudioso do comportamento habitual do Autor da Natureza. O materialista, o mecanicista, o ateu e o irreligioso são refutados de uma só vez pela eliminação da substancialidade da matéria.</p><p style="text-align: justify;">Cabe observar que a teoria antirrealista acerca da ciência moderna que Berkeley, embora se siga logicamente de sua metafísica imaterialista, não depende em si mesma dessa metafísica. Basta notar a sua origem na astronomia grega e a sua defesa historicamente por autores muitos diferentes entre si em termos de (ou rejeição da) metafísica. Apenas para efeito de ilustração, compare-se a posição de Berkeley sobre as <i>hipóteses matemáticas </i>com as teses antirrealistas de Pierre Duhem e de Bas van Frassen.</p><p style="text-align: justify;">Na sua obra <i>La Théorie Physique, </i>o físico, matemático, historiador e filósofo francês<i> </i>Pierre Duhem<i> </i>defende<i> </i>que<i> </i>as teorias físicas são classificações naturais do comportamento observável das magnitudes físicas sem qualquer pretensão de determinar as suas reais naturezas. A física se limita a descrever matematicamente o que se observa, estando livre das disputas da metafísica que, essa sim, almeja determinar a natureza das coisas. A pedra de toque da aceitação de uma teoria física é a sua capacidade de <i>salvar os fenômenos</i>, a sua<i> adequação empírica.</i></p><p style="text-align: justify;">Em seu livro <i>The Scientific Image, </i>o filósofo da ciência holandês Bas Van Fraassen define o seu <i>empiricismo construtivo </i>como a tese segundo a qual o <i>"objetivo da ciência é fornecer teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como crença somente que ela é empiricamente adequada". </i>Fraassen enfatiza que, embora ela deva ser interpretada literalmente, não há nenhum compromisso de acreditar <i>ipso facto </i>nas entidades postuladas pela teoria. E a adequação empírica significa apenas que o que a teoria diz sobre as coisas e os eventos observáveis é verdadeiro, isto é, <i>salva os fenômenos.</i></p><p style="text-align: justify;">Tanto Pierre Duhem quanto Bas van Fraasen não esposam a metafísica imaterialista de Berkeley. Na realidade, o antirrealismo científico em geral não implica quaisquer comprometimentos metafísicos. No caso de Duhem, isso é ressaltado pelo próprio autor como uma das vantagens de sua teoria. A física e a metafísica estariam tão bem distintas, separadas e independentes que os resultados de uma dessas disciplinas nunca poderiam ser usados para refutar os resultados da outra.</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Para uma versão mais detalhada: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/1129/896">Vista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)</a></p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/George%20Berkeley">Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Pierre%20Duhem">Νεκρομαντεῖον: Pierre Duhem (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-21673320856742480802023-08-11T16:02:00.003-03:002023-08-11T16:02:36.398-03:00Meister Eckhart, neoplatonismo e a beatitude no Uno divino<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiB1o7n0UIrldujjIPB6T5SptqR5BKjuMZ8uSowcQOBiDG6Y7CdZZp3TeqGlYq7mCn_SjcPMoHfApsS5tNZyAVSnoSXCM8Px2eSuCoR7VAYvrkOiVu5ZTgq8N9s4ERFrNfUsURavf7zviDOhOmBfonAREE59bOgfXpV5ftlI4EvRKXY7BZXr8I_IfwfqgVa/s404/R%20(1).jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="396" data-original-width="404" height="314" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiB1o7n0UIrldujjIPB6T5SptqR5BKjuMZ8uSowcQOBiDG6Y7CdZZp3TeqGlYq7mCn_SjcPMoHfApsS5tNZyAVSnoSXCM8Px2eSuCoR7VAYvrkOiVu5ZTgq8N9s4ERFrNfUsURavf7zviDOhOmBfonAREE59bOgfXpV5ftlI4EvRKXY7BZXr8I_IfwfqgVa/w320-h314/R%20(1).jpeg" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"Toda mediação é estrangeira a Deus."</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">MEISTER ECKHART, <i>Do Homem Nobre</i></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">O teólogo, filósofo e místico renano medieval (1260/1328) Meister Eckhart, em seu curto tratado sobre o <i>homem nobre, </i>trata do tema da verdadeira beatitude humana. Fazendo uso de uma passagem do <i>Evangelho</i> onde Cristo diz que "<i>um homem nobre partiu para um país distante a fim de ali ganhar um reino e retornar em seguida" </i>(Lc 19,12), Eckhart desenvolve sua concepção do destino último do ser humano no seio de Deus. </div><p style="text-align: justify;">Há no homem duas naturezas, a <i>exterior</i> e a <i>interior</i>. A natureza exterior é o <i>velho</i> <i>homem</i> sobre o qual falam as Escrituras, o homem carnal, voltado às coisas deste mundo, escravo, terrestre, inimigo. A natureza interior é o <i>homem novo </i>das Escrituras, o jovem, o amigo, o celestial, o <i>homem nobre. </i>Todos têm ao seu lado um anjo que inspira o desejo pelas coisas belas, eternas e virtuosas, e um demônio que as tenta com as coisas baixas, fugidias, passageiras e viciosas. </p><p style="text-align: justify;">Tal como a serpente, por intermédio de Eva, conduz Adão à <i>Queda, </i>o demônio, por intermédio do <i>homem exterior</i>, espezinha o <i>homem interior</i>. É justamente no <i>homem interior, </i>Adão, que se encontra depositada a imagem e a semelhança de Deus, a semente da natureza divina, o Filho de Deus. Ali se encontra a árvore boa que sempre dá bons frutos, ainda que seja obscurecida pela árvore má do <i>homem exterior. </i>Mas a semente da natureza divina, o <i>homem interior</i>, foi plantada por Deus e, portanto, não pode jamais ser destruída, por mais enterrada e escondida que esteja.</p><p style="text-align: justify;">Eckhart faz alusão obviamente à doutrina bíblica do <i>Gênesis</i> segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Porém, a tradição neoplatônica, em sua visão hierárquica da realidade, afirma também que a alma tem uma "parte voltada para cima", para a realidade superior. Nas <i>Enéadas </i>de Plotino, por exemplo, a "descida" da alma não é a habitação da alma no corpo material, mas sim a elevação do corpo ao inteligível efetuada pela alma que permanece tal como era antes. </p><p style="text-align: justify;">Isto é, a alma não está <i>no corpo</i>, ela permanece em sua própria natureza imaterial (sem lugar) enquanto, ao mesmo tempo, o corpo <i>participa</i>, tem algo, da vida da alma. Poderíamos dizer que o corpo é que se torna real e vivo pela <i>participação </i>na<i> </i>(ou <i>imitação </i>da) alma, que, por seu turno, permanece em si mesma tal como era "antes" (não se trata de relação temporal) voltada às realidades superiores à ela mesma. (<i>Enéadas, </i>VI, 4. 16, 10-15)</p><p style="text-align: justify;">Na linguagem de Eckhart, há no ser humano o <i>homem interior </i>e o <i>homem exterior, </i>este voltado às coisas deste mundo fugidio e aquele voltado às coisas celestes e eternas. Por mais que o <i>homem exterior </i>obscureça, esconda, enterre o <i>homem interior</i>, jamais conseguirá destruir sua imagem e semelhança com Deus. Isto é, há uma dimensão fundamental no ser humano que é uma <i>semente da natureza divina</i> que não pode ser maculada ou destruída, que é como a árvore que sempre dá bons frutos, e que brilha mesmo que esteja escondida ou enterrada.</p><p style="text-align: justify;">Note-se o quanto o tema evangélico do <i>tesouro escondido</i> está em consonância com o que defende o mestre Eckhart: <i>“O Reino dos Céus é como um tesouro escondido num campo. Alguém o encontra, deixa-o lá bem escondido e, cheio de alegria, vai vender todos os seus bens e compra aquele campo" </i>(Mt 13, 44-52). Simbolicamente, o campo é o próprio homem que descobre em si mesmo essa dimensão fundamental escondida sob a terra de suas próprias ações mundanas e voltadas às coisas passageiras e viciosas. </p><p style="text-align: justify;">Ele deixa o tesouro lá, bem escondido, ou seja, não o pode resgatar de imediato porque ainda não pertence a ele, pertence ao <i>homem exterior. </i>O que ele faz é vender seus bens e comprar o campo para desencavar o tesouro e dele tomar posse. Vender seus bens é abandonar o <i>homem exterior </i>com seus vícios e desejos pelas coisas cambiantes e passageiras. Mais profundamente, é retirar os obstáculos, desfazer-se daquilo que está escondendo o tesouro, abrir passagem, limpar, tirar o acessório, desnudar-se, abandonar as adições feitas à sua real natureza. Ser a parteira de si mesmo.</p><p style="text-align: justify;">Ora, citando Agostinho, Eckhart prossegue seu tratado afirmando que no primeiro grau do <i>homem interior</i> acontece quando se busca imitar os exemplos dos homens bons e santos. O segundo grau é alcançado quando não mais são seguidos os bons e os santos e sim os conselhos e a Sabedoria de Deus. No terceiro, a comunhão com o Senhor é tal que nem sequer a possibilidade de fazer o mal sem punição é mais tentadora. Só Deus interessa e tudo o que d'Ele afaste aborrece e desagrada.</p><p style="text-align: justify;">Quando alcança o quarto grau, o homem está disposto a sofrer quaisquer adversidades, provas, sofrimentos e contrariedades de bom grado. No quinto grau, vive somente em si mesmo, absolutamente mergulhado na paz da Sabedoria de Deus. O grau mais avançado, o sexto, para além do qual não há nenhum outro, é o da identificação com o Eterno, no qual o homem é <i>"despojado dele mesmo e transformado pela eternidade de Deus, quando alcança o completo esquecimento da vida temporal com tudo isso que ela tem de </i><span style="text-align: left;"><i>perecível, dirigido e transfigurado em uma imagem divina, se tornou uma criança de Deus."</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">O <i>homem nobre, </i>o <i>homem interior, </i>a <i>semente da natureza divina</i> plantada nos seres humanos, diz Eckhart citando Orígenes, é comparável a um fonte d'água sobre a qual foi jogada terra até que ficasse encoberta. Tão logo se retire essa cobertura, ela voltará a ser usada como fonte. A comparação seguinte é ainda mais significativa. Ao contrário da tradição que afirma que o artista impõe à matéria a ideia da estátua que tem em sua mente, Eckhart diz que o artista remove as lascas que cobriam e escondiam a estátua. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Essa maravilhosa imagem contraria frontalmente a concepção aristotélico-tomista da produção (</span><span style="text-align: left;">ποίησις)</span><span style="text-align: left;"> dos artefatos. O produtor ou artista exerce sua arte (</span><span style="text-align: left;">τέχνη) no curso mesmo do processo em que imprime uma Forma que estava em seu intelecto em uma matéria preexistente. Nesse caso, a arte é uma ação causal transitiva de sujeição da matéria a um padrão abstrato. Eckhart transforma o artista em uma espécie de parteiro socrático, eliminando com seus golpes, assim como Sócrates com suas perguntas, os obstáculos que encobrem e escondem a estátua, ou o conhecimento, que já está lá esperando somente para ser <i>des-coberto.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">O tema é platônico, evidentemente. Agostinho, no seu livro <i>A Trindade, </i>tratando do preceito délfico <i>conhece-te a ti mesmo</i>, exorta o leitor que deseja conhecer a sua própria alma (<i>mens, </i>no Latim) a abandonar os dados sensíveis e as imagens dos dados sensíveis, isto é, abandonar aquilo que não é a alma, e que a ela foi <i>acrescentado</i>: </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">"E esta é a sua impureza, porque, ao tentar pensar em si sozinha, julga ser aquilo sem o qual não se pode pensar a si mesma. Quando, pois, lhe é ordenado que se conheça a si mesma, não se deve procurar como se fosse separada de si, mas deve separar de si aquilo que a si acrescentou. </span><span style="text-align: left;">(A Trindade, X, 8-11)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Não é necessário sair de si mesmo, buscar algo exterior, mesmo que sejam as boas obras. O que é preciso é retirar os obstáculos, não para enxergar corretamente a realidade externa, mas para ser aquilo que sempre fomos. O <i>homem nobre </i>de quem Cristo fala é o homem que se desfez das imagens e de si mesmo, que se fez estrangeiro a todas as coisas, ensina Eckhart. A diferença repousa nas <i>adições, </i>afirmava Plotino nas <i>Enéadas. </i>O que resta quando todas as adições, as diferenças, são removidas? O Uno.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Eckhart enuncia então o centro de sua doutrina da beatitude asseverando que <i>toda mediação é estrangeira a Deus. </i>Tanto<i> </i>esta primeira afirmação quanto aquelas que serão apresentadas em seguida estão em consonância com a tradição neoplatônica do Uno. A questão é saber de que forma a henologia neoplatônica pode ser combinada com o trinitarismo cristão. Segundo o dogma, Deus é uma Trindade consubstancial formada por três hipóstases, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.</span></p><p style="text-align: justify;">As três Pessoas divinas possuem igualmente uma e a mesma natureza divina (ὁμοούσιος), sem que as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo firam a absoluta homogeneidade e unicidade de Deus. O neoplatonismo vê no Uno (Hen, <i>Τὸ Ἕν</i>) a realidade última e fonte de todas as coisas. Se <i>toda mediação é estrangeira a Deus, </i>a Trindade, ela mesma, não se constitui em uma mediação a ser ultrapassada? A resposta de Eckhart é neoplatônica e cristã a um só tempo.</p><p style="text-align: justify;">O <i>homem nobre </i>encontra a beatitude no Um, a natureza divina compartilhada pelas três Pessoas. <i>Nenhuma distinção existe na natureza de Deus e nem nas pessoas divinas segundo a unidade de sua natureza. A natureza divina é Um, e cada pessoa é igualmente Um, esse mesmo Um que é sua natureza</i>, escreve Eckhart. Levando até as últimas consequências a consubstancialidade da Trindade, isto é, a natureza divina igualmente presente nas três Pessoas, Eckhart pode encontrar o Uno que é o <i>fundo </i>comum.</p><p style="text-align: justify;">Em certo sentido, o místico renano quer penetrar na absoluta unicidade divina "anterior" às Pessoas. Ele preserva o dogma trinitário intacto, pois ninguém na Cristandade negará que Deus é uma Trindade <i>consubstancial</i>, ou seja, com a mesma substância, ou a mesma essência, ou a mesma natureza. É precisamente nesse divino <i>consubstancial</i>, "anterior" a tudo, o Um absoluto, que reside a beatitude. Formalmente, estão preservadas as Pessoas divinas, assim como a unicidade <i>consubstancial </i>que impede a Trindade de se tornar um triteísmo. </p><p style="text-align: justify;">Eckhart prossegue dizendo que "<i>a distinção entre ser e essência é reabsorvida no Um e não faz mais do que Um. É somente quando o Um cessa de estar nele mesmo que ele recebe, possui e fornece uma distinção. Eis a razão pela qual é no Um que se encontra Deus, e também a razão pela qual aquele que quer encontrar Deus deve ele mesmo se tornar um."</i></p><p style="text-align: justify;">No interior do Um, a distinção entre ser e essência se desfaz. <i>Grosso modo, </i>o ente, qualquer que ele seja, tem seu <i>ser, </i>sua <i>existência</i>, idêntico a qualquer outro existente, mas se distingue de todos os outros por sua <i>essência, </i>aquilo<i> que ele é, </i>seu <i>modo de ser. </i>A distinção primordial da realidade se dá entre o <i>ser</i> como o caráter mais universal de tudo o que existe, existiu e pode existir, e a <i>essência</i>, aquilo que determina à qual classe, tipo ou modo de ser o ente pertence. Por exemplo, o gato e o livro <i>existem</i> igualmente, porém diferem no <i>tipo</i> de ser que cada um é.</p><p style="text-align: justify;">Eckhart, quando fala do Um, está se referindo à realidade anterior à essa distinção primordial entre <i>ser </i>e <i>essência, </i>portanto<i>,</i> anterior a qualquer distinção. Toda multiplicidade se dá a partir da distinção, e esta é fundada na unidade, se resolve em uma unidade subjacente. Em termos neoplatônicos, Eckhart está afirmando que Deus se encontra lá no Uno, onde a Díada é ultrapassada, e que, consequentemente, quem quer encontrar Deus deve se despojar de suas próprias características distintivas.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Antes da Díada está o Uno. A Díada é a segunda e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe a ela definição, enquanto ele mesmo é indefinido", </i>ensina Plotino (<i>Enéadas, </i>V, 1, 5). Em sua filosofia, Plotino identifica a Díada ao <i>Ser </i>ou <i>Intelecto </i>(νοῦς), onde as Ideias eternas existem justamente porque cada uma recebeu sua definição. Ali se encontra o início do mundo da <i>Identidade </i>e da <i>Diferença, </i>no qual ser X, implica necessariamente em não ser Y. </p><p style="text-align: justify;">Eckhart declara sem peias que <i>"na distinção não se encontra o Um, nem Ser, nem Deus, nem repouso, nem beatitude, nem satisfação. Em verdade, se tu fosses verdadeiramente um, tu permanecerias igualmente um na distinção, e a distinção se tornaria para ti o Um, não podendo mais em nada te fazer algum obstáculo."</i> A beatitude só se realiza no Um. Viver no Um é possível mesmo no mundo da distinção, tal qual se mostrou acima no sexto grau do <i>homem interior.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>"O Reino de Deus está dentro de vós", </i>disse o Senhor. A vida beatífica começa aqui para aquele que vive no mundo da distinção interiormente mergulhado no Um. O que Eckhart está ensinando pode ser traduzido em termos metafísicos nas afirmações de que tudo aquilo que procede do Princípio necessariamente possui uma existência derivativa, e, que, portanto, nunca pode se constituir em obstáculo comparável ao Princípio. Se toda multiplicidade se reduz à uma unidade subjacente, essa unidade que serve de fundamento não pode ela mesma ser comparável com a multiplicidade a que ela dá origem.</p><p style="text-align: justify;">Há uma relação de <i>anterioridade ontológica</i>, não temporal, entre o Um e a distinção. O Um fundamenta e dá origem à distinção não como se ela fosse algo completamente diferente dele mesmo. Não há o <i>Um</i> <i>e a distinção, </i>como se estivessem ambos no mesmo nível de realidade, só que em lados opostos. Na realidade,<i> há o Um, </i>e <i>a distinção é o mesmo Um manifestado como limitação, determinação, delimitação. </i>A distinção é, portanto, derivativa, não tem realidade em si mesma. </p><p style="text-align: justify;">Por essa razão, Ulrich de Strasburg, outro renano como Eckhart, chamava os seres limitados de <i>falsos seres</i>. Não porque eles não existam de nenhuma maneira, mas porque eles existem de uma forma muito tênue, derivativa e dependente de Deus, o único que realmente pode ser dito existente. Vê-se que a distinção e a multiplicidade não podem ser postas no mesmo nível do Um como se fossem opostos igualmente existentes.</p><p style="text-align: justify;">Ora, sendo assim, a beatitude começa aqui e agora para aquele que enxerga tudo no Um. O <i>homem nobre, </i>segundo a descrição de Eckhart,<i> </i>é <i>um com o Um</i>, de tal modo que toda distinção que o cerca, justamente por sua natureza derivativa, não se constitui em obstáculo à beatitude já na vida terrestre. É assim que o homem deveria ser um, afirma Eckhart, pois Cristo disse que <i>"o homem partiu". </i>O que significa essa partida?</p><p style="text-align: justify;">Eckhart sugere primeiramente que o significado de <i>homem </i>seja o do ser que se inclina e se submete inteiramente a Deus, com tudo o que ele é e possui, que eleva seus olhos a Deus e a mais nada. Essa é a perfeita humildade. <i>Homem </i>também significa algo que está acima da natureza, acima do tempo, e de tudo que está ao sabor do tempo. O mesmo vale para o espaço e a corporeidade. De certa maneira, o <i>homem </i>nada tem de semelhante com qualquer outra coisa, encontrando-se nele somente a vida, o ser, a verdade e a bondade puras. Quem é assim feito, ele somente é o <i>homem nobre.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>"O homem partiu</i>" porque é da natureza humana verdadeira partir, deixar de ser o que é para habitar na indistinção do Um. O <i>homem nobre </i>é aquele cuja humildade é tão perfeita que ele se despoja inclusive de seu próprio ser, de sua própria distinção, para ser <i>um com o Um. </i>Imerso no Um, o homem nada tem de semelhante a qualquer outra coisa, está acima do tempo, da corporeidade, do espaço e da natureza. Toda distinção e toda multiplicidade foram suspensas. Para aquele que é <i>um com o Um, só há o Um.</i></p><p style="text-align: justify;">O mestre renano assevera que aqueles que conhecem Deus sem véus, conhecem também todas as criaturas. Quando alguém conhece as criaturas elas mesmas, com todas as suas distinções, denomina-se isso de <i>conhecimento da noite. </i>Por outro lado, quando alguém conhece as criaturas em Deus, denomina-se <i>conhecimento da manhã, </i>pois as criaturas são vistas sem a menor distinção, desprovidas de toda imagem, libertas de qualquer semelhança com qualquer coisa, imersas no Um que é Deus. </p><p style="text-align: justify;">O <i>homem nobre </i>é esse que vê tudo em Deus. Essa formulação ainda é inexata e algo enganadora. O que Eckhart quer expressar é absolutamente indizível. Nossa linguagem não foi feita para essas alturas divinas. O <i>homem nobre </i>é aquele que fez a renúncia de seu próprio ser, o <i>falso ser </i>das criaturas, e somente reconhece o Um como realidade. A profundidade metafísica do que Eckhart está defendendo passará desapercebida a um olhar superficial.</p><p style="text-align: justify;">Não se trata aqui de uma concepção costumeira de beatitude, de uma <i>comunhão </i>paradisíaca<i> </i>com<i> </i>Deus<i> </i>aos moldes da piedade comum. Eckhart está dizendo que para o <i>homem nobre </i>a beatitude consiste, se posso formular desse modo,<i> </i>no <i>retorno ao momento imediatamente anterior à sua própria criação. </i>É óbvio que aqui as referências temporais não têm sentido literal. A ideia é que a beatitude verdadeira consiste naquela realidade pré-distinção, antes de cada coisa se tornar o que é, em que estavam todos os seres em Deus indistintamente como possíveis. </p><p style="text-align: justify;">Isso não significa que Eckhart esteja negando ou lamentando o fato da Criação. A distinção não impede o <i>homem nobre </i>de estar imerso no Um. O que o mestre renano está dizendo é que a verdadeira beatitude passa pelo abandono do próprio ser, pela humilde negação de sua própria substancialidade, e, consequentemente, pelo reconhecimento de que só há realmente um existente, Deus, o Um, para além de todas as distinções. Sob esse ângulo, é possível compreender melhor o que Eckhart diz em seguida sobre o <i>homem nobre. </i></p><p style="text-align: justify;">Vários teólogos da época do mestre renano afirmavam que a beatitude consistia no conhecimento de que se conhece Deus. Eles argumentavam que não faria nenhuma diferença gozar do conhecimento de Deus sem a consciência de que se está conhecendo Deus. Contra eles, Eckhart opunha a sua concepção de beatitude na qual a alma contempla a Deus sem véus, e lá, <i>"no próprio fundo de Deus, ela não sabe nada do saber e nem nada do amor, nem absolutamente nada de nada. Ela repousa inteira e exclusivamente no ser de Deus, e não conhece nada além do ser e de Deus."</i></p><p style="text-align: justify;">Compare-se a concepção eckartiana com a seguinte passagem das <i>Enéadas, </i>VI, 9.7: <i>"(...) a alma deve ignorar tudo, especialmente as coisas da percepção sensível, mas também em formas, e então, na consideração do Uno, chegar a ignorar a si mesma. E quando a alma vier a estar com o Uno, e, de certo modo, estiver comungada com ele em um grau suficiente, então ela deverá contar aos outros sobre esse contato íntimo, se for capaz." </i></p><p style="text-align: justify;">A alma entra em si mesma, saindo das percepções sensíveis e denão tudo o que possui forma, portanto distinção, até alcançar o Uno, <i>ignorando a si mesma. </i>Comunhão com o Uno, por assim dizer, implica o esquecimento de si mesmo, dado que no Uno nenhuma distinção permanece. Entretanto, essa comunhão se acontece já nessa vida dentro da distinção, pois a alma deve dar testemunho aos outros do contato íntimíssimo com o Uno. Se for capaz disso, uma vez que nossa linguagem só comporta o que é distinto.</p><p style="text-align: justify;">A rejeição de Eckhart da beatitude como conhecimento do conhecimento de Deus, ou o saber que se está conhecendo Deus, também encontra paralelos na tradição neoplatônica antiga. Note-se que o conhecimento implica, sutilmente no caso dos intelectos não ligados a um corpo, uma certa dualidade entre o <i>inteligente </i>e o <i>inteligido. </i>Mesmo que o intelecto se torne aquilo que ele intelige, ainda assim o <i>intelecto </i>não é absolutamente idêntico ao <i>inteligido. </i></p><p style="text-align: justify;">Em uma linguagem mais simples, e não totalmente correta, a questão é que o pensamento implica sempre alguma distinção entre aquele que pensa e aquilo que é pensado. Da mesma forma, o conhecimento é uma relação, como já dizia Aristóteles nas <i>Categorias. </i>O conhecimento é sempre <i>conhecimento de</i> algo. Neoplatônicos como Plotino usaram esse caráter dual da intelecção para negar ao Deus de Aristóteles, que <i>"pensa a si mesmo",</i> o posto de primeiro princípio.</p><p style="text-align: justify;"><i>"Aquilo que pensa é duplo, mesmo se pensa a si mesmo, e é deficiente pelo fato de que tem seu bem em seu pensamento e não em sua existência."</i> (<i>Enéadas, </i>III, 9,7) Em outra passagem, é dito que <i>"Aristóteles disse depois que o primeiro princípio era 'separado' e 'inteligível', mas quando afirmou que ele 'pensa a si mesmo', ele não o fez mais o primeiro princípio." </i>(<i>Enéadas, </i>V, 1,9). Por conseguinte, e Plotino o declara explicitamente, o primeiro princípio, o Uno, não intelige, não pensa. </p><p style="text-align: justify;">Entende-se agora facilmente por qual motivo Eckhart defende que a beatitude não é conhecimento. Se fosse conhecimento, a alma permaneceria no âmbito da distinção. Compreende-se igualmente a razão pela qual o mestre renano afirma que no Um a alma não sabe de nada sobre nada. Saber algo é "descer" ao nível da distinção, é sair do Um tal como Deus é na Sua absoluta indistinção. Nada que implique ou sugira alguma mínima distância, como o amor e o conhecimento, pode existir no Um. </p><p style="text-align: justify;">Saber que conhecemos Deus é parte da beatitude, mas não seu cerne. Muito diferente é o calor e o fogo que o calor produz. <i>"Um homem nobre partiu para um lugar distante para ganhar um reino e depois dali retornar". </i>O homem deve entrar em si mesmo, ser um com o Um, contemplar somente o Um, e depois "retornar", isto é, saber e conhecer que ele conhece algo de Deus. Nessa bela interpretação da passagem evangélica, Eckhart não nega o conhecimento, mas o encaixa na hierarquia ontológica da realidade. </p><p style="text-align: justify;">Saber que conhecemos algo de Deus corresponde à <i>descida</i> ontológica do Um à distinção, do Uno à Díada. Porém, conhecer Deus (<i>ser um com o Um</i>) é justamente não saber nada de nada, nem de si mesmo, pois no Um não há distinção. Na linguagem de um místico neoplatônico posterior a Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, temos de Deus somente a <i>Douta Ignorância</i>, pois Ele é a <i>Possibilidade Absoluta </i>na qual estão contidas todas as coisas na condição de <i>coincidentia oppositorum. </i></p><p style="text-align: justify;">Conhecer Deus consiste em nada saber. Se o homem soubesse <i>algo</i> ao conhecer Deus, ele não conheceria Deus, e sim outra <i>coisa</i> qualquer. Conhecer Deus implica não ser mais aquilo que se é, implica perder-se completamente no <i>fundo </i>indistinto da realidade incognoscível do Um. <i>"Mas você não poderá ver a minha face, porque nenhum homem poderá continuar vivo depois de me ver" </i>(<i>Êxodo, </i>33, 20). Nada há na existência ao lado do <i>Um sem segundo. </i>Ver Deus é deixar de existir.</p><p style="text-align: justify;">O <i>homem nobre, </i>é preciso que se diga, não afirma sua identidade com Deus. Não se trata do orgulho luciferiano ou da tentação da serpente que sussurra <i>"sereis como deuses". </i>Ao contrário, o que Eckhart enfatiza é a pobreza ontológica das criaturas. Frente ao Deus verdadeiro, não somos nada, desaparecemos, e só Ele resta na Sua glófia infinita. Imagine-se a arrogância de quem ainda pretende afirmar sua existência mesmo diante do único Existente! </p><p style="text-align: justify;">É por isso que Meister Eckhart encerra seu opúsculo afirmando <i>"o Um com o Um, o Um do Um, o Um no Um, e, no Um, eternamente Um!"</i></p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/neoplatonismo">Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/m%C3%ADstica">Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)</a></p><p></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-20873804006774873922023-08-04T18:11:00.000-03:002023-08-10T17:11:04.092-03:00Ulrich de Strasburg, neoplatonismo medieval e teologia mística<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjGcPDk2a-UGkh0sst-HFPGjt8q03ducqeLIIRaCNgIcJNMBtdBYRfoBbcrfSQY94gRvlTB-mO7lS-i2KO3X3TvknZ50T0TR06fQH8VOT-o97xRBxqKkXBujsk5qRYRFUEurK0F9Ri8TMi_mRKoBjpJ1XwimxcHhM36DdRFAM5qDALYu5HxmzPCBJ45O9MZ/s800/Untitled-6_302021.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="723" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjGcPDk2a-UGkh0sst-HFPGjt8q03ducqeLIIRaCNgIcJNMBtdBYRfoBbcrfSQY94gRvlTB-mO7lS-i2KO3X3TvknZ50T0TR06fQH8VOT-o97xRBxqKkXBujsk5qRYRFUEurK0F9Ri8TMi_mRKoBjpJ1XwimxcHhM36DdRFAM5qDALYu5HxmzPCBJ45O9MZ/w289-h320/Untitled-6_302021.jpg" width="289" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"É evidente, portanto, que o Ser divino é um ser verdadeiro, pois nada há n'Ele que não seja Ele. Ao contrário, cada criatura, porque é necessariamente um ente especial diferente dos outros, possui, além do ser comum a todos, outra coisa que penetra na natureza do ente como a determinação no determinado e que o especifica e o distingue dos outros. Com efeito, uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo fundar uma conveniência e uma diferença. Eis porque a criatura é um falso ser."</div><p style="text-align: justify;">ULRICH DE STRASBURG, <i>De Summo Bono, </i>II, 2, 4.1</p><p style="text-align: justify;">A tradição platônica (ou neoplatônica) esteve presente por toda a Idade Média principalmente pelas obras de Agostinho de Hipona e de Dionísio Areopagita. Porém, as obras de Platão, assim como as de Aristóteles e de outros pensadores gregos, em sua maioria não eram mais acessíveis aos europeus após a queda do Império Romano do Ocidente no século V. Partes do <i>Órganon</i> aristotélico e do <i>Timeu</i> platônico foram basicamente as únicas fontes da filosofia e da ciência medievais até o influxo extraordinário das traduções ao Latim das obras de Aristóteles no século XII em diante.</p><p style="text-align: justify;">Junto a essas traduções de Aristóteles, e atribuídas a ele, vieram muitas obras de procedência diversa, como o <i>Liber de Causis</i>, que na verdade se tratava de parte dos <i>Elementos de Teologia </i>de Proclo, o filósofo neoplatônico do século V D.C.. Vê-se o quão errônea é a tese segundo a qual Aristóteles reinou absoluto pelos mil anos da Idade Média. Na realidade, antes de sua chegada, por assim dizer, havia uma tradição platônica muito bem assentada, e da qual se pode traçar a continuidade até Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino, Pico Della Mirandolla, e mesmo, no caso do agostinianismo, René Descartes e outros modernos.</p><p style="text-align: justify;">Em seu excelente livro <i>La Mystique Rhénane, </i>o filósofo e historiador da filosofia medieval Alain de Libera estuda a tradição platônica que alemã da região do Reno que, sob a influência de Alberto Magno, desenvolve uma metafísica que deságua na mística de Meister Eckhart e seus discípulos. Nessa linha de desenvolvimento, há a tentativa de união e de síntese do neoplatonismo latino de Agostinho, do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita, da teologia henológica de Proclo e, logicamente, da fé cristã católica.</p><p style="text-align: justify;">O frade dominicano alemão Ulrich de Strasburg (1220/1277) é um dos filósofos e teólogos dessa corrente renana, e como seu contemporâneo Tomás de Aquino, um discípulo de Alberto Magno. Apesar de compartilharem o mestre, Ulrich e Tomás seguem caminhos muito diferentes na filosofia. O neoplatonismo renano de Ulrich possui bases bem diferentes das do aristotelismo tomista.</p><p style="text-align: justify;">A obra mais importante de Ulrich é <i>De Summo Bono</i> (<i>Sobre o Bem Supremo</i>), que, segundo Alain de Libera, foi eclipsada pela <i>Summa Theologica</i> de Tomás de Aquino. A metafísica exposta no livro parte do Bem supremo até o bem participado, os entes, e destes sobe ao Bem supremo, como é típico do neoplatonismo. </p><p style="text-align: justify;">Segundo Ulrich, o homem pode conhecer algo de Deus pela razão natural, isto é, somente pelo uso do raciocínio filosófico sem auxílio da fé. Entretanto, é mister distinguir entre conhecer e compreender. Deus é a um só tempo cognoscível e incognoscível. Aqui Ulrich introduz algumas distinções interessantes. </p><p style="text-align: justify;">Deus é incognoscível porque o intelecto humano só apreende aquilo que é um ente ou um ser. Isto é, o ser humano só pode conhecer aquilo que é limitado, o que é isto ou aquilo. Ulrich chama os entes de primeiras emanações da divina Bondade. Essa afirmação não é estranha a quem conhece as <i>Enéadas</i> de Plotino, onde a incognoscibilidade do Uno se deve justamente à incapacidade do intelecto de captar aquilo que não seja delimitado.</p><p style="text-align: justify;">Deus, portanto, não é um ente. É incognoscível por conta da incapacidade intelectual humana de captar aquilo que não seja um ente. Por outro lado, Deus é cognoscível, pois sendo um intelecto, alguma semelhança há entre Ele e os seres humanos, possibilitando que O conheçamos pelos Seus efeitos. Mesmo assim, não conhecemos o que Deus é (<i>quidditas</i>) e nem como Ele é em si mesmo.</p><p style="text-align: justify;">Ulrich entende haver cinco vias de conhecimento de Deus, sendo a primeira um conhecimento confuso que é ativado pela experiência da causalidade. Todos os homens possuem naturalmente uma noção confusa, vaga, da existência de Deus. Esse instinto ou sentimento não é uma prova da existência de Deus, mas uma predisposição para a prova. Quando o ser humano tem a experiência empírica da causalidade, ele forma a noção clara de uma <i>Causa Primeira.</i></p><p style="text-align: justify;">A segunda via é a da negação, onde, no âmbito da teologia simbólica, afirmamos e negamos, ao mesmo tempo, um certo nome ou atributo. Por exemplo, se as Escrituras dizem que o Senhor é como um leão, negamos que Ele seja literalmente um leão ao mesmo tempo em que afirmamos que há no leão algo que recorda uma perfeição que está infinitamente em Deus. </p><p style="text-align: justify;">A terceira via é a da causalidade, segundo a qual toda perfeição que está no efeito, está também na causa. O que significa que, remontando dos efeitos às causas, chegamos ao conhecimento de que a Causa Primeira possui em Si mesma todas as perfeições que estão em todos os Seus efeitos.</p><p style="text-align: justify;">A quarta via é a da eminência ou teologia mística. Tudo o que sabemos de Deus, sabemos por meio das coisas que são Seus efeitos. Contudo, quando atribuímos perfeições a Deus, nós as atribuímos segundo a medida das coisas que conhecemos, ou seja, de modo sempre limitado. Por exemplo, se dizemos que Deus é bom, a bondade que a Ele atribuímos é só a bondade limitada que conhecemos, e não a Bondade tal como é essencialmente em Deus.</p><p style="text-align: justify;">Todos os termos e conceitos atribuídos a Deus, portanto, são sempre inadequados. A única forma de designar Deus é a negação por superabundância, como defendia Dionísio Areopagita. Se dissermos que Deus não é uma substância (um ente), não estamos dizendo que Ele é menos que uma substância (menos que um passarinho, por exemplo), mas, ao contrário, que Ele é <i>suprassubstancial</i>, acima de qualquer limitação de qualquer ente real ou possível. O termo que Dionísio Areopagita utiliza frequentemente na <i>Teologia Mística</i> e no <i>Os Nomes Divinos</i> é <i>supraessencial </i>(ὑπερούσιος, além do ser).</p><p style="text-align: justify;">A quinta via é a perfectibilidade do intelecto. Na medida em que o intelecto humano pode sempre se elevar a realidades cada vez mais altas, mais imateriais, ele alcança as substâncias separadas, se assimila a elas, e, assim, conhece e se torna o intelecto divino. É pelo fato de o homem ser um ente intelectual que ele pode ter como fim último a perfeição de seu intelecto no conhecimento puro do intelecto divino. Não significa que haverá como conhecer Deus tal como Ele é. O intelecto humano é finito, limitado, mas, por isso mesmo, é perfectível.</p><p style="text-align: justify;">Deus tem no <i>Ser</i> a Sua <i>emanação primeira</i> ou ainda <i>a primeira forma em que todas as formas se resolvem. </i>O que Ulrich quer dizer é que o <i>Ser </i>é a única criação divina, isto é, tudo o que há na realidade, tudo o que foi e tudo o que pode haver na realidade é, foi e será sempre <i>ente, </i>um <i>isto </i>ou um <i>aquilo. </i>Em outros termos, Ulrich está afirmando que a criação primária de Deus é a <i>limitação</i>, o <i>ser isto </i>ou o <i>ser aquilo. </i>E o filósofo alemão identifica o <i>Ser </i>com o <i>Intelecto</i> divino.</p><p style="text-align: justify;">Nisso ele está novamente de acordo com a tradição neoplatônica do <i>Uno </i>e da <i>Díada Indeterminada</i> que é afirmada também nas <i>Enéadas. </i>O <i>Uno </i>é a origem do <i>Nous </i>(o <i>Intelecto </i>ou o <i>Ser</i>), o<i> cosmos noético</i> onde residem as <i>Ideias </i>ou <i>Formas,</i> os modelos eternos de todas as coisas deste mundo. É no <i>Intelecto </i>que nasce a multiplicidade e, portanto, a limitação, pois uma <i>Ideia </i>não pode ser idêntica formalmente à outra <i>Ideia. </i>Na <i>Enéada V, 4.2, </i>o divino Plotino afirma que: </p><p style="text-align: justify;">"A intelecção vê o inteligível e se volta para ele, sendo dessa forma tornado perfeito. Ele é, de si mesmo, indefinido como a visão, e tornado definido pelo inteligível. Por essa razão é dito que 'da Díada Indeterminada e do Uno' vêm as Formas ou Números. Pois isso é o Intelecto."</p><p style="text-align: justify;">Então, o Intelecto divino de Ulrich é o <i>Ser</i> indeterminado, o <i>Ser enquanto Ser, </i>que só se determina e se manifesta nos <i>seres</i>, <i>nisto </i>e <i>naquilo, </i>da mesma forma em que são as <i>Ideias </i>que<i> </i>manifestam de modo determinado o poder indeterminado do Intelecto de inteligir algo. Não será errôneo, creio, afirmar que o <i>Intelecto</i> ou o <i>Ser </i>de Ulrich, a <i>primeira emanação, </i>possa ser<i> </i>entendido como o <i>princípio de determinação </i>dos seres, e, por isso mesmo, o <i>princípio da criação </i>dos seres. </p><p style="text-align: justify;">Todo ente, qualquer que seja, para entrar na realidade, deve já estar determinado, limitado, definido dentro de certas categorias, espécies, gêneros, classes, etc. O <i>Ser </i>de Ulrich é o princípio determinante que "coloca" cada ente na realidade por meio de sua determinação dentro de algumas dessas categorias, espécies, gêneros, etc. O <i>Ser </i>é a determinação primeira e fundamental de todo e qualquer ente.</p><p style="text-align: justify;">Contudo, o frade dominicano alemão, enquanto católico, reconhece que o nome de Deus proclamado nas Escrituras, <i>Eu Sou Aquele que Sou </i>(Êxodo 3,14), se refere à essência divina. A questão é como conciliar essa afirmação com a distinção neoplatônica realizada acima entre Deus e o <i>Ser</i>. Ulrich admite que biblicamente Deus é o <i>Quid Est</i>, <i>Aquele que é, </i>mas uma distinção capital deve ser feita entre o que significa <i>Ser</i> em Deus e nas coisas.</p><p style="text-align: justify;">Ora, obviamente, por tudo o que foi dito anteriormente, não há comparação entre Deus e os entes finitos. Logo, ao afirmar que Ele é <i>Aquele que é, </i>as Escrituras se referiam não ao modo de ser dos entes deste mundo, mas sim a um <i>Ser Absoluto. </i>O que equivale, segundo Ulrich, a dizer que Deus é <i>suprasser </i>ou <i>supraessencial.</i> Em certo sentido, em analogia com os entes, Deus não é um ente como um passarinho é um ente. Em outro, enquanto fonte eterna de tudo, só Ele merece realmente o nome de <i>Ser. </i>Só Deus <i>existe</i> no sentido pleno da palavra, as coisas existem somente em sentido análogo.</p><p style="text-align: justify;">Ulrich repete aqui a distinção neoplatônica entre o <i>Uno </i>e o <i>Ser</i> ou <i>Intelecto</i>, aplicando-a ao texto bíblico de modo a afirmar que, assim como o <i>Uno, </i>Deus não é o <i>Ser </i>considerado como um princípio de delimitação e de multiplicidade que une todos os entes, mas, por outro lado, Deus é o <i>Ser </i>quando este é considerado como uma afirmação da Sua absoluta existência como fonte última de tudo aquilo que há e pode haver. É enquanto <i>Causa Primeira </i>dos entes que pode se afirmar alguma analogia, alguma comparação, entre Deus e as criaturas.</p><p style="text-align: justify;">Creio que é possível afirmar que distinção entre Deus e os entes (ou criaturas) reside exatamente na <i>distinção. </i>Assim como o tempo só existe para os entes do mundo temporal, a <i>distinção </i>só existe para os entes distintos. Apesar de não ser uma afirmação explícita de Ulrich, o que vai acima parece se encaixar bem na tese do dominicano alemão segundo a qual "o Ser divino é um ser verdadeiro, porque nada há n'Ele que não seja Ele." </p><p style="text-align: justify;">Como disse anteriormente, todo ente para entrar na realidade já entra determinado, limitado, definido por alguma espécie, classe, tipo, etc. Todos os entes possuem em comum a característica de que eles só existem <i>sendo algo</i>, sendo<i> instância </i>ou<i> exemplar </i>de um<i> tipo de ser. </i>Essa é a primeira e fundamental determinação a partir da qual todas as outras se seguirão, como as potencialidades próprias do tipo de ser que o ente é, as possibilidades e as impossibilidades daquele tipo de ente, etc. </p><p style="text-align: justify;">Todavia, <i>o que a coisa é </i>distingue-se da sua <i>existência. </i>O livro existe tanto quanto o computador no qual escrevo, mas ninguém diria que um livro <i>é </i>um computador. No simples <i>ato de existir, </i>o livro e o computador não se distinguem. No ato de existir <i>como</i> um livro ou <i>como </i>um computador eles se distinguem absolutamente. Isto é, o <i>modo de ser </i>de<i> </i>um livro é diferente do <i>modo de ser </i>de um computador. A <i>distinção</i> nasce no <i>modo de ser </i>do ente.</p><p style="text-align: justify;">Em Deus nada há de distinto, portanto nada há de limitado. Por essa razão Ele <i>existe</i> no pleno sentido da palavra, <i>simpliciter</i>. Os entes só existem em um sentido análogo, não possuem seu ser, mas o recebem de um outro. Cada um dos entes deste mundo, individualmente, passou a existir, teve uma causa. Isso significa que receberam a <i>existência </i>de outro. Não possuem a <i>existência </i>como algo que lhes seja próprio. Os entes, diz Ulrich de Strasburg, possuem um <i>falso ser </i>(<i>falsum ens</i>).*</p><p style="text-align: justify;">Os entes não possuem o ser por si mesmos, só existem porque uma causa já existente as trouxe à existência. O ente é um <i>nada em potência. </i>Diz Ulrich sobre o ente que "...o ser não se encontra nele absolutamente, não possui existência a não ser por conta de sua causa, é um não-ser em potência; 'em potência', no sentido da potência condicionada, isto é, na previsão do caso onde onde a influência de sua causa seria retirada. Essa potência a não-ser é aquela de um nada."</p><p style="text-align: justify;">O que o frade dominicano alemão quer dizer não é de difícil compreensão. Os entes deste mundo só existem na medida em que são trazidos à existência por outros já existentes, e são mantidos na existência por uma série de condições. Retiradas as causas e as condições, os entes retornariam à não existência, ao nada. Por isso, aos entes não cabe plenamente os termos <i>ser </i>e <i>existir. </i>Existindo, as coisas tendem ao nada, porque por si mesmas elas são <i>nada. </i></p><p style="text-align: justify;">Não houvesse Deus, a <i>Causa Primeira, </i>o verdadeiro existente, não haveria nenhum ente na realidade. A existência divina, no entanto, não é a de um <i>ente, </i>de um <i>isto </i>ou de um <i>aquilo. </i>O <i>Ser</i> de Deus é a <i>pura existência</i> <i>sem determinação. </i>Ausentes as determinações, estarão ausentes as limitações ontológicas que caracterizam os entes. O que é ilimitado não necessita de causa, é Ele mesmo a Causa de tudo.</p><p style="text-align: justify;">Como assinala Alain de Libera, em Ulrich de Strasburg, acontece uma síntese do neoplatonismo latino de Agostinho centrado na metafísica do <i>Ser</i> e do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita centrado na henologia do <i>Uno. </i>Por conta do texto bíblico, o frade alemão reinterpreta o <i>Eu Sou Aquele que Sou </i>do Gênesis em termos neoplatônicos. O <i>Ser </i>ou<i> Intelecto, </i>que na teologia natural de Ulrich era a <i>primeira emanação </i>de Deus, correspondia perfeitamente ao esquema neoplatônico do <i>Uno </i>e do <i>Ser </i>ou <i>Intelecto.</i></p><p style="text-align: justify;">Logicamente decorria daí o <i>apofatismo</i> da teologia mística, dado que tudo o que o ser humano poderia captar com seu intelecto limitado estava contido de forma principial no <i>Ser</i> ou <i>Intelecto</i>, para além do qual havia somente a realidade indizível e incognoscível de Deus assimilado ao <i>Uno</i> livre de toda multiplicidade e de toda delimitação. O mundo do <i>Ser, </i>ou seja, o mundo dos entes, era a emanação primordial de Deus, o <i>supraessencial, </i>o <i>Uno</i> indizível <i>para além do Ser.</i></p><p style="text-align: justify;">A partir desse ponto de vista, não haveria nenhum problema em dizer que Deus não é um <i>ente, </i>ou, mais ousadamente, que Deus é <i>Não-Ser</i>, ou pior, que Deus <i>não existe. </i>A negação da teologia mística, da <i>teologia apofática, </i>não é uma simples privação, como dizer "João não é rico". A negação é uma medida de preservação da absoluta transcendência do Princípio de todas as coisas. Afirmar que Deus é bom é correto, mas somente na medida em que temos em mente que a <i>bondade</i> é um termo limitado, relativo, e, portanto, inadequado para se referir ao Princípio.</p><p style="text-align: justify;">A distinção só existe para o distinto, então o que para nós aparece como perfeições distintas ou separadas (bondade, razão, amor, etc.), em Deus são uma só e mesma coisa infinitamente. A definição do discurso apofático que formulei e utilizo é a de que o apofatismo <i>afirma a perfeição para negar a imperfeição, e nega a perfeição para negar imperfeição. </i>Isto é,<i> </i>toda perfeição é justamente atribuída a Deus para que nenhuma imperfeição seja pensada em relação a Ele, porém, ao mesmo tempo, é necessário negar até mesmo essas perfeições que atribuímos a Deus, não porque Ele não as possua, mas porque elas são imperfeitas quando comparadas à infinitude divina.</p><p style="text-align: justify;">Afirmar <i>apofaticamente</i> que Deus é <i>Não-Ser,</i> ou mesmo que Ele é <i>Nada, </i>não<i> </i>significa privar Deus da existência. Significa enfatizar o fato de que os termos e os conceitos humanos, ainda que sejam os mais elevados possíveis, não podem definir o que Deus é. Quando um místico afirma que Deus é <i>Nada, </i>não se refere à absoluta ausência de qualquer coisa, ou à simples inexistência de algo. O místico se refere justamente àquele <i>fundo </i>sem determinações, o <i>Uno, </i>ou <i>Deus, </i>que ultrapassa o <i>Ser, </i>o mundo dos seres determinados. </p><p style="text-align: justify;">Se a nossa linguagem, os nossos conceitos e o nosso intelecto só podem lidar com o que é delimitado, então que outro nome dar à essa realidade divina que está para além das determinações senão <i>Não-Ser </i>ou, mais diretamente, <i>Nada</i>? Não à toa, na sequência da mística renana, Meister Eckhart chamará Deus, entre outros termos, de <i>Uno, </i>de <i>Fundo</i> e, finalmente, de <i>Nada. </i></p><p style="text-align: justify;">A linguagem bíblica, no entanto, denominava Deus como <i>Aquele que É</i>, uma afirmação da perfeição do <i>Ser </i>divino. Ulrich de Strasburg efetua uma <i>apofatização </i>da metafísica do Ser na medida em que considera que o ser dos entes, o ser das criaturas, é sempre <i>derivativo</i>, proveniente de um outro, justamente porque cada ente têm, além de sua existência, uma determinação essencial que o torna um <i>isto </i>ou um <i>aquilo. </i>Nenhuma determinação se encontra em Deus. Ele não é um <i>isto </i>ou um <i>aquilo.</i></p><p style="text-align: justify;">Por isso mesmo, a existência divina não é limitada como a dos entes. Comparados a Deus, as criaturas são <i>falsos seres. </i>Se retirarmos tudo o que é falso, permanecerá somente o que é verdadeiro. Retirando os <i>falsos seres, </i>permanecerá o verdadeiro <i>Ser. </i>Os entes são caracterizados por suas determinações. Eliminando as determinações, vão-se os <i>falsos seres. </i>O que resta é o <i>Ser </i>puro, a <i>existência sem determinação. </i>O que o homem pode dizer do puro <i>Ser</i> destituído de todas as determinações possíveis? </p><p style="text-align: justify;">Que Deus é <i>Nada.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>...</i></p><p style="text-align: justify;"><i>* </i>Alain<i> </i>de Libera, em uma nota, cita o comentário de Alberto Magno ao <i>Os Nomes Divinos </i>de Dionísio Areopagita onde o mestre de Ulrich faz declarações semelhantes, embora não idênticas, sobre o ser dos entes: "Creatura non habet verum esse, quia habet esse ab alio. (...) Ens creatum non habet verum esse, quia in comparatione Dei, qui vere est, alia nihil sunt." A criatura não tem ser verdadeiro por receber o ser de outro. O ente criado não possui verdadeiro ser, pois em comparação com Deus, que verdadeiramente é, nenhuma das outras coisas são.</p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4939686936322502243.post-75456340937901632592023-07-27T14:21:00.000-03:002023-07-27T14:21:12.776-03:00Huang Po, consciência ordinária e o espírito puro do Buddha<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwhGbTYoOOSwhhN9e_rZLNqzycfofRPivunWOv36WwMXt2G9cgLfjJ9Y4GG9b-jdzm7oJZz8zxcHMsg4Jol_6NJq-Q1LT10X7D5aV-Cog1G5iviayT29yPnp-6dodJgFBnMdtwtwoHA1oBxnSH3asxoKxVcqj6NbmqaZnfj06gfUz9xZeozrIQP1R1nda9/s912/OIP%20(1).jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="910" data-original-width="912" height="318" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwhGbTYoOOSwhhN9e_rZLNqzycfofRPivunWOv36WwMXt2G9cgLfjJ9Y4GG9b-jdzm7oJZz8zxcHMsg4Jol_6NJq-Q1LT10X7D5aV-Cog1G5iviayT29yPnp-6dodJgFBnMdtwtwoHA1oBxnSH3asxoKxVcqj6NbmqaZnfj06gfUz9xZeozrIQP1R1nda9/w320-h318/OIP%20(1).jpeg" width="320" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"Nada jamais existiu."</div><p style="text-align: justify;">HUINENG</p><p style="text-align: justify;">O venerável mestre budista Ch'an (Zen) chinês Huang Po, tratando do <i>espírito puro</i> da <i>Buddhidade</i>, ensina a seus discípulos que não há diferença entre os Buddhas e os seres viventes, as montanhas e os rios, aquilo que possui forma e aquilo que é informe, e a totalidade de todos os universos forma ali uma perfeita igualdade, sem o "mesmo" e o "outro". Tal espírito primordialmente puro está sempre em plenitude, e sua luminosidade esclarece todas as coisas.</p><p style="text-align: justify;">A gente comum confunde esse espírito com sua consciência ordinária. Obscurecidos, não veem a sutil claridade de seu ser fundamental. Mas se o espírito fundamental não pertence à consciência ordinária, tampouco está separado dela. Basta parar de teorizar sobre a consciência ordinária, não mais se separar dela para buscar o espírito, e não mais a rejeitar para tirar proveito de um método. Nada de mediado ou de imediato, nada que permaneça ou se apegue, em todos os sentidos nada a não ser liberdade, e em qualquer lugar, o lugar da Via (道).</p><p style="text-align: justify;">Nessas preleções, o mestre Huang Po expressa o inexpressável, trata da realidade absolutamente incondicionada que a tudo transcende e a tudo integra. As palavras, os termos e os conceitos do mundo dos seres condicionados nunca refletem adequadamente o Princípio sobre o qual estão fundados esses mesmos seres. No primeiro parágrafo, Huang Po afirma que não há diferença entre os Buddhas, os seres viventes, e toda a gama de entes que povoam os universos. </p><p style="text-align: justify;">O desafio de nossa consciência ordinária, objeto do segundo parágrafo, é transcender toda multiplicidade e enxergar a unicidade, a perfeita igualdade sem o "mesmo" e o "outro". O Buddha Sakyamuni é conhecido pelo título de <i>Tathagata, </i>isto é, aquele que conhece a "<i>talidade</i>" (<i>Tathata</i>), o caráter de ser <i>tal, Tat, "isto". </i>Ele possui o conhecimento correto da realidade <i>tal </i>como ela é. No <i>Sutra do Diamante, </i>o mesmo <i>Tathagata </i>afirma que, de fato, na Iluminação suprema não encontrou <i>nada.</i></p><p style="text-align: justify;">Isso significa que não há nada a encontrar que esteja fora daquilo que já somos e sempre fomos. Encontrar algo seria opor o que foi achado ao que antes se possuía. A questão é exatamente que não há nada a encontrar no sentido de algo diferente deste mundo. A passagem de uma situação à outra é uma característica própria do mundo condicionado. O Buddha não passou de um estágio espiritual a outro como quem avança na direção de um objetivo.</p><p style="text-align: justify;">O Buddha é aquele que reconheceu o que ele sempre foi e o que os outros seres sempre foram. O <i>espírito puro</i> de Huang Po fala de uma unicidade fundamental que reúne e ultrapassa todos os seres. Essa unicidade ultrapassa as diferenças, transcende o <i>mesmo</i> e o <i>outro</i>. Todo ser deste mundo condicionado se afirma na existência como idêntico a si mesmo, ou seja, se um ente é X, necessariamente ele só pode ser X, sempre será ele <i>mesmo. </i>Justamente por ser X, ele se diferencia de tudo o que não é X, ou seja, de tudo que seja <i>outro.</i></p><p style="text-align: justify;">Huang Po afirma em seu discurso que o <i>espírito puro</i>, a <i>Buddhidade</i>, é anterior a essas diferenciações mais fundamentais. O <i>espírito puro</i> não é <i>algo</i>, e nem pode ser descrito pelos termos e conceitos do mundo condicionado, ou entendido pela consciência ordinária que enxerga somente a distinção e a discriminação, o X que não é Y, e vice-versa. Sendo <i>anterior</i> às distinções e condições, o <i>espírito puro</i> não está sujeito às limitações próprias do mundo dos entes condicionados.</p><p style="text-align: justify;">A diferença, a distinção, a discriminação, o <i>mesmo</i> e o <i>outro,</i> não se aplicam ao <i>espírito puro</i> porque toda condição e toda limitação tem no <i>espírito puro</i> a sua unicidade fundamental. Por isso mesmo, Huang Po pode dizer que não há diferença entre os Buddhas e os seres viventes, as montanhas e os rios, as coisas que têm forma e as informes, etc. Que o Buddha seja todas essas coisas não implica em nenhuma contradição, pois só pode haver contradição lá onde se afirmam as limitações básicas do <i>mesmo</i> e do <i>outro.</i></p><p style="text-align: justify;">Quando vistos a partir do mundo da discriminação e das dualidades (<i>Samsara</i>), nenhum X pode ser ao mesmo tempo também um Y sem incorrer em contradição. João não pode ser Pedro sem deixar de ser João. Ocorre que essas são as <i>condições </i>que caracterizam nosso mundo de <i>condições </i>e de <i>limitações. </i>O <i>espírito puro</i>, o <i>Incondicionado, </i>é a realidade <i>anterior</i> à qualquer diferenciação, e a partir da qual qualquer diferenciação se apresenta. </p><p style="text-align: justify;">Huang Po não está opondo dois mundos, um <i>mundo de multiplicidade</i> que vemos na nossa experiência cotidiana de um lado, e do outro lado um suposto <i>mundo de unicidade</i> que não vemos, mas que seria <i>o</i> mundo <i>verdadeiro</i>. O mestre budista está falando de uma só e mesma realidade, por um lado vista de um modo limitado e incompleto, e por outro vista na sua plenitude que engloba toda a sua riqueza. O <i>espírito puro</i>, a natureza <i>Buddhica</i> de todos os seres, não é um mundo contraposto ao mundo que conhecemos. </p><p style="text-align: justify;">Não são duas <i>coisas, </i>duas opções à nossa escolha. O <i>espírito puro</i> é, por assim dizer, cada coisa do mundo condicionado, mas não é nenhuma delas em particular. É o <i>espírito puro</i> que dá o caráter de <i>coisa </i>às coisas, sem que, no entanto, o <i>espírito puro</i> seja ele mesmo uma <i>coisa. </i>O <i>espírito puro</i> constitui todos os seres, quaisquer que eles sejam, tornando-os o que são, <i>isto</i> ou <i>aquilo</i> (<i>Tat</i>). O <i>espírito puro</i> é a <i>talidade </i>de todos os seres, a virtude de ser <i>tal </i>ente<i> </i>e<i> </i>não<i> outro. </i>Por isso mesmo, o <i>espírito puro</i> não se opõe a nada e nem nega nada.</p><p style="text-align: justify;">Na verdade, Buddha, o <i>Tathagata, </i>só poderia encontrar <i>nada</i> na sua Iluminação. Qualquer <i>coisa</i> que ele encontrasse, seria <i>algo, </i>um ente ou uma realidade limitada e condicionada como todos os entes e realidades do mundo dos limites e das condições. A unicidade última de todas as coisas não pode ser uma <i>coisa</i>, um <i>algo. </i>É frequente que os grandes místicos, tanto nas tradições espirituais ocidentais como nas orientais, descrevam a realidade fundamental e indizível como <i>Nada. </i>Na linguagem do budismo<i> Mahayana, </i>tudo é <i>Sunya </i>(vazio), <i>Sunyata </i>(vacuidade). </p><p style="text-align: justify;">Um dos versos do<i> </i><i>Sutra do Coração </i>(心经) diz algo como <i>os fenômenos são vazio e o vazio são os fenômenos</i>. Não há uma disjunção no verso<i>, </i>não é dito "fenômeno ou vazio", "ou um ou o outro". O <i>Sutra </i>não é parcial. Ao contrário, o <i>Sutra </i>contempla a inteireza da realidade. O verso <i>os fenômenos são vazio </i>mostra que o mundo fenomênico dos seres condicionados e limitados, quando visto a partir de sua unicidade fundamental, é <i>vazio, </i>pois o <i>espírito puro</i> não é <i>algo, </i>não<i> </i>é um fenômeno.</p><p style="text-align: justify;">O verso <i>o vazio são os fenômenos, </i>por seu turno, faz o caminho inverso, o <i>espírito puro</i>, não sendo <i>algo, </i>mas sim a <i>talidade, </i>o princípio de tudo que é <i>algo, </i>não nega a multiplicidade, a diferença, o <i>mesmo </i>e o<i> outro </i>que caracterizam o mundo fenomênico. Ao contrário, os fenômenos são o próprio vazio quando este é visto sob o prisma relativo das coisas, do mundo da consciência ordinária. Ao meditar no verso do <i>Sutra, </i>a mente vai do incondicionado ao condicionado e do condicionado ao incondicionado sem opor um lado ao outro como se se tratassem de dois pólos opostos.</p><p style="text-align: justify;">Não são duas realidades, mas uma só e mesma realidade, o <i>espírito puro</i> que se manifesta nos fenômenos sem ser ele mesmo um fenômeno. Ele não "engloba" os seres como um vaso contém um líquido, e nem penetra as coisas como a água penetra por todos os lados aquilo que está mergulhado nela. Pensar assim seria dar substancialidade ao espírito puro, torná-lo uma coisa entre outras coisas, como se fosse uma espécie de matéria que serve de <i>substratum </i>para a produção de outras coisas. </p><p style="text-align: justify;">A nossa linguagem, adequada para lidar com os entes contingentes, limitados, condicionados e fugidios, não consegue descrever ou conceituar o <i>espírito puro</i> ensinado por Huang Po. A grande tentação é substancializar, hipostasiar, transformar o <i>espírito uno</i> em uma <i>coisa, </i>em <i>algo, </i>e, consequentemente, opô-lo ao mundo fenomênico e à consciência ordinária como se fossem rivais em uma disputa. Huang Po ensina que a Via não é se separar da consciência ordinária para buscar o espírito. </p><p style="text-align: justify;">Não se trata de rejeição da consciência ordinária ou do mundo fenomênico. Agir assim significaria opor dois mundos rivais para depois escolher um e rejeitar o outro. Huang Po ensina que todo lugar é o lugar da Via. O <i>espírito puro</i> não pertence à consciência ordinária, todavia não está separado dela. Isto é, quando só se enxerga a realidade parcialmente, exclui-se o <i>espírito puro</i>. Mas no<i> espírito puro</i> não há separação de nenhum gênero. A separação só existe neste mundo de separação. </p><p style="text-align: justify;">Em seu artigo intitulado <i>Pourquoi le non-dualisme asiatique?, </i>o filósofo francês Georges Vallin, cujos estudos foram dedicados à compreensão das doutrinas orientais e à filosofia comparada, afirma que, mais do que uma divisão geográfica, o pensamento ocidental e o pensamento oriental correspondem a tipos de mentalidade que, embora predominantes em um lado ou no outro, comportam também exemplos do pensamento oposto. </p><p style="text-align: justify;">Se Sankaracarya representa perfeitamente o pensamento oriental, Ramanujacarya, na mesma Índia, é muito mais próximo dos modelos ocidentais, com sua centralidade na <i>bhakti, </i>a devoção a um Deus pessoal (<i>Iswara</i>). Analogamente, um Meister Eckhart estaria mais próximo das formas orientais de pensamento do que de seus contemporâneos. Não é de se espantar que sua doutrina tenha sido condenada como herética. Nas tradições orientais, as confusões que linguagem de Eckhart pode ter suscitado nos ouvidos de uma mentalidade mais ocidental não teriam terreno para nascer.</p><p style="text-align: justify;">Isso porque essas afirmações paradoxais são parte da tradição coletiva, como no caso da doutrina da identidade Atman-Brahman nos <i>Upanisads. </i>Para descrever essa peculiaridade do mundo oriental, Vallin inventa a expressão <i>esoterismo à céu aberto. </i>Isto é,<i> </i>fala-se publicamente de certas realidades impossíveis de formular ou transmitir em uma linguagem que não seja alusiva, simbólica, elíptica, ou paradoxal, justamente por conta do caráter inexprimível e inefável dessas realidades. </p><p style="text-align: justify;">A atitude espiritual oriental, Vallin acredita se exprimir no seu mais alto grau nas tradições não-dualistas (Advaita Vedanta, Taoísmo, Budismo Mahayana) onde é transcendido o espírito de <i>alternativa </i>que caracterizaria a espiritualidade ocidental. O espírito não é afirmado contra a carne e nem Deus contra o mundo, ao contrário, todos são englobados no raio do espírito. A transcendência do Absoluto é, ao mesmo tempo, a afirmação integrativa da finitude ou do relativo.</p><p style="text-align: justify;">Como Huang Po ensina, o <i>espírito puro </i>a tudo engloba, os Buddhas e os seres viventes, os rios e as montanhas, o que possui forma e o que não possui forma. O mundo das condições e das limitações, do <i>mesmo </i>e do <i>outro </i>é o próprio <i>espírito puro </i>manifestado (prādurbhāva) como mundo relativo sem que perca em nada a sua absoluta transcendência. Em todas as coisas, só há ele, o <i>espírito puro. </i>A acusação que é feita frequentemente à doutrinas orientais é a de que todas elas seriam formas variadas de <i>panteísmo. </i></p><p style="text-align: justify;">O panteísmo, <i>grosso modo,</i> é a identificação substancial de Deus com o mundo. Ocorre que só é possível haver identidade onde há <i>entes </i>que possam ser identificados. O mundo pode ser um conjunto de <i>entes</i> ou, com alguma liberalidade, é possível considerá-lo um só <i>ente</i> nas sua totalidade. Mas Deus (usemos esse termo, por enquanto) não é um <i>ente</i>, ele reconhecidamente não cabe em nenhuma das categorias limitadas dos <i>entes </i>deste mundo. </p><p style="text-align: justify;">Sendo assim, penso, como pode haver identificação entre Deus e o mundo, ou entre Deus e os <i>entes, </i>se o próprio Deus transcende todas as limitações que tornam os <i>entes </i>o que eles são? Seria um <i>erro categorial</i> conceber <i>identidade </i>onde não há sequer o <i>mesmo </i>e o <i>outro. </i>Com os <i>entes </i>deste<i> </i>mundo<i> </i>é possível estabelecer relação de identidade, e, por conseguinte, é possível também haver contradição na medida em que, por exemplo, João não pode ser Pedro sem deixar de ser João.</p><p style="text-align: justify;">Ora, essa limitação não cabe em Deus, posto que Ele é a origem das condições que tornam reais o <i>mesmo</i> e o <i>outro, </i>a identidade e a contradição, o mundo dos <i>entes. </i>Aquilo que é origem<i> </i>das condições que governam seus originados não pode ele mesmo ser afetado por essas condições. Não havendo identidade a ser estabelecida entre Deus e os entes deste mundo, creio, é metafisicamente impossível a acusação de panteísmo. </p><p style="text-align: justify;">Para se afirmar o panteísmo, é necessário antes que haja uma <i>redução ontológica </i>de Deus ao nível de um <i>ente </i>para, depois, identificá-lo aos outros <i>entes </i>ou ao<i> mundo. </i>Em outros termos, é necessário transformar Deus naquilo que Ele obviamente não é, um ser finito, para poder assim identificar esse "<i>ente" </i>com outros <i>entes. </i>Dito ainda de outro modo, é por meio da <i>negação</i> de Deus que Deus pode ser identificado aos <i>entes.</i></p><p style="text-align: justify;">Georges Vallin, no artigo referido acima, faz algumas observações interessantes. O ocidental fala de <i>panteísmo </i>nas doutrinas orientais porque só consegue enxergar nelas a <i>redução do Absoluto ao manifestado</i>, isto é, ele as interpreta somente em termos de <i>orgulho satânico</i> ou <i>prometeico</i>. Como se essas doutrinas fossem uma afirmação megalômana do <i>ego </i>e da individualidade humana. Mas essa é uma total inversão do sentido verdadeiro do não-dualismo oriental. </p><p style="text-align: justify;">Não se trata de um <i>"sereis como deuses" </i>e sim um <i>"só há o Absoluto". </i>Em vez do orgulho, a extrema humildade da redução de todo individual ao <i>Supraindividual. </i>A doutrina budista do <i>Anatta </i>(<i>Anatman</i>) é precisamente uma negação da substancialidade do "eu", do "ego", ou coisa que o valha. A incapacidade das coisas de existirem a não ser na dependência umas das outras, <i>Sunyata,</i> é o cerne do ensinamento<i> </i>de Nagarjuna. E, como exemplos mais ocidentais, o <i>homem pobre </i>de Meister Eckhart e a <i>indigência</i> ontológica em Ibn Arabi, não são afirmações do indivíduo.</p><p style="text-align: justify;">Acima afirmei que o <i>espírito puro </i>de Huang Po não é<i> algo, </i>e<i> </i>que<i> </i>o Buddha só poderia encontrar <i>nada </i>na Iluminação. Vale aqui citar por inteiro outra observação de George Vallin:</p><p style="text-align: justify;">"O Nirvana, que corresponde à extinção do querer e da sede (trsna) constitutiva do ego, é, então, naturalmente encarado como <i>nada </i>por uma mentalidade que está condenada a confundir o Supra-ser constitutivo do Absoluto transpessoal com o nada, que é seu exato oposto. Lá onde o oriental falará de três quartos de Brahman, o Absoluto transpessoal, o outro quarto sendo constituído por aquilo que chamamos Deus e pelo mundo, o ocidental não enxergará nada além do vazio, da mesma forma que Aristóteles não via senão o 'vazio' nas ideias platônicas e no Bem."</p><p style="text-align: justify;">Huang Po adverte seus discípulos que a busca por métodos de Iluminação é inútil, pois aquele que persegue métodos, persegue <i>algo </i>deste mundo de diferenças, e acaba não reconhecendo o <i>espírito puro. </i>O mestre budista ensina que "quando chega o momento de testemunhar a Via, é somente de seu próprio espírito-Buddha fundamental que se dá testemunho." Não se trata do fruto de uma busca ardente voltada para o exterior. E essa realidade, nas palavras do <i>Sutra do Diamante, </i>"é a igualdade sem alto nem baixo."</p><p style="text-align: justify;">...</p><p style="text-align: justify;">Leia também: </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/Zen">Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)</a></p><p style="text-align: justify;"><a href="https://oleniski.blogspot.com/search/label/budismo">Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)</a></p>Rogério da Costa (Oleniski)http://www.blogger.com/profile/15128214181000160312noreply@blogger.com1