sábado, 19 de dezembro de 2020

Máthesis Megisthe na "Sabedoria dos Princípios" de Mário Ferreira dos Santos (capítulos I a VI)


"A verdadeira filosofia, para Pitágoras, é a Metamatemática, a arte que consiste em alcançar os conteúdos do saber supremo, e que demonstra suas afirmações (teses) por meio de juízos apodíticos (universalmente válidos), a verdadeira ciência em suma."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Pitágoras e o Tema do Número, p. 74 (itálicos no original)

"Assim, a Máthesis Megiste constrói um universo de discurso válido para todas as esferas do conhecimento humano, enquanto que as diversas disciplinas têm o seu universo de discurso apenas delimitado ao seu campo. A Máthesis Megiste procura, assim, uma linguagem universal."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 4

Logo no início de Sabedoria dos Princípios, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos afirma que a Máthesis Megiste é a instrução suprema pitagórica, uma linguagem que seria o ápice de toda a linguagem humana, dada a sua absoluta universalidade. Enquanto as demais linguagens têm seus domínios e limites próprios, a Máthesis ultrapassaria os âmbitos de todas as outras, a linguagem pragmática da vida cotidiana, o simbolismo da linguagem religiosa e a nitidez dos conceitos científicos. A linguagem da Máthesis seria o ápice das linguagens, com conceitos tão puros que seriam aplicáveis a todos os setores do conhecimento.

Aqui já se apresenta o projeto de Mário Ferreira dos Santos de fundar todo o conhecimento em um conjunto de axiomas gerais e válidos para todo e qualquer conhecimento. Não é à toa que o leitor é logo levado a recordar do discurso aristotélico sobre a sofia (σοφία) na Ética a Nicômaco, onde, tratando das virtudes intelectuais, Aristóteles afirma que a ciência é propriamente aquilo que é inferido dos princípios e que estes sim, quando possuem o caráter maximamente universal, podem ser considerados como sabedoria.

Ao estudar as obras dos grandes filósofos, diz Mário, é possível perceber que eles descobriram parcialmente algo da matéria própria da Máthesis, a descoberta de um conjunto de adágios fundamentais cuja verdade seria percebida por suas próprias notas, não necessitando de nenhuma demonstração anterior e dos quais seria possível, houvesse um método de extração de tudo o que neles está contido, inferir todas as verdades concernentes a seu campo. Obviamente, quanto mais gerais em sua validade forem esses princípios, mais fundamentais eles serão e maior será sua aplicabilidade.

O objeto da Máthesis é o princípio (arché, αρχέ), e o princípio último é Deus, que será estudado mateticamente não enquanto Deus, mas enquanto princípio. Isto é, o discurso da Máthesis não será religioso e compreenderá Deus somente na medida em que é princípio de todas as coisas. A linguagem da Máthesis pretende ser perfeita, compreendendo toda a realidade, o virtual e o possível, inclusive aquilo que é impossível. Por conseguinte, para que ela seja rigorosa, as demonstrações matéticas devem ser apodíticas, ou seja, devem exibir o caráter de absoluta necessidade.

Mário Ferreira afirma ser necessário aclarar alguns conceitos, e inicia a elucidação com o conceito grego de Logos. Há múltiplos significados para esse conceito, mas o filósofo preferirá os três fundamentais: princípio, razão e lei. O que é o logos de um conceito, por exemplo, como anterioridade? Considerado meramente em seu caráter eidético-formal, independente de todas as suas aplicações concretas, a anterioridade é um conceito binário, isto é, implica o conceito de posterioridade. Não é possível afirmar uma anterioridade sem simultaneamente afirmar uma posterioridade. 

Tudo o que é anterior, em qualquer sentido possível, só é anterior porque há algo que seu posterior e vice-versa. O logos de um conceito inclui toda a série de conceitos e juízos que dele possam ser inferidos logicamente. É do logos da anterioridade que ela implique a posterioridade, pois ambos são correlativos. Esse logos é inegável, pois mesmo o cético terá de admitir que a correlação entre anterioridade e posterioridade é necessária, dado que é da essência mesma do que é a anterioridade ter uma posterioridade.

Daí que a validade do logos da anterioridade independe mesmo de qualquer mente humana. Ainda que toda sucessão temporal que observamos fosse somente produto de nossa mente, diz Mário, a relação essencial entre anterioridade e posterioridade manter-se-ia intacta, pois mesmo que ilusória no que tange ao mundo externo, não seria ilusória enquanto sucessão produzida pela da mente. Mais, a lei da anterioridade teria validade ainda que nada houvesse no mundo, uma vez que, no momento em que algo viesse a ser, ela estaria em alguma relação de anterioridade, em qualquer sentido que fosse.

Podemos entender a tese de Mário quando percebemos os vários sentidos da anterioridade. O mundo externo mostra inequivocamente a realidade da anterioridade temporal, pois as coisas se sucedem umas às outras. No entanto, mesmo que um cético negasse a realidade externa da mudança e dissesse que toda essa sucessão que os sentidos nos testemunham é produto meramente de nossa mente, a anterioridade não perderia sua validade justamente por conta da sucessão mental. 

A anterioridade, contudo, não precisa ser temporal. A anterioridade que se manifesta na relação lógica entre premissas e conclusão de uma dedução não é de ordem temporal. As premissas antecedem a conclusão não no sentido temporal, mas no sentido lógico. As premissas fundamentam a conclusão que não diz mais do que aquilo que é dito nas premissas. Do mesmo modo, a anterioridade e a posterioridade estão presentes na matemática, onde um número antecede o seguinte e sucede o anterior. A relação, novamente, é lógico-formal, não temporal.

Há ainda a anterioridade ontológica, na qual o fundamento de algo é a sua condição de existência, sem que haja qualquer sucessão temporal. Por exemplo, a relação entre a criatura e Deus é uma relação de anterioridade e de posterioridade ontológicas, dado que a criatura depende de Deus para simplesmente existir, independente de qualquer relação temporal. Em qualquer momento em que a criatura exista, ela existirá de modo ontologicamente dependente de Deus. 

E, se nada houvesse, a anterioridade manteria a verdade de seu logos, já que qualquer coisa que viesse a existir, saindo da não-existência, estaria em uma relação de anterioridade sob algum aspecto. Esse é um caráter essencial das leis matéticas: sua validade permanece mesmo na hipótese absurda de que não haja nada. Tais leis não são ficções ou produtos de nossa mente. Kant, ao defender que a metafísica dependia da estrutura a priori de nossa Razão, não compreendeu que, mesmo que jamais houvesse uma mente humana, o logos da anterioridade permaneceria válido em si mesmo.

A Máthesis, portanto, é a ciência dos princípios, e os princípios possuem anterioridade ontológica. Todavia, eles são simultâneos com tudo o que há e pode haver. Todas as leis matéticas são simultâneas, atemporais e coexistem com o princípio primeiro de tudo, Deus. São como os Seus pensamentos. Nesse ponto é preciso, diz Mário, não confundir a atemporalidade das leis matéticas com a temporalidade de sua obtenção pela mente humana.

Mário repete aqui a fórmula de Aristóteles segundo a qual há aquilo que é primeiro em si mesmo e aquilo que é primeiro para nós. Nosso conhecimento se dá no tempo, mas as estruturas formais que compreendemos não são elas mesmas temporais. As leis matéticas não se tornam válidas porque as pensamos e nem a partir do momento em que as pensamos, embora para nós elas não se tornem evidentes a não ser no tempo. Em resumo, não se deve confundir a ordem do Ser com a ordem do conhecer. 

O filósofo fornece outro exemplo para ilustrar sua tese. Quando percebemos que nós existimos, podemos afirmar "alguma coisa há". A afirmação de que alguma coisa há é verdadeira psicologicamente (nós a formulamos mentalmente) ontologicamente, ônticamente e, acima de tudo, mateticamente, já que permanece válida independente do tempo e de todo ser que pudesse formulá-la. "Alguma coisa há" é completamente independente de qualquer ser pensante, assim como o logos da anterioridade e da posterioridade. O homem pode alcançar essas verdades por meio de seu aparato psicológico-cognitivo, mas a validade dessas verdades não depende do homem e nem de qualquer ser que alguma vez as tenha pensado. 

Aqui talvez o leitor seja levado a pensar que haja uma contradição entre o que foi dito anteriormente sobre as leis matéticas serem "pensamentos de Deus" e a afirmação de que a validade dessas mesmas leis independem de qualquer ser que as pense. A dificuldade pode ser dirimida, creio, pelo fato de que Mário Ferreira se refere nesse último caso ao caráter temporal e adventício do conhecimento humano ou de qualquer ser finito pensante. O objetivo do filósofo é enfatizar a diferença entre o modo como o conhecimento humano alcança essas verdades e a validade objetiva daquilo que ele alcança. 

As leis matéticas estão em Deus como seus pensamentos, simultânea e eternamente. Mas quando se trata do conhecimento humano, essas mesmas leis são descobertas no tempo e por meio do aparato psicológico-cognitivo de que dispomos. O que em nada influencia em sua validade objetiva, salienta o filósofo. Assim, o logos da anterioridade tem sua validade assegurada por conta da necessidade de sua essência, e não pelo modo como os homens o conhecem. A Máthesis é uma ciência dos princípios, archai, que presidem toda a realidade atual, possível e impossível. 

Tudo o que há tem seu princípio em si ou em outro. O princípio é aquilo a partir do que uma coisa principia, seja em si mesma ou em outro. O princípio é o fundamento da coisa. Mas não é necessariamente a causa da coisa, pois se toda causa é um princípio, nem todo princípio é uma causa. Aquilo que causa algo infunde o ser naquilo que causa. Isto é, a causa traz o causado à existência. Nesse sentido, a causa é o princípio do causado, pois é seu fundamento.

Todavia, nem todo princípio é causa, como é o caso do ponto, que é princípio da linha sem ser a sua causa. O ponto não traz a linha à existência, mas é somente aquilo a partir de onde a linha inicia. A causa, então, pode ser entendida como o princípio que traz ativamente o causado à existência. As leis matéticas, objetos de estudo da Máthesis, referem-se precipuamente aos primeiros princípios de todas as coisas, quaisquer que elas sejam, e onde e quando se dê qualquer ciclo de realidade.

Em sua máxima universalidade, a Máthesis ultrapassa e engloba a Metafísica, na medida em que esta trata apenas do Ser e as leis matéticas tratarão inclusive do Não-Ser, a Meontologia. Aliás, o Meon já era parte importante da Filosofia Concreta, obra anterior de Mário Ferreira dos Santos. Ali são feitas distinções capitais entre o Não-Ser absoluto e o Não-Ser relativo que serão retomadas e aprofundadas na Máthesis, coroamento da filosofia concreta.

A fim de realizar a tarefa própria da Máthesis será necessário utilizar um vocabulário próprio. De início, o filósofo brasileiro apresenta o conceito de termo. Usualmente, termo é o fim de algo, onde algo termina, tem seu fim. Na Máthesis, porém, termo terá um sentido de determinabilidade. Será o caráter de tudo que pode apresentar alguma definitização. Tudo aquilo que, em algum sentido, pode receber uma definitização é um termo

Mário Ferreira utiliza termo não como sinal de uma definição efetiva, de um limite dado e estabelecido, tal qual o sentido usual do conceito (término, limite, fim). Termo assume a conotação de um conceito disposicional, isto é, uma capacidade de realizar ou de receber algo. No caso, termo indica tudo quanto é capaz de receber alguma definitização, alguma determinabilidade. Tudo acerca do que pudermos assinalar alguma marca ou sinal será um termo.

O objetivo do filósofo, cremos, é formular um conceito que seja amplo o suficiente para abranger não somente o Ser, objeto próprio da Metafísica, mas também o Não-Ser, não compreendido pela mesma Metafísica. A importância do conceito de termo para o projeto filosófico de Mário Ferreira é capital, pois a sua abrangência determinará a possibilidade de expressar as leis matéticas na sua máxima universalidade. 

Isso fica claro quando o filósofo afirma que o Nada é um termo, na medida em que é uma definitização da ausência total de positividade. O Nada, assim, teria uma marca definidora, o que o tornaria um termo no sentido matético. Obviamente, o Ser também seria um termo, só que de definitização de positividade plena, de efetividade. Desse modo, termo seria mais geral do que Ser, e, por isso mesmo, abrangeria os objetos da Metafísica e os ultrapassaria, pois a sua universalidade alcançaria mesmo o conceito de Nada. 

Termo seria um conceito mais adequado do que coisa, dado que coisa geralmente indica alguma positividade efetiva, e seria impreciso considerar, por exemplo, o Nada como uma coisa no seu sentido usual. O conceito de termo é o resultado do esforço filosófico de conceber uma noção que expressasse não somente a positividade de algo, como o conceito de Ser, mas também assinalasse qualquer marca distintiva que permitisse alguma definitização, por menor e mais elusiva que fosse, mesmo em algo que implica a negação de toda a positividade (como o conceito de Nada). 

Tudo o que é capaz de receber ou apresentar alguma marca distintiva será um termo. Assim, por exemplo, anterioridade e posterioridade seriam dois termos capazes de alguma definitização, a saber, a relação de prioridade do primeiro sobre o segundo e de posteridade do segundo com relação ao primeiro. Do mesmo modo, princípio seria um termo, cuja marca é ser aquilo de onde a coisa inicia. Principiado seria aquilo que principia a partir do princípio, sendo a este sempre posterior.

O conceito de termo está intimamente ligado à noção de logos, assevera Mário Ferreira. Como dito acima, logos terá o sentido de princípio, lei e razão. Todo termo terá seu logos, pois se algo é capaz de definitização, terá uma expressão lógica, uma lei e uma razão. Por conseguinte, aquilo que não é capaz de definitização não possui um logos, sendo incognoscível por ser destituído da possibilidade de expressão de sua lei.

Há três outros termos que serão utilizados na Máthesis: presença, ausência e adsência. A presença é a positivação de algo, é algo que se põe ante alguma coisa. A ausência, obviamente, é seu antônimo, a falta de positividade. A adsência é mais que uma presença, e não implica nenhuma dualidade como presença implica aquilo que se põe ante outro. Aquilo que é adsente não tem princípio em outro, é imprincipiado, põe a si mesmo e tem seu fundamento em si mesmo. Este seria o princípio de todas as coisas, isto é, Deus. Ausência é não-ser, e presença e adsência são Ser. 

Matéticamente, diz Mário Ferreira dos Santos, o conceito de Ser é: "tudo quanto tem presença, adsência, e é positivo, e perdura nessa positividade, é ser." É interessante notar que o filósofo explicitamente não inclui em sua definição de Ser a potencialidade de existir. Conceitualmente, existir é se dar fora de suas causas, ou seja, possui existência propriamente aquilo que se efetiva e que perdura na realidade fora e independentemente daquilo que o causou. Ser seria tudo aquilo que tem potencialidade de existir, tudo o que pode existir. 

O ponto aqui é sutil e merece um comentário mais detido. Mário Ferreira conceitua o Ser como tudo aquilo que seja positivo, seja presente ou adsente. Mas o que acontece com as potencialidades? Tradicionalmente, a filosofia percebeu que aquilo que existe neste mundo foi em algum momento potencial. Retornando a Aristóteles, a potência (δύναμις) é aquilo que ainda não se efetivou, e o ato (ἐνέργεια) é aquilo que é efetivo, aquilo que está em exercício de sua natureza*. Não é difícil entender que as coisas que efetivamente existem pertencem ao Ser, pois tudo o que é efetivo tem ser, é algo.

Porém, aquilo que é potencial não existe ainda, mas, em certo sentido, não é um simples nada. A capacidade de cantar é uma potencialidade de todo ser humano. É uma realidade inegável, dado que muitos seres humanos cantam. Se algo existe efetivamente, então tinha potencialidade. Mas quando era somente uma potencialidade inscrita na natureza humana, a capacidade de cantar era ser ou não-ser? Dificilmente alguém diria que era um simples não-ser, já que isso implicaria que algo se efetiva vindo do nada. Então, tradicionalmente a filosofia incluiu a potencialidade ou a possibilidade no âmbito do Ser. Não é o ser efetivo, em exercício, todavia não é não-ser, um nada.

Ora, por essa razão, houve quem defendesse que Ser é tudo aquilo que pode existir, que pode se efetivar na realidade. Por conseguinte, aquilo que não pode existir não é Ser, é impossível, como é o caso daquilo que é autocontraditório (um triângulo quadrado, por exemplo). Mário Ferreira, entretanto, prefere conceituar o Ser como tudo aquilo que é positivo, que se dá, presente ou adsente, excluindo as potencialidades. A razão para essa escolha é sutil e filosoficamente interessante.

Obviamente, o filósofo brasileiro não concebe que as possibilidades sejam simples não-ser. Ocorre que ele quer preservar a realidade das possibilidades não efetivadas. Se se concebe o Ser como tudo aquilo que pode existir, então aquilo que já não pode existir não estará no Ser. O exemplo é dado pelo próprio Mário Farreira: digamos que Pedro pode estar de pé ou sentando daqui a uma hora. Ambas as situações são possíveis, mas só uma vai se realizar. Se daqui a uma hora Pedro estiver de pé, então a possibilidade de estar sentado foi definitivamente excluída da realidade efetiva. Pedro só pode estar daqui a uma hora efetivamente sentado ou de pé, não as duas coisas simultaneamente.

Note-se uma questão importante. Enquanto possibilidades, Pedro pode estar sentado ou de pé daqui a uma hora. Possibilidades contraditórias não são impossíveis enquanto são meras possibilidades. O que é impossível é que Pedro esteja ao mesmo tempo sentado e de pé naquele momento fixado daqui a uma hora. Estando de pé, Pedro não pode estar sentado. Estar sentado foi excluído das possibilidades de Pedro naquele momento. Isso significa que Pedro estar sentado naquele momento em que Pedro está de pé não é mais algo possível de existir. Ele pode, é claro, estar sentado nas horas seguintes, mas não no momento em que está de pé.

O fato de que Pedro escolheu naquele momento estar de pé e não sentado excluiu para sempre a possibilidade que ele tinha de estar sentado naquele momento. Aquela possibilidade de estar sentado naquele momento específico não se realizou e jamais vai se realizar. Sendo assim, dado que a definição de Ser tradicional é poder existir, aquilo que não pode mais existir é não-ser, um nada? A possibilidade que não se efetivou na realidade é um nada? Mário Ferreira acredita que não.

A fim de dar conta desse aspecto da realidade, o filósofo brasileiro cunhou o termo epimetéico. Epimeteu e Prometeu são dois personagens da mitologia grega que são interpretados simbolicamente por Mário Ferreira para significar duas dimensões das possibilidades. Epimeteu, segundo o que conta o mito, deu a todos os animais seus meios de sobrevivência e defesas naturais, mas quando chegou ao homem não tinha mais o que dar. Ele simboliza o fim das possibilidades. Prometeu, por seu turno, roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, concedendo a eles a inteligência que propiciou a sua sobrevivência. Simboliza, então, as possibilidades atualizáveis.

As possibilidades não realizadas não se tornam mero nada, mas figuram nesse aspecto epimetéico da realidade, enquanto as possibilidades ainda atualizáveis figuram como o aspecto prometeico dessa mesma realidade que Mário Ferreira designa como khaos, repositório de todas as possibilidades e abismo de indefinição. É mister distinguir o khaos do Nada absoluto. O Nada é a negação completa de qualquer positividade, de todo e qualquer ser. O khaos é o conjunto indefinido de todas as possibilidades definitizáveis, atualizáveis, que serão ou não atualizadas em algum momento.

Há, de um lado, o khosmos, o conjunto das coisas que se determinam, que se efetivam na realidade, e, de outro, o khaos o conjunto de possibilidades determináveis, capazes de se efetivar (o prometeico)e das possibilidades já não efetiváveis (o epimetéico). O khosmos é a ordem já dada e efetivada, o khaos é o caldo de indeterminação onde todas as possibilidades contraditórias estão contidas como meras possibilidades. O princípio de não-contradição só se aplica àquilo que já é algo (e que, portanto, não pode ser a sua negação simultaneamente e no mesmo sentido), mas não se aplica àquilo que é ainda potencial, possibilidades que não se contradizem justamente por ainda serem possibilidades.

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*"Aquilo que está em exercício de sua natureza" é a minha tradução/interpretação filosófica do conceito de "energeia", não a de Mário Ferreira dos Santos. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O sábio e a disciplina do assentimento em Marco Aurélio


"Ele (o sábio) quer aquilo que acontece, isto é, aquilo que quer a Natureza universal. Ele diz a verdade, interiormente e exteriormente, isso significa que, à ocasião de todas as representações que se apresentam ao assentimento do princípio diretor, ele se atém àquilo que é objetivo na representação, sem adicionar julgamentos de valor sobre coisas que não possuem valor moral."

PIERRE HADOT, La citadelle intérieure, p. 136

"Ser filósofo não é ter recebido uma formação filosófica teórica ou ser professor de filosofia, mas é, após uma conversão que opera uma mudança radical de vida, professar um modo de vida diferente daquele dos outros homens."(tradução minha)

PIERRE HADOT, La citadelle intérieure, p.25

A vida filosófica antiga é uma escolha existencial que engaja o homem inteiramente. O imperador romano Marco Aurélio (121-180 D.C.), um iniciado nos Mistérios de Elêusis, adotou o modo de vida filosófico pela influência do filósofo estóico Junius Rusticus, seu professor, amigo e conselheiro. Foi de Rusticus que o imperador recebeu o ensinamento do escravo-filósofo Epiteto, figura máxima do estoicismo. O imperador seguiu então os passos do escravo.

O filósofo e historiador da filosofia francês Pierre Hadot considera que as famosas Meditações de Marco Aurélio são exercícios espirituais que têm a função não de revelar os estados mentais de seu autor, mas sim de rememorar os princípios e os dogmas fundamentais da vida boa, reatualizando-os em sua alma. O imperador escreve precipuamente para ter sempre presente ao espírito os dogmas que compõem a regra de vida estóica.

Um dos princípios de Marco Aurélio assevera que não são as coisas externas que afetam a alma, mas são os juízos que alma faz sobre os acontecimentos que geram os sofrimentos. Só há o mal moral, isto é, o que depende de nós é como julgamos os eventos que não dependem de nós.

A disciplina do assentimento no imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio corresponde ao domínio que o sábio deve ter sobre seus juízos acerca das coisas sobre as quais ele não tem controle. Amiúde, o filósofo assevera que as coisas externas não têm poder sobre a alma. Isso significa que os acontecimentos externos não perturbam e não atingem o homem? Evidentemente, qualquer um sabe que somos constantemente abalados interiormente pelas vicissitudes e pelas alegrias da vida. 

Ocorre que o sábio não pode e não deve ser como os outros homens. O sábio também é afetado por esses eventos externos até certo ponto. Se um urso o ameaça, ele recuará instintivamente, tal qual o homem comum. A diferença não está nessa reação de medo ou de espanto que se impõe ao indivíduo de forma imperiosa, sem que haja possibilidade de qualquer controle consciente. A reação é imediata, mas tão logo ela tenha passado, cabe à parte mais alta da alma, o "princípio diretor" (hegemonikon) ou razão, examinar o conteúdo objetivo daquele acontecimento. A impressão (phantasia ou, como alguns traduzem, "representação") deixada na alma pelo acontecimento deve ser avaliada para que se defina um juízo adequado sobre ela.

A fim de que haja um juízo, é mister que haja um critério de julgamento. O critério estóico é simples: "só há um bem: o bem moral; só há um mal: o mal moral". Isto é, aquilo que nos acontece proveniente dos eventos externos segue leis que não estão sob nosso controle e, por isso, não são bons ou ruins em si mesmos. São indiferentes. Por exemplo, a doença não é em si mesma boa ou ruim. Ela é um acontecimento natural, regido por leis naturais que têm seu sentido e sua justificação últimas na Razão que permeia o Cosmos como um Todo ordenado. Por isso, o único juízo adequado acerca das impressões desses eventos externos é afirmar que elas são indiferentes, nem boas e nem ruins.

Todavia, aquilo que está sob nosso controle é o juízo que fazemos sobre as coisas sobre as quais não temos domínio. De novo, a doença não é boa ou ruim, mas depende inteiramente do homem se ele formulará ou não um juízo adequado sobre esse acontecimento. Os homens sofrem menos pelas vicissitudes do que pelos juízos de valor que fazem sobre essas vicissitudes. Afirmar que esses eventos fora de nosso controle são bons ou ruins é adicionar um juízo de valor que não pertence a eles enquanto entes independentes de nós.

Não podemos escolher aquilo que nos acontece, mas podemos escolher como os julgamos. Essa é a cidadela interior da qual fala o filósofo Pierre Hadot, intérprete do pensamento de Marco Aurélio. Há no homem uma cidadela inexpugnável, livre e capaz de julgar adequadamente as coisas sobre as quais ele não possui qualquer controle. Essa fortaleza é a sede de nosso poder moral, onde se decidem as únicas coisas que são realmente boas ou más, os juízos, posto que estão sob nosso controle.

Esse centro tem a escolha livre de se identificar com a Razão universal, norma transcendente da moralidade, e livrar-se da influência dos desejos e das vontades que contaminam os juízos humanos sobre a realidade. Unido à Razão, o hegemonikon, o princípio diretor, é a fortaleza inexpugnável na qual o sábio habita em segurança, pois tudo é julgado adequadamente segundo o critério que distingue o que depende e o que não depende do homem.