terça-feira, 3 de outubro de 2023

Meister Eckhart, a alma e a unicidade divina

"Posso adquirir a sabedoria, e posso também perdê-la. Mas tudo aquilo que está em Deus, é Deus. E isso não pode escapar-Lhe."

MEISTER ECKHART, Sermão 3

O místico, teólogo e frade dominicano alemão medieval Meister Eckhart, em seu Sermão 2, interpreta simbolicamente o texto evangélico de Lucas 10, 38 segundo o qual Jesus havia subido a uma aldeia e ali havia sido recebido por uma mulher que era uma virgem. A virgindade designa o ser humano cuja alma é tão vazia de imagens estrangeiras quanto vazio seria antes de haver existido.

O tema do vazio é caro a Eckhart e se refere tanto a Deus quanto à alma quando unida àquele mesmo fundamento último, uno e indizível. Em Sua essencialidade simples, Deus é puro vazio, não-ente, e o homem, na medida em que mantém-se apegado a qualquer coisa que não seja Deus, mostra não haver ainda alcançado a Gelassenheit, o desapego absoluto no qual todas as coisas são transcendidas no vazio divino. A alma é ali tão vazia como era antes mesmo de sua própria existência.

A questão é saber como um homem pode estar tão desapegado de tudo quando está neste mundo cercado de entes. Para Eckhart nada há aí de impossível, pois não se trata de negar as coisas depois que a alma e elas vieram à existência. Bem diferente disso, a Gelassenheit significa retornar intimamente ao seio indiviso de Deus, a raiz de todas as coisas, antes que todas as coisas tomassem existência. Em outros termos, o vazio de Deus não nega as criaturas, mas, ao contrário, é o seu fundamento e as contém como seu princípio derradeiro.

Nesta vida é possível viver de tal modo que não se considere como propriedades quaisquer das nossas ações realizadas. E, mais ainda, é possível viver na eternidade, lá mesmo onde indizivelmente não há outra coisa senão o Filho sendo gerado eternamente pelo Pai. A virgindade é, assim, a afirmação exclusiva de Deus que, por assim dizer, reabsorve todas as criaturas em Si mesmo no próprio ato de Seu aparecimento. 

Dito de um modo filosófico-metafísico, o Ser só "aparece" no desaparecimento dos entes. Usando uma analogia, aquele que tem diante de si uma paisagem só pode contemplá-la inteiramente se não enxerga esta árvore ou aquela pedra. Isto é, o Todo só se encontra quando a parte desaparece. Se o foco permanece nisto ou naquilo, a paisagem se perde como totalidade. Mas se isto e aquilo "desaparecem" como objetos de foco, a paisagem "aparece" como totalidade em que tudo está nela contido, ainda que de forma não distinta ou separada.

O vazio de Deus não é infrutífero, entretanto. Não é o Nada da negação absoluta de todo ser real ou possível. O vazio da alma não pode, por conseguinte, ser ele mesmo infrutífero. Eckhart ensina que é por isso que a virgem da passagem evangélica é chamada de mulher. Os frutos da gravidez dessa mulher são as ações realizadas pela alma vazia sem nenhuma pretensão de propriedade, dado que advém exclusivamente da vontade divina. O fruto máximo é, obviamente, o Cristo, que é gerado pelo Pai ali naquele fundo indizível e insondável de Deus.

Eckhart reafirma em seguida sua doutrina de que "há na alma humana uma potência que não é tocada nem pelo tempo, nem pela carne, que emana do espírito  e permanece no espírito e é absolutamente espiritual." Surpreendente ensinamento segundo o qual há na alma algo mais alto ou mais profundo que a alma e suas potências mais humanas como o intelecto e a vontade! O espírito, spiritus, Geist em alemão, designa a mens de Agostinho, geralmente traduzida como alma ou mesmo mente. 

Na metafísica de Eckhart, mens ou Geist adquire o significado de um fundo na alma que não é tocado por nada, fora das variações da vontade ou das intelecções. É nessa potência abscôndita que se encontra o Deus Absconditus, onde o Pai eternamente engendra o Filho que é Ele mesmo. Nesse fundo indizível e inexprimível anterior a todas as diferenciações, alma e Deus se encontram em um Grund, ground, fundamento. 

Filosoficamente, esse fundo pode ser designado mais precisamente como Urgrund, fundamento primeiro ou originário de todas as coisas. O Urgrund só se encontra quando todas as coisas desaparecem, inclusive a própria alma naquilo que ela possui de cambiante e de determinado. Eckhart afirma que se só por um instante a alma contemplasse Deus como Ele é nesse fundo, a alegria seria tanta que, ainda que a alma fosse condenada a uma vida de sofrimentos mais atrozes do que quaisquer outros infligidos na história a um homem, ela suportaria tudo até o fim.

Sem dúvida, o que seriam os sofrimentos humanos diante da beatitude divina? Ivan Karamazov pode querer devolver o seu ticket para o Paraíso se isso implicar no sofrimento de tantos inocentes. O problema é que não existe comensurabilidade entre o temporal e o eterno, de modo que o instante que não perdura, e que não pode perdurar entre dois agoras sob pena de tornar-se tempo, é inimaginável (imaginação é proveniente dos sentidos). 

Comumente, podemos, no máximo, inteligir, compreender o significado do conceito de instante que caracteriza a eternidade. Se o experienciássemos em um só instante, todo o tempo desapareceria e, com ele, todo o câmbio que gera a possibilidade do sofrimento. Eckhart, contudo, não se limita a dizer que os sofrimentos, por mais atrozes que sejam na dimensão temporal, nada são quando tomados na eternidade divina. 

Mesmo que Deus, depois de haver permitido a um homem contemplá-Lo nesse instante eterno, negasse a ele em seguida o Reino dos Céus, tal homem teria recebido maior salário por todo o seu sofrimento. O homem unido a Deus nesse nunc aeternitatis, nesse agora eterno, jamais envelheceria, pois o instante em que Deus cria o primeiro homem e aquele em que o último homem desaparece coincidem perfeitamente no Senhor. E mais, ele nunca sofreria ou se abalaria com nada, e teria nele mesmo todas as coisas de modo substancial.

O significado dessas declarações surpreendentes é mais simples do que parece à primeira vista. Se o homem vive unido a Deus nesse Urgrund, nesse fundamento originário, ele e Deus são uma só realidade. Isto é, nesse fundo comum anterior a toda diferenciação, tudo é Um, nada há de distinto e de determinado (aquilo que tem termo, fim, limite). Ali, no fundo indizível onde Deus é puro Um, todas as coisas estão contidas substancialmente, ou seja, tudo o que pode e o que não pode existir está unido indistintamente naquele que é o único que realmente existe no sentido mais excelso do Ser. 

A pouca substancialidade que os entes possuem, o que caracteriza a sua indigência ontológica, eles a recebem exclusivamente de Deus. Nenhum ente possui o poder de existir como uma propriedade de sua essência. Consequentemente, em Deus convivem todas as possibilidades antinômicas justamente porque elas ainda não se realizaram, não se tornaram reais no mundo temporal. O homem unido a Deus nesse fundo é ele mesmo o próprio Deus, e possui tudo o que está contido na onipotência divina.

Regressar ao fundamento originário, por assim dizer, é desaparecer para si mesmo, é despojar-se de seu próprio ser limitado, tênue e diminuto, para "tornar-se" o próprio Deus na Sua unicidade suprema que não admite qualquer possibilidade de um outro. Como Eckhart adverte na sua interpretação simbólica da passagem evangélica, nada impede que essa realidade seja vivida neste mundo, em meio aos entes que nos cercam e que parecem esconder a face divina. 

O homem liberto em vida (jīvanmukta) é exteriormente idêntico a qualquer homem que come e bebe, acorda e dorme, e vive entre os outros homens. Os entes só são obstáculos para aquele que os toma ou quer tomar para si como coisas que lhe são próprias. Não somente os objetos externos, mas também seu corpo e aquilo que lhe é interior, como a vontade própria e até mesmo o fato de sua existência. Nada nos pertence, até mesmo o nosso ser. Reconhecido isso, retorna-se ao fundamento originário nesta vida, e se vive como se não se vivesse mais.

"Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo", diz o Cristo. O si mesmo a ser negado é, segundo Eckhart, muitíssimo mais radical (radix, "raiz" em Latim) do que a renúncia ao pecado e aos desejos desordenados. É uma renúncia a tudo que comumente pensamos ser nosso, inclusive, e mais fundamentalmente, o nosso próprio ser como um suposto ente independente e que existe por si mesmo. "Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, este a salvará". O homem só salva a sua vida perdendo o seu ser no Um divino, e, desse modo, tornando-se o próprio Um.

Eckhart prossegue dizendo que essa potência do espírito que ele por vezes adjetivou como separada e livre, luz do espírito, pequena fagulha, na verdade não é isso e nem aquilo, é livre de todo nome e destituída de toda forma. "É tão completamente una e simples quanto Deus é uno e simples",* afirma o místico alemão. Tão acima está de "todo modo e de todas as potências", ela que é o Um, que nenhum modo ou potência, nem o próprio Deus a pode contemplar. 

Novamente, uma afirmação chocante é apresentada. Sim, compreende-se que todo o modo e toda a potência, na medida em que são realidades distintas e delimitadas, não podem participar do ens realissimum que é igualmente ens simplissimum. Não obstante, o próprio Deus não pode contemplar Sua própria simplicidade? A fim de compreender Eckhart, é necessário recordar que a beatitude se encontra justamente naquele fundo indizível "anterior" à própria geração eterna do Verbo. 

O belíssimo prólogo do Evangelho de João diz: "No princípio (ἀρχῇ, arkhêi) era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez". Há uma plena comunidade de natureza (ὁμοούσιος) entre Pai e Filho desde toda a eternidade. Por outro lado, há diferença entre as hipóstases, as Pessoas divinas, na medida em que o Pai não é o Filho. E foi pelo Verbo que tudo que há foi criado. 

A geração do Filho não é uma criação ex nihilo, a partir do nada. As criaturas é que foram tiradas do nada para o ser. O Verbo, ao contrário, está em Deus desde toda a eternidade, ou seja, atemporalmente. Não houve um momento no qual o Filho não fosse coetâneo ao Pai justamente porque em Deus não há momentos, variações de antes e depois. Então, quando Eckhart diz em outro escrito que quer conhecer Deus antes que Deus seja Deus, ele não está dizendo que Deus tenha mudado de condição, como se houvesse passado de não-Deus a Deus.

Similarmente, mas não de modo idêntico, o Intelecto (νοῦς) emana do Uno (ἓν), nas Enéadas de Plotino, desde toda a eternidade. Não há nenhum tipo de mudança ou de movimento, como se algo saísse do Uno após estar contido nele. O Uno é o fundamento da realidade, isto é, é o princípio que sustenta todas as coisas, é absolutamente coetâneo àquilo que ele fundamenta. Usando uma analogia, os fundamentos de um prédio são simultâneos ao prédio, dado que sem eles nenhum dos andares que compõem o edifício podem permanecer onde estão.

Todavia, em certo sentido, Deus é Deus somente para as criaturas, enquanto seu Criador. A relação Criador-criatura só existe na criatura. É o ser criatural das coisas que "torna" Deus Criador, pois, em Sua essência divina, nada exige que Deus crie o que quer que seja. Estritamente nesse sentido, Deus se torna Deus somente na Sua relação causal com as criaturas. Não se trata, de novo, de uma mudança temporal em Deus, como se em algum momento Ele não fosse o Criador. 

Trata-se apenas do fato de que os termos Criador e Deus não designam a natureza insondável de Deus, mas tão somente a relação que nós, criaturas, temos com Ele. Deus é Deus para nós, não para Ele mesmo. Quando Eckhart deseja encontrar-se em Deus antes que Deus fosse Deus, ele deseja penetrar na puríssima simplicidade divina em si mesma, onde não há nenhuma relação ou distinção. Na tradição apofática neoplatônica cristã que remonta a Dionísio Areopagita, até o nome Deus não cabe na excelsa e insondável natureza divina. 

Dito de outro modo, até Deus pode ser um obstáculo para se conhecer Deus. Temos agora a chave  para compreender o que Eckhart ensina ao afirmar que esse fundo indizível do divino não pode ser acessado por nenhuma potência ou modo, e que nem o próprio Deus a pode contemplar segundo o modo das Pessoas. Se as Pessoas da Trindade são diferenciações, apesar de possuírem igualmente a mesma natureza divina, então a penetração no fundo, no Urgrund, só pode se dar quando Deus "deixa de ser" Trindade. 

Eckhart é cristão, não está dizendo que a Trindade seja diferente de Deus. O que ele está querendo expor é que a natureza divina, a divinitas, que é a mesma nas três Pessoas, é simplíssima e sem diferenças: "eis a razão pela qual, se Deus quiser alguma vez lançar ali um olhar, isso custará necessariamente todos os Seus nomes divinos e Suas propriedades pessoais". O mestre alemão não está insinuando nenhuma mudança ou ignorância em Deus. Ele está usando a linguagem humana, apropriada aos entes limitados desse mundo, para expressar a intimidade ilimitada da vida divina.

Obviamente, Deus conhece a Si mesmo do modo mais perfeito possível desde toda a eternidade. O místico alemão jamais negaria isso. Ocorre que a contemplação de Eckhart desce, atravessando toda e qualquer diferenciação, inclusive a das Pessoas da Trindade, para alcançar o fundo originário da essência divina, esse "Um sem modo ou propriedade". E é nesse fundo simplíssimo que a alma e Deus se encontram como que em um terreno comum. 

No Sermão 3, Eckhart repete o tema da nobreza da alma ao asseverar que os mestres do passado não encontravam nenhum nome para designá-la. O seu fundo se encontra lá onde Deus "ainda" não se tornou Deus, onde a verdade e a cognoscibilidade "ainda" não se manifestaram, onde não há emprego de quaisquer nomes. Deus é uma fixação (fixatio) à Sua pura essencialidade, que nada admite de externo. Deus é uma "insistência em si mesma, onde não há isto ou aquilo. Pois tudo o que está em Deus é Deus."

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* Na linguagem vedantina, neti neti (nem isso, nem isso), amurtah (sem forma, sendo que "nome e forma", nama-rupa, são as características essenciais do mundo fenomênico). A alma é tão una e simples quanto Deus é uno e simples, Atman Brahman são uma só e a mesma realidade. O fundamento último, Brahman, por sinal, é o Um sem segundo.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com) 

2 comentários:

Mauricio Santos disse...

Ola tenho um questão Se Deus é o Numeno aquilo que está na base do fenômeno ...então Deus é a Materia e Deus também é o espírito (mente) que anima a matéria ? O que vc acha desse pensamento? ...Estou muito errado?...Obrigado pelos textos sempre muito bons para apreender

Anônimo disse...

Entendo que essa divisão mente corpo seja da modernidade.