domingo, 17 de julho de 2016

Notas curtas sobre as relações entre simbolismo, discurso filosófico e discurso de sabedoria


"Enquanto que no signo simples o significado é limitado e o significante, por sua própria arbitrariedade, é infinito, e, enquanto que a simples alegoria traduz um significado finito por um significante não menos delimitado, os dois termos do symbolon, por sua vez, são infinitamente abertos. O termo significante, o único concretamente conhecido, recobre em 'extensão', por assim dizer, todos os tipos de qualidades não figuráveis e isso até à antinomia. É assim que o signo simbólico 'o fogo' aglutina os sentidos divergentes e antinômicos do 'fogo purificador', do 'fogo sexual', do 'fogo demoníaco e infernal'. (...)
Vê-se logo porque tal modo de conhecimento jamais adequado, jamais 'objetivo' - uma vez que jamais atinge um objeto, e querendo-se sempre essencial porque satisfaz-se a si mesmo e carrega em si mesmo, escandalosamente, a mensagem imanente de uma transcendência, jamais explícita e sempre ambígua e frequentemente redundante - verá erguer-se contra si, no curso da História, numerosas opções religiosas e filosóficas."

GILBERT DURAND, L‘Imagination Symbolique, pags. 9 e 14


"De outra parte, ele mantém-se entre o saber e a ignorância e nisso está o que ele é: nenhum deus dedica-se à filosofia e nem deseja tornar-se sábio, pois já o é. E, de uma maneira geral, se alguém é sábio, não filosofa. Mas os ignorantes não filosofam tampouco e não desejam tornar-se sábios.E é exatamente isso que há de triste na ignorância: não se é belo, nem bom e nem inteligente e, no entanto, crê-se sê-lo em abundância. Não se deseja algo quando se crê que de ela não há falta.

- Quem são, então, Diotima, pergunto, aqueles que filosofam, se não são sábios e nem ignorantes?

- Isso é muito claro, disse ela. Mesmo uma criança o veria agora. Aqueles que encontram-se entre os dois, o Amor estando entre eles. A ciência, com efeito, conta-se entre as coisas mais belas. Ora, o Amor é amor das coisas belas. É, então, necessário que o Amor seja filósofo e, como tal, que esteja no meio entre o sábio e o ignorante. A causa disso está na sua origem, pois nasceu de um pai sábio e pleno de recursos e de uma mãe desprovida tanto de ciência quanto de recursos. Tal é, caro Sócrates, a natureza desse daemon."

PLATÃO, Banquete, 204 a-b

O conhecimento mítico-simbólico é diferente do conhecimento filosófico, como é repetido em todas as tentativas de história da filosofia desde os tempos dos antigos gregos. Entretanto, cumpre notar que as diferenças e as relações entre os dois modos de conhecimento são ainda tema (filosófico) de discussão e de teorias conflitantes. Por exemplo, há mesmo a questão de se saber se o pensamento mítico-simbólico é realmente conhecimento e, em caso positivo, de que gênero é esse conhecimento e qual seu alcance.

Dentro desse problema, embora haja espaço para gradações, influência mútua, mesclas mais ou menos coerentes ou mesmo confusão, é possível distinguir, em suas linhas gerais, dois modos de discurso, tomando como referência a autoridade do emissor do discurso e, por conseguinte, sua confiabilidade como enunciador de verdades.

O primeiro tipo seria o discurso de Sabedoria. Aqui a própria Verdade fala, a partir de um ou de mais mensageiros. Sua mensagem é veraz, indubitável, autoritativa, dogmática. O mensageiro, entretanto, é mero canal, via, meio de transmissão da Verdade e tudo o que diz tem confiabilidade por causa não de suas próprias forças cognitivas ou especulativas, mas por causa da autoridade da fonte supranatural.

O mensageiro é o profeta, o santo, o sábio, o vidente, o místico, o aedo, o poeta, o extático ou, raramente, a própria Verdade encarnada, como no caso de Cristo. O centro da autoridade é a própria mensagem apresentada como revelação ou inspiração divinas. É o pensamento mítico-religioso-simbólico. 

O segundo tipo, o discurso filosófico, é de outra ordem. A Verdade não fala por um mensageiro. Ela é desconhecida, mas é almejada pelo amante da sabedoria, o filósofo. Este não fala a partir de nenhuma autoridade indubitável, veraz e infalível. Ao contrário, o filósofo é um buscador ignorante e aquilo que sabe - ou pretende saber – é de sua inteira responsabilidade e possui somente a autoridade conjunta do argumento, da lógica e da busca diligente pela verdade. Tudo o que o filósofo diz pode ser objeto de discordância e de debate. Aquilo que sabe tem origem nas suas capacidades cognitivas e especulativas.

Como é sabido, durante o século VI A.C., na Jônia, Ásia Menor, deu-se uma revolução intelectual cujas consequências estendem-se até os dias de hoje. Alguns poucos indivíduos, como Tales de Mileto, começaram a conceber o mundo de forma muito diversa do modo como o concebiam as narrativas mítico-religiosas. Iniciava-se ali o que posteriormente usou-se chamar de filosofia.

Segundo o historiador britânico Francis MacDonald Cornford em seu Before and After Socrates a revolução científica iniciada pelos filósofos jônios estava assentada em três pilares principais:

I) A concepção do conhecimento pelo conhecimento, isto é, a busca do saber não por seu valor prático e social, mas pelo prazer intelectual da contemplação das verdades. A geometria, por exemplo, inicia-se como uma técnica prática de mensuração de terrenos. Somente quando abandona-se o interesse meramente prático e passa-se a considerar valioso por si mesmo estudar e conhecer as relações entre as figuras geométricas como meras estruturas formais é que a geometria torna-se científica.

II) A descoberta da Natureza, isto é, a concepção do mundo como um todo ordenado por leis imutáveis, inteligíveis e impessoais. Segundo Cornford, a descoberta da Natureza é

"a descoberta de que todo o mundo que nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos fornecem, é natural, e não em parte natural e em parte sobrenatural. A ciência tem início quando se compreende que o universo é um todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios – comportamentos que podem ser determinados pela razão humana, mas que estão além do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de vista foi uma grande conquista."

III) O abandono dos entes pessoais sobrenaturais – deuses, daemons e outros seres – como fonte de explicação da origem do cosmos e dos fenômenos nele contidos. Os rogos, orações e pedidos humanos nada podem diante de um mundo naturalizado, em que relações com seres pessoais ou parcialmente pessoais não determina mais o curso das coisas. 

Cornford ressalta que a cosmogonia jônica é significativa não exatamente pelo que ela contém e sim pelo que ela não contém. A ausência dos deuses e dos poderes sobrenaturais é seu sinal mais marcante. Não há mais teogonia, mas cosmogonia. O cosmos é o objeto de estudo e de especulação e não mais a narração poético-simbólica da geração dos deuses como em Hesíodo. Fatores de ordem física serão os responsáveis pela formação das coisas e não mais o arbítrio pessoal das divindades com as quais sempre é possível negociar.

Outra característica da revolução jônica, dessa vez apontada pelo historiador da ciência Geoffrey Lloyd em seu Early Greek Science, é a discussão crítica das teorias. Segundo Lloyd, os filósofos jônios se dedicavam a conhecer e criticar as teorias de seus contemporâneos. A avaliação dessas teorias passava pela percepção de que estas eram explicações rivais para um determinado fenômeno sob estudo e de que se devia encontrar a resposta mais adequada para o problema estudado. Por conseguinte, as teorias eram apreciadas segundo sua força argumentativa e seus possíveis defeitos.

A consciência crítica da rivalidade das teorias estava em contraste com o pensamento mítico-simbólico que, embora tratando por vezes dos mesmos fenômenos sobre os quais os filósofos se debruçaram, explicava-os de forma desconectada uns dos outros e, por vezes, admitia, sem problemas, explicações diferentes e contraditórias para um mesmo ente.

Sendo assim, qual o lugar do símbolo mítico na nova ordem de conhecimento inaugurada pelos filósofos jônios? A descoberta da Natureza tornava o mundo não mais o palco de hierofanias e de relações simbólicas com realidades superiores. Os fenômenos falam somente de si mesmos e de suas relações causais com outros fenômenos.

Todo mistério resume-se à apreensão intelectual das naturezas intrínsecas das coisas e de suas relações causais. Se o símbolo é uma realidade conhecida que ilumina uma realidade desconhecida por meio de vínculos analógicos, a filosofia começa justamente pela restrição - ou eliminação, em alguns casos - dos vínculos analógicos entres as coisas. 

E se o símbolo admite diversas interpretações, de acordo com o ângulo que seja encarado, a filosofia, por seu turno, busca as causas necessárias e suficientes das coisas, sem tolerância com as ambiguidades da polissignificabilidade simbólica. É certo, contudo, que símbolos e mitos podem ser encontrados nas especulações filosóficas. Todavia, eles encontram-se ali não mais como símbolos, mas já como teorias.

Segundo Tales de Mileto, a terra flutuava sobre as águas. Ora, o tema da terra que flutua é um símbolo mítico cosmogônico tradicional. A própria tese de Tales de que tudo provém da água é mítico-simbólica em sua origem. Não obstante, em Tales, o símbolo torna-se uma teoria explicativa que não admite alternativas a não ser como teses rivais na explicação do mundo e dos fenômenos nele contidos.

O mesmo se dá com o símbolo mítico do casal primordial que representa a complementaridade e união sagrada do homem e da mulher. O símbolo perde sua polissignificabilidade e adquire o sentido estrito de uma tese acerca da harmonia entre os contrários, por exemplo.

A tese de uma lei geral que rege toda a realidade é também de origem simbólico-mítica, como aponta Francis Cornford em From Religion to Philosophy. Ela tem origem nas Moirae - Lachesis, Athropos e Clotho - a trindade de fiandeiras que definiam os lugares próprios dos deuses e dos homens. O conteúdo simbólico é esvaziado de seus vínculos analógicos originais e é transformado em uma tese sobre a ordem impessoal e inteligível que rege o mundo e seus fenômenos.

Mircea Eliade identificava na própria Teoria das Idéias de Platão um conteúdo mítico tradicional: a imitação dos modelos divinos. Isto é, toda a realidade sensível só adquire sentido na medida em que se reconhece que ela é uma imitação de modelos eternos e imutáveis, fora deste mundo cambiável.

Além disso, para Platão, viver inteligentemente, isto é, apreender e compreender o verdadeiro, o belo e o bom, é antes de tudo relembrar-se de uma existência desencarnada, puramente espiritual. O grande tema mítico-simbólico do esquecimento como origem do estado atual do homem é aí transformado em teoria filosófica sobre a estrutura da realidade e a origem do conhecimento humano.

Os mitos e símbolos, aparentemente expulsos pela filosofia e pela ciência do campo do conhecimento, nunca abandonaram totalmente o imaginário humano, estando presentes mesmo no mundo moderno secularizado. É o que pensa Mircea Eliade. Ele identifica a sobrevivência de temas míticos e simbólicos, por exemplo, no prestígio das origens, manifestado na busca científica moderna pelas origens do mundo, do homem e da sociedade.

Semelhantemente, as ideologias e os regimes totalitários do século XX, como o nazismo e o comunismo, também exibem uma estrutura escatológico-milenarista tradicional - embora já bastante esvaziada de seu conteúdo simbólico - na qual o domínio da raça ariana ou da classe proletária significaria a realização de um destino histórico que realizaria o Éden na Terra.

Eliade identifica ainda conteúdos mítico-simbólicos no culto do sucesso, na proliferação dos super-heróis, na mitificação de personalidades públicas, na mística do gênio artístico, no esoterismo da arte moderna, na destruição das linguagens artísticas, etc. Para Eliade, isso indica que o pensamento mítico-simbólico é uma realidade humana essencial e que a compreensão correta do que é o homem deve passar por um estudo da mentalidade simbólica.

Se for assim, a filosofia teria de reconhecer no mito e no símbolo vias de conhecimento legítimo do mundo que, contudo, não se pautam pelos mesmos objetivos e tampouco possuem os mesmos métodos e critérios de aferição que a filosofia e a ciência?

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http://oleniski.blogspot.com.br/2016/07/notas-curtas-sobre-natureza-do-simbolo.html

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