domingo, 10 de julho de 2016

Notas curtas sobre a natureza do símbolo



"E se tu suprimes isso que está entre o Imparticipável e os participantes – ó qual vazio! - tu nos separas de Deus, destruindo o liame e estabelecendo aí um grande e intransponível abismo. (...) Pois todo símbolo ou deriva da natureza do objeto do qual é símbolo ou pertence a uma natureza inteiramente diferente. Assim, quando o Sol está prestes a nascer, o amanhecer é um símbolo natural de sua luz e, de modo similar, o calor é um símbolo natural do poder incinerante do fogo.
(...) Assim, o símbolo natural sempre acompanha a natureza que fornece o seu ser, pois o símbolo é natural a essa natureza. Já para o símbolo o qual deriva-se de uma outra natureza, tendo sua própria existência, é totalmente impossível para ele ser constantemente associado com o objeto que simboliza, pois nada o impede de existir antes ou depois de seu objeto, como qualquer realidade que possui sua própria existência. Em suma, o símbolo que não possui uma existência independente não existe nem antes e nem depois de seu objeto, pois tal é impossível."

GREGÓRIO PALAMAS, Tríadas, III, I, 14


"Estamos numa praia. Olhamos o mar, e vemos uma mancha branca no horizonte. 'Um barco', diz um. 'Não', responde outro, 'uma nuvem'. 'Qual', afirma um terceiro, 'deve ser a fumaça de um navio'. 'É uma onda muito alta', propõe um quarto. Em tal caso, dá-se uma fraca acomodação devido à distância e à dificuldade dos esquemas se acomodarem ao fato. Há apenas uma nota que pode ser de barco de de vela, de onda, de fumaça, de nuvem, mas por si só não é suficiente para dar uma certeza, uma inteligência do fato. Os quatro assimilaram mais do que acomodaram, pois assimilaram a esquemas vários. Portanto, os quatro realizaram uma ação simbólica."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Tratado de Simbólica, p. 23

O símbolo é toda e qualquer realidade conhecida que ilumina uma realidade desconhecida - ou diretamente incognoscível - por meio de vínculos analógicos. Em sua obra Tratado de Simbólica, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos afirma que os antigos gregos davam o nome genérico de symbolon a todo sinal convencionado, assim como as insígnias dos deuses, os emblemas, os presságios, augúrios e, inclusive, as convenções internacionais e comerciais que se estabeleciam na época.

A palavra símbolo – σύμβολον - é entendida por Mário Ferreira dos Santos como significando "aproximação", "ajustamento", "encaixamento". Etimologicamente, significa "lançar junto", "arremesso".Tal sentido indica que os gregos tomavam como símbolo indistintamente tanto o símbolo propriamente dito como o sinal.

Formal e univocamente, é possível perceber que o que caracteriza sinais e símbolos é a referência a outro, o apresentar-se no lugar de outro.O símbolo e o sinal, ambos, substituem algo, referem-a a algo que não eles mesmos.

Ainda segundo Mário Ferreira dos Santos, todo símbolo é um sinal, pois sinal é tudo aquilo que aponta outra coisa com a qual tem relação natural ou convencional. Estando o símbolo no lugar de outra coisa, então ele é um sinal.

Contudo, se todo símbolo é sinal, nem todo sinal é símbolo. Este, o símbolo, é uma espécie do gênero dos sinais. O que distingue especificamente o símbolo é o fato de que, enquanto o sinal pode ser apenas convencional ou arbitrário, o símbolo não o pode ser.

O símbolo sempre guarda alguma semelhança de ordem analógica com o simbolizado. Ou seja, há sempre uma semelhança real entre o símbolo e aquilo que ele simboliza. O símbolo é um sinal com a repetição de alguma nota própria do simbolizado.

O sinal é natural, quando representa algo naturalmente, ou arbitrário, quando instituído pelo arbítrio humano. O gemido, por exemplo, é sinal natural da dor. O ramo de videira na porta da taberna, que indica que ali vende-se vinho, é arbitrário. Entre sinal e sinalizado não há a participação de uma perfeição. Mas entre símbolo e simbolizado essa participação é imprescindível, pois é a participação que dá a diferença específica do símbolo.

O filósofo francês Gilbert Durand, autor de "L'Imagination Symbolique" afirma que os sinais não são mais do que subterfúgios de economia que retornam a um significado que poderia estar presente ou verificado. Da mesma forma, uma palavra, as iniciais, um algoritmo substituem economicamente uma longa definição conceitual. Por essa razão, não sendo mais que meios de economizar as operações mentais, nada impede que os sinais sejam escolhidos arbitrariamente.

Durand distingue também símbolo de alegoria. Embora sejam ambos sinais, a alegoria refere-se a abstrações, especialmente qualidades espirituais ou do domínio moral dificilmente apresentáveis, por assim dizer, em "carne e osso". Por exemplo, a idéia de justiça pode ser representada pela figura de um personagem punindo ou absolvendo, com as tábuas das leis, martelo, balança, etc.

A alegoria é a tradução concreta de uma idéia difícil de alcançar ou expressar de modo simples. As alegorias figuram concretamente uma parte da realidade que eles significam. O todo é representado por alguma de suas partes. A alegoria, para P. Godet, parte de uma idéia abstrata para chegar a uma figura, enquanto que o símbolo é de início e por si mesmo figura e, como tal, fonte, entre outras coisas, de idéias.

Retornando a Mário Ferreira dos Santos, o filósofo define o símbolo como "tudo quanto está em lugar de outro, sem acomodação atual à presença desse outro, com o qual tem, ou julgamos ter, qualquer semelhança (intrínseca por analogia), e por meio do qual queremos transmitir ou expressar essa presença não atual no que indicamos."

O símbolo apresenta uma série de características próprias:

I) Polissignificabilidade: aptidão dos símbolos a referirem-se a mais de um simbolizado. Um mesmo símbolo pode simbolizar mais de um simbolizado, como a água que simboliza tanto a virtude regeneradora e criadora quanto o perigo da degeneração no amorfo e a morte;

II) Polissimbolizabilidade: um simbolizado pode ser referido por vários símbolos. Deus, por exemplo, pode ser simbolizado como o Sol tanto como pelo centro de uma circunferência;

III) Gradatividade: o símbolo exibe uma escalaridade de significabilidade a um simbolizado. Há símbolos melhores e piores, símbolos que têm mais ligação analógica com o simbolizado que outros;

IV) Fusionabilidade: capacidade de o símbolo fundir-se com o simbolizado. Ocorre frequentemente em religiões que o símbolo da divindade torne-se ele mesmo o objeto de culto e substitua o simbolizado;

V) Substituibilidade: os símbolos que referem-se a um mesmo simbolizado permitem a sua mútua substituição. É  possível passar de um símbolo a outro quando o simbolizado é o mesmo;

VI) Função simbólica: enquanto o sinal tem uma função meramente indicativa, o símbolo tem uma função analógica. Portanto, o símbolo oferece uma via explicativa.

O último ponto exige um aprofundamento. O símbolo possui uma relação não-arbitrária em algum nível com o simbolizado. Se o símbolo revela algo do simbolizado por meio de si mesmo, só o poder fazer se houver alguma ligação entre ele e o simbolizado. Por essa razão o símbolo é informativo.

Resta esclarecer de que natureza é essa relação entre simbolizado e símbolo. É afirmado na filosofia tradicional que os termos e os conceitos admitem três tipos de significações:

Univocidade: quando o termo é aplicado a diversos seres com a mesma significação em todos os casos. Como quando dizemos "animal" no mesmo sentido aplicado tanto a cachorro quanto a homem. O cachorro é tão animal quanto o homem. No que tange à animalidade, ambos têm as mesmíssimas características essenciais, o que permite que o mesmo termo seja usado nos dois casos sem nenhuma diferença de significado;

Equivocidade: quando o termo é aplicado a diversos seres com significações totalmente diferentes em todos os casos. Por exemplo, usamos "manga" para designar uma fruta tanto quanto uma parte de uma camisa. A coincidência é meramente na grafia do termo, pois não há nenhuma semelhança entre manga de camisa e manga fruta. O mesmo termo designa significados completamente diferentes;

Analogia: quando o termo é aplicado a diversos seres com significações que não são nem totalmente idênticas e nem totalmente diferentes. A analogia é, portanto, síntese do semelhante e do diferente.

Por exemplo, quando dizemos que o leão é o rei da floresta, fazemos uma analogia. O leão é o rei da floresta porque, assim como o rei, o leão exerce domínio único e inconteste sobre um território. Afirmamos tais características semelhantes sem descurar das diferenças entre os entes da analogia. Obviamente, o leão não é rei no sentido de pertencer a uma nobreza, de usar coroa ou de governar por direito divino.

A relação entre símbolo e simbolizado é de ordem analógica e não unívoca e menos ainda equívoca. Quando simbolizamos Deus pelo Sol, não afirmamos que Deus seja um astro, nem que tenha raios ou emita calor, mas usamos o Sol para afirmar o caráter luminoso e iluminador de Deus, sua virtude criadora e mantenedora da vida, etc. 

O símbolo, portanto, indica com sua formalidade, em estado limitado, a referência analógica a uma forma em estado superior ou absoluto. Por isso, o símbolo é hierarquicamente inferior ao simbolizado.

Além disso, o símbolo é vivo. Ele pode morrer, assim como pode ressuscitar. A vida de um símbolo depende de sua significabilidade. À proporção que essa significação é clareada, que a visão do simbolizado torna-se mais nítida, o símbolo começa a desaparecer, como acontece com certos símbolos religiosos quando perscrutados pela mente analítica que busca formulações precisas das doutrinas.

O símbolo é mais vago e mais aberto que o dogma. Este pretende-se uma formulação clara e precisa de uma doutrina acerca de um determinado ente. No nível simbólico, várias formulações são possíveis justamente por causa da polissignificabilidade do símbolo. E muitas dessas formulações parecerão frontalmente contraditórias entre si.

A dimensão simbólica é especialmente importante no mito e na religião. Para o historiador das religiões Mircea Eliade, o símbolo prolonga a hierofania, a manifestação do sagrado. Tudo aquilo que não é diretamente consagrado por uma hierofania torna-se sagrado por causa de sua participação em um símbolo. Toda uma série de objetos e de signos simbólicos devem seu valor e sua função sagrada ao fato de integrarem-se na epifania de uma divindade.

Mas isso não é verdade para todos os símbolos. Há aqueles que precedem a forma histórica da divindade, como os símbolos vegetais, a Lua, o Sol, a luz, certos desenhos geométricos (cruz, pentágonos, círculos, suástica, etc.). Alguns desses símbolos foram anexados pelas divindades, outros mantiveram certa autonomia com relação aos deuses. Há ainda a passagem de um símbolo de uma divindade à outra.

Contudo, o símbolo não somente prolonga uma hierofania, mas ele mesmo é uma hierofania. Isto porque o símbolo revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra manifestação poderia revelar. O desenho simbólico de uma divindade é uma epifania da própria divindade e guarda seu poder.

Enquanto a hirofania necessariamente instaura uma ruptura entre o sagrado e o profano, o símbolo realiza a solidariedade permanente entre o homem e o sagrado. O símbolo transporta o homem, onde quer que esteja, para a zona sagrada simbolizada. Uma cruz pendurada ao pescoço é um acesso contante à esfera do sagrado, onde quer que o devoto vá.

O símbolo trai a necessidade que o homem tem de prolongar indefinidamente a hierofanização do mundo. O símbolo revela, em quaisquer situações, a unidade fundamental de muitas zonas do real, ainda que estejam separadas como sagrado e profano.

A função sagrada do símbolo é dupla. Por um lado, o símbolo prolonga a hierofania, tornando os objetos coisa diferente daquilo que aparentam cotidianamente. Por outro, enquanto signos de realidades transcendentes, os símbolos anulam os limites naturais dos objetos, integrando-os em um vasto sistema de relações.

Todo simbolismo tende e aspira a integrar e a unificar o maior número possível de zonas e de setores da experiência e também a identificar a si o maior número de objetos, situações e modalidades. O simbolismo aquático, por exemplo, tende a integrar tudo aquilo que é vida e morte, como dito anteriormente.

Essa unificação, contudo, não equivale a uma confusão. O simbolismo permite a passagem, a circulação, de um nível a outro da realidade, de um modo a outro, integrando todos esses níveis e todos esses planos sem os fundir. O símbolo tem uma tendência a coincidir com o todo, pois integra o todo da realidade em um sistema, reduzindo a multiplicidade a uma situação única, de maneira a torná-lo o mais transparente possível.

4 comentários:

Rogério disse...

"Quando simbolizamos Deus pelo Sol, não afirmamos que Deus seja um astro, nem que tenha raios ou emita calor, mas usamos o Sol para afirmar o caráter luminoso e iluminador de Deus, sua virtude criadora e mantenedora da vida, etc. " Prof., aqui eu tenho uma dificuldade. O sr. selecionou um aspecto na exclusão de outros que não precisariam ser excluídos ao meu ver. E por que? Deus-símbolo tanto poderia ser visto sob o aspecto astral, raiado ou caloroso, porém astro, raios e calor seriam outra coisa não literal, outros símbolos. Isso em nada prejudicaria o preceito de não "descurar das diferenças entre os entes da analogia."

A dificuldade é a seguinte: qual o limite, se há limite, para as analogias, ou ela vai até onde a própria potência poética de quem as faz alcança? Só para ensaiar uma suspeita de resposta, os entes simbolizados requerem certa obediência para serem utilizados(a girafa e o seu pescoço), mas bem obedecida a sua imagem, não é a partir daqui que a coisa fica ilimitada?

Obrigado, eu estava precisando desse texto!

Anônimo disse...

Valeu. Muito bom.

Rogério da Costa (Oleniski) disse...

Olá Rogério!

Sim, de fato, não é necessário excluir uma coia e privilegiar outra. Só o fiz para efeito de exemplificação de uma interpretação literal do símbolo que desfiguraria a analogia correta. Certamente, "raio" pode ser um símbolo, mas somente se não for interpretado literalmente. Era isso que queria mostrar.

Quando aos limites do símbolo, em certo sentido há limites e e em outro não há limites. Não há limites no sentido em que qualquer coisa pode ser símbolo de alguma outra realidade. Mas há limite no sentido de que não é toda coisa que pode ser símbolo de qualquer coisa.

A própria lógica da analogia imprime esse limite. Se todas as coisas podem ser símbolos de alguma outra realidade, isso não significa que qualquer coisa simbolize qualquer coisa. Isso seria sinal e não símbolo. Posso sinalizar qualquer coisa com qualquer coisa, figura, imagem, etc. Não posso é simbolizar qualquer coisa com qualquer coisa. Os limites são aqueles da semelhança estrutural entre símbolo e simbolizado.


Abraços!

Unknown disse...

belo texto.