"- Pois fique sabendo que se eu estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso indica-te a quem matar. E nesse caso você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A gente entraria numa combinação.
- Matar a outrem seria a mais baixa manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu quero a forma suprema, e hei de matar-me. (...)Dá-me a pena! bradou, de repente, Kirilov, tomado como de súbita inspiração. Dita, que assinarei tudo. Assino também que matei Chatov. Dita, enquanto isso me diverte. Não receio o que pensarão os escravos arrogantes!"
Os Demônios, FIODOR DOSTOIEVSKI
Alexei Kirilov assina a confissão da morte de Chatov e assume a responsabilidade no lugar do assassino Verkhovensky. Parece-me haver aí algo tremendamente simbólico. É sob a rubrica do "homem novo" que o revolucionário mata os recalcitrantes e infiéis.
Kirilov é o "homem novo", o fim para o qual tendem os movimentos revolucionários. Ele é o homem sem Deus, aquele que, nas suas próprias palavras, recusa-se a "inventar Deus". Kirilov tem consciência de sua própria importância, pois proclama que sua morte dividirá a história em duas, como a morte de Cristo o fez antes dele.
Somente que, agora, Kirilov será "a porta", o primeiro: "começarei, terminarei, abrirei a porta. E trarei a salvação." E a salvação é o homem plenamente senhor de sua divindade, de sua vontade absoluta, livre de Deus e de tudo aquilo que instanciava, direta ou indiretamente, Sua autoridade: Igreja, Estado, moral.
Na primeira morte, a de Cristo, o homem morre para alcançar a salvação para toda a humanidade. A kenosis - a aniquilação, o esvaziamento - da encarnação do verbo se completa na kenosis da carne, da humanidade de Cristo, que abre as portas da ressurreição e da deificação.
Em um, o homem morre para renascer divino. No outro, Deus é morto para dar lugar somente ao homem carnal. Em Cristo o divino abarca o mundo sem negá-lo. Em Kirilov o mundo é afirmado pela negação do divino.
O recurso literário de Dostoievski consiste em apresentar simultaneamente o objetivo - Kirilov - e o processo - Verkhovensky - em um diálogo. É muito significativo o fato de que Kirilov não faz parte do grupo de revolucionários. Não poderia ser diferente. Ele não pode reconhecer e nem se identificar com os anseios de Verkhovenski e de seu grupo. Ele mesmo o afirma: matar outrem define Verkhovenski e não ele.
Verkhovenski é o homem da ação, do processo. É o agente da destruição e do caos que precede necessariamente o objetivo final, simbolizado por Kirilov. Isso não significa que Verkhovenski entenda plenamente Kirilov. Este é tratado até com impaciência por aquele. Suas razões são diversas. Kirilov conhece o revolucionário, pode dizer o que o define, assim como a fase final compreende seus estágios anteriores e não o contrário.
Ora, aí se instala um diálogo demoníaco. Verkhovenski quer que Kirilov assine uma confissão em que assume a responsabilidade pela morte de Chatov, o traidor, o elemento recalcitrante. Ele já quer matar (possivelmente até por ciúmes de Stravoguin), já se decidiu pelo assassinato. Mas não quer ser responsabilizado e julgado. Quer que outro assuma a responsabilidade.
Todavia, quem poderia tomar para si essa responsabilidade senão o "homem novo"? Kirilov não matou e nem vai matar ninguém. Não é diretamente culpado pela morte de Chatov. Mas simbolicamente Kirilov é culpado porque é o fim, a finalidade para a qual tendem todos os esforços de Verkhovenski.
Ele é o "homem novo", é o símbolo vivo do homem que há de vir. Kirilov não age diretamente, como uma causa eficiente, mas indiretamente, como uma causa final. Esta, por sua vez, absolve de toda responsabilidade o agente concreto do caos, Verkhovenski. Tudo é permitido? "Não", dirá o revolucionário. "Somente aquilo que for necessário para trazer o ideal ao mundo."
É sob a assinatura do "homem novo", Kirilov, que Verkhovenski, absolvido a priori, comete seu assassinato. Os meios se justificam pelos fins. Que fique claro que essa morte é apenas a primeira. Verkhovenski mesmo o assume dizendo: "Ainda restam milhares de Chatov." A doutrina de Chigaliov, o discurso de Verkhovenski após a morte de Chatov e a confissão de Liamchine dão a medida exata do que virá a seguir.
O que vem é a morte. Kirilov é seu profeta maior. Nele, a afirmação da divindade humana e a negação de Deus chegam ao ápice:
"Se Deus existe, toda a vontade Lhe pertence e, fora dessa vontade, nada posso. Se Ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade. (...) Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade."
Essa é a grande liberdade, a divindade da qual Kirilov é o primeiro representante. É o espírito de negação radical e total. A afirmação última e definitiva do homem é sua destruição voluntária. À morte de Chatov se segue a realização do "homem novo": a morte como afirmação da vontade livre e absoluta.
Nada menos do que o suicídio é digno do "homem novo". Nada há para construir ou usufruir. Toda outra opção é condenar-se a "viver pela metade", diz Kirilov. É comportar-se "como um pobre que herdou uma fortuna e que treme, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se muito fraco para tal façanha."
Kirilov é a encarnação do espírito da negação. Por isso o caminho que conduz a ele é pavimentado pela morte e pelo caos. Exatamente o que Verkhovenski semeia na pequena cidade que é palco da trama, um microcosmo que antecipa o que se dará no macrocosmo.
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