domingo, 9 de agosto de 2015

Marcel Proust e a substancialidade do ser amado




"Não apenas Albertina era uma sucessão de momentos, como eu também. O amor que eu lhe dedicara não fôra simples: à curiosidade do desconhecido, acrescentara-se um desejo sensual, e, a um sentimento de doçura quase familiar, ora indiferença, ora ciúme furioso. Eu não era um homem só, mas o desfile, hora a hora, de um exército compacto onde havia, conforme o momento, homens apaixonados, indiferentes, ciumentos - ciumentos dos quais nem um só o era da mesma mulher.  E, sem dúvida, era daí que um dia viria a cura que eu não desejava. Na multidão, esses elementos podem, um a um, sem que o percebamos, ser substituídos por outros, que outros mais, por sua vez, eliminam ou substituem, de modo tão perfeito que, por fim, se consumou a mudança, inconcebível se se tratasse de uma pessoa única."

MARCEL PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, A Fugitiva, trad. Carlos Drummond de Andrade, p. 56)


O ciclo de romances Em Busca do Tempo Perdido do escritor francês Marcel Proust apresenta um rico leque de temas e de tramas ao longo de toda a extensão de seus sete volumes. Em meio a tanta riqueza, percebe-se, contudo, a ligação frequente entre alguns de seus temas centrais, a saber, o tempo, o amor, o ciúme e a ontologia. Em especial, o volume A Prisioneira apresenta essas relações por meio da narrativa do bizarro aprisionamento de Albertine na casa de seu amante, cujas consequências são descritas no volume seguinte, A Fugitiva.

O encarceramento de Albertine é uma tentativa, por parte do Narrador (cujo nome, Marcel, é enunciado somente uma vez em toda a extensão do ciclo), de fazer surgir uma “essência de Albertine”. Se, como parece implícito na obra proustiana, os seres não têm uma essência, uma substancialidade a qual se possa conhecer de forma definitiva, mas ao contrário, eles são uma seqüência de “eus” sempre novos que se substituem segundo o tempo, a única saída para se possuir o ser amado seria o seu encarceramento físico. 

Ao restringir seu "espalhamento" dos "eus" no tempo e no espaço, Marcel, o Narrador, pretende, criar pela força uma Albertine una e substancial, um ser que dure, que seja o mesmo, inalterado, pelo curso do tempo. E isso tem conseqüências para o próprio amor que inspirou tão paradoxal tentativa

Na tradição realista ocidental estabeleceram-se certas idéias acerca da fixidez e substancialidade dos seres.Tais idéias e noções provêm da observação do senso comum, como nos diz Pe. Hugon em seu Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino

"A experiência interna descobre em nós uma série de fenômenos (sensações, pensamentos e vontades) que começaram e que desaparecem, enquanto o eu subsiste; a experiência externa mostra-nos no universo uma porção de modificações que se sucedem, sem mudança no fundo substancial, seja nos corpos, seja nas plantas, seja no animal e no homem."

A idéia é clara: as coisas mudam com o tempo, mas o que muda é acidental, permanecendo inalterado o que é essencial. E o objeto próprio da inteligência humana é a essência abstraída das condições materiais. Conheço somente se conheço a essência. 

Um mundo de seres que não mudam essencialmente, permanecendo os mesmos no fluxo inescapável do tempo e tendo uma essência capturável, é o melhor dos mundos imagináveis. O contrário disso é um mundo aflitivo e sem segurança, onde os seres (e nós mesmos!) nada mais são do que mudança incessante. 

O mundo de Proust, em boa medida, aparenta ser um mundo onde os seres não apresentam uma essência determinada e capturável. Não é que nos modifiquemos em certos aspectos com o tempo, permanecendo os mesmos essencialmente. Não, nós não somos jamais os mesmos. Somos outros. Não passamos pela vida e pelo tempo como uma árvore que resiste ao fluxo de uma enchente. Na verdade, não passamos. Morremos. 

Um homem só aparentemente se recupera de um amor, supera sua dor. O homem que amou já não é o mesmo. O amor morreu junto com o homem que o sentia. Os acidentes são tão passageiros quanto a “substância” que os sustenta. 

A fim de tratar das relações entre os seres e o tempo em Proust, a idéia que parece mais adequada é a de “espalhamento”. Os seres não atravessam o tempo sendo eles mesmos, mas, diversamente, estar no tempo é ser/estar espalhado por diversos pontos do tempo e do espaço. Momentos espaço-temporais que nascem e morrem, únicos e irrepetíveis, nenhum deles representando a “essência” daquele ser. 

Pontos que se sucedem, em número indefinido e potencialmente infinito, que, tomados individualmente nada dizem.. Cada um sendo somente um momentum de uma trajetória cuja visão completa só pode ser definida no seu fim. Isso impede que haja conhecimento completo e, por conseguinte, posse completa de qualquer ser desejado. 

Como Proust nos diz: 

"Imaginamos que o objeto de nosso desejo é uma criatura exposta à nossa frente e limitada por um corpo. Mas, para nossa desgraça, ele é a extensão dessa criatura a todos os pontos do tempo e do espaço que aquela criatura ocupou e ocupará. Se não estabelecemos contato com determinado local e determinada hora, aquele ser não nos pertence. Mas não podemos tocar todos os pontos."(PROUST, A Prisioneira. Tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar. São Paulo: Editora Globo, 1994, p. 92)

Eis a fonte do amor e do ciúme. O amor nasce da impossibilidade de posse completa de um ser (“só amamos aquilo que não possuímos inteiramente”, nos diz Proust) e o ciúme nasce da impossibilidade da posse com referência ao passado e o futuro. Ambos são marcas da tentativa vã de uma posse definitiva do ser amado.

Aliás, se a posse aparentemente está garantida, morre o amor. Exemplo claro disso se dá quando, no livro, Albertine se faz dócil e submissa a Marcel e este, imediatamente desinteressando-se dela, decide abandoná-la. Ao saber, entretanto, que a jovem poderia entregar-se a uma mulher, a possibilidade da perda fez nascer nele o amor. O amor e o ciúme se nutrem da mesma fonte: o desconhecimento e a posse sempre postergada. 

Ao perceber que a simples relação amorosa não seria suficiente para garantir a posse de sua amada, Marcel então faz dela uma prisioneira. Leva-a para sua casa e a impede, com todos os meios possíveis, de ter uma vida fora de sua vista. Mas ainda assim, Albertina é muitas. Segundo Samuel Beckett em seu livro Proust

"Albertine é uma fugitiva e nenhuma expressão de seu valor estará completa se não for precedida por algum símbolo semelhante ao que em física denota a velocidade. Uma Albertina estática seria prontamente conquistada e prontamente comparada às possíveis conquistas excluídas por sua posse e ao infinito do que não é e talvez seja preferível à nulidade do que é. O amor só pode coexistir com um estado de insatisfação, seja ele nascido do ciúme ou de seu predecessor – o desejo. Representa nossa busca de um todo."

O amor então é a busca (da unidade) que se alimenta da impossibilidade dessa mesma busca. Ao encarcerar Albertine, Marcel tenta criar uma unidade em sua amada, fazer com que ela seja algo definido, passível de posse e de conhecimento. Afinal de contas, saber quem é Albertine implica em conhecê-la totalmente. 

Mas a Albertine que Marcel tem diante de si é uma dentre as muitas que ele não conhece e jamais conhecerá. Há múltiplas Albertines no passado e inconcebivelmente muitas no futuro. Qual delas é a verdadeira? A Albertine do balneário de Balbec, praticamente indistinta no meio das raparigas em flor? A Albertine que talvez se dedique ao amor por outras moças? Ou será a criatura enfadonha e tediosa que agora está sob seu teto? 

Albertine permanece o mistério que desperta o amor e causa sofrimento. Seu encarceramento é uma desesperada tentativa de “contenção”. Ali, sob seu teto, se mostrará a verdadeira Albertine. Sua essência surgirá, livre dos véus de um conhecimento imperfeito. Afinal ela será sua e cada hábito, cada insignificante detalhe será conhecido... e controlado. É por essa violência procustiana que Marcel pretende assegurar seu amor e sua tranqüilidade. 

Sua segurança estará garantida com a produção artificial da estabilidade do ser amado. Marcel age como alguém que tenta juntar os pontos para formar uma figura. Mas tal tentativa é fadada ao fracasso por diversas razões. 

Primeiramente, porque os seres são fugidios por natureza e Albertine não é exceção. Não é pelo encarceramento físico, projeto paradoxal e quimérico, que se dará conta do “espalhamento” dos seres. Mesmo encarcerada, ela será muitas, espalhada no passado desconhecido e lançada num futuro também desconhecido. 

Segundo, porque encarcerar Albertine é mediocrizá-la, pois procurando conhecer Albertine, para depois possuí-la inteiramente, em vão obedecia ele apenas à necessidade de reduzir pela experiência o mistério de toda a criatura. Mistério do qual se alimenta o próprio amor. Daí que se pode dizer que encarcerar Albertine, embora inspirado pelo amor, era ao mesmo tempo conspirar contra o amor. Ou seja, o mesmo amor que impele à tentativa de posse do ser amado cria assim as condições de sua própria morte, pois o amor não sobrevive à posse completa. 

A tentativa de Marcel desemboca numa tentativa (nem sempre consciente) de destruição do amor dedicado a Albertine. É uma evocação da morte. Entretanto, a morte não precisa de auxiliares. Quando menos Marcel esperava, Albertine foge de sua prisão e pouco tempo depois morre num acidente eqüestre. 

O sofrimento é atroz, mas uma morte se segue àquela de Albertine: a morte de Marcel. Ele vive fisicamente, mas o homem que amava Albertine morre. Eis a evidência que nem ele é o mesmo. Nem ele tem uma essência imutável no tempo. Ele também é muitos. E ele percebe o advento de um novo “eu”: 

"A criatura que suportaria facilmente viver sem Albertine, fizera sua primeira aparição em mim, pois eu pudera falar a seu respeito (...) com palavras desoladas e sem sofrimento profundo.. O possível advento desses novos “eus”, que deviam usar um nome diferente do anterior, sempre me assustara, porque eram indiferentes ao objeto d meu amor. (...) com o esquecimento vinha a supressão quase completa do sofrimento – uma possibilidade de bem-estar – e isso eu o ficara devendo a um ser temido e benfazejo, que não era outro senão um desses “eus” de reserva, mantidos de prontidão para nós, pelo destino, e que este, por uma intervenção oportuna e contra a nossa vontade, à maneira de uma médico esclarecido e por isso mesmo autoritário, que não dá atenção às nossas súplicas, nos apresenta em lugar do “eu” excessivamente dilacerado. Substituição, de resto, que realiza de tempos em tempos, (...) mas em que só prestamos atenção se o antigo “eu” continha uma grande dor (...) que nos surpreendemos por não encontrar mais, no deslumbramento da criatura que se converteu em outra, para quem o sofrimento do antecessor não é mais do que sofrimento alheio." (PROUST, A Fugitiva. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Porto Alegre: Editora Globo, 1970, p. 140)  

À fuga e morte de Albertine sucedeu-se a morte daquele que a amava. A indiferença que se segue ao fim de um amor nada mais é do que a substituição de um “eu” por outro novo. Como dissemos acima, não é que superamos as dores. Morremos e conosco morrem as dores correspondentes. 

Um novo “eu” nasce e encara as dores do “eu” passado como um educado amigo num enterro, que expressa condolências sem sentí-las realmente ou como alguém que sabe que teve um pesadelo, mas não seria capaz de, acordado, aterrorizar-se com ele. 

Por outro lado, a morte daquele “eu” que amava Albertine vindo em seguida à morte dela, concedem-na, talvez agora, alguma consistência e unidade que a vida havia-lhe negado. Uma vez morta, talvez se possa falar algo do que ela foi realmente. É assim que Marcel, o Narrador, pode afinal, depois de todos esses eventos, julgar que, ao fim e ao cabo, Albertine não era muito diferente “da jovem bacante, surgida e adivinhada no dique de Balbec”. 

São impressões, contudo, de um desconhecido sobre alguém morto. Que valor pode haver nisso? Albertine está morta e seu obsessivo amante também. O que resta agora é o silêncio indiferente de um homem que somente pode se recordar de Albertine como alguém que inspeciona fotografias antigas que só despertam um vago e etéreo sentimento de que elas registraram fatos de um tempo longínquo. 

O homem está morto e a memória voluntária pouco mais é do que a evocação de fantasmas sutis e intangíveis. Mas um dia talvez, o passado poderá renascer, pleno, quando a alma escondida da amada for despertada de sua prisão em algum gesto, visão ou tilintar de talheres. Nesta experiência, na memória involuntária, será o tempo redescoberto.