Vê-se logo porque tal modo de conhecimento jamais adequado, jamais 'objetivo' - uma vez que jamais atinge um objeto, e querendo-se sempre essencial porque satisfaz-se a si mesmo e carrega em si mesmo, escandalosamente, a mensagem imanente de uma transcendência, jamais explícita e sempre ambígua e frequentemente redundante - verá erguer-se contra si, no curso da História, numerosas opções religiosas e filosóficas."
GILBERT DURAND, L‘Imagination Symbolique, pags. 9 e 14
"De outra parte, ele mantém-se entre o saber e a ignorância e nisso está o que ele é: nenhum deus dedica-se à filosofia e nem deseja tornar-se sábio, pois já o é. E, de uma maneira geral, se alguém é sábio, não filosofa. Mas os ignorantes não filosofam tampouco e não desejam tornar-se sábios.E é exatamente isso que há de triste na ignorância: não se é belo, nem bom e nem inteligente e, no entanto, crê-se sê-lo em abundância. Não se deseja algo quando se crê que de ela não há falta.
- Quem são, então, Diotima, pergunto, aqueles que filosofam, se não são sábios e nem ignorantes?
- Isso é muito claro, disse ela. Mesmo uma criança o veria agora. Aqueles que encontram-se entre os dois, o Amor estando entre eles. A ciência, com efeito, conta-se entre as coisas mais belas. Ora, o Amor é amor das coisas belas. É, então, necessário que o Amor seja filósofo e, como tal, que esteja no meio entre o sábio e o ignorante. A causa disso está na sua origem, pois nasceu de um pai sábio e pleno de recursos e de uma mãe desprovida tanto de ciência quanto de recursos. Tal é, caro Sócrates, a natureza desse daemon."
PLATÃO, Banquete, 204 a-b
O conhecimento mítico-simbólico é diferente do conhecimento filosófico, como é repetido em todas as tentativas de história da filosofia desde os tempos dos antigos gregos. Entretanto, cumpre notar que as diferenças e as relações entre os dois modos de conhecimento são ainda tema (filosófico) de discussão e de teorias conflitantes. Por exemplo, há mesmo a questão de se saber se o pensamento mítico-simbólico é realmente conhecimento e, em caso positivo, de que gênero é esse conhecimento e qual seu alcance.
Dentro desse problema, embora haja espaço para gradações, influência mútua, mesclas mais ou menos coerentes ou mesmo confusão, é possível distinguir, em suas linhas gerais, dois modos de discurso, tomando como referência a autoridade do emissor do discurso e, por conseguinte, sua confiabilidade como enunciador de verdades.
O primeiro tipo seria o discurso de Sabedoria. Aqui a própria Verdade fala, a partir de um ou de mais mensageiros. Sua mensagem é veraz, indubitável, autoritativa, dogmática. O mensageiro, entretanto, é mero canal, via, meio de transmissão da Verdade e tudo o que diz tem confiabilidade por causa não de suas próprias forças cognitivas ou especulativas, mas por causa da autoridade da fonte supranatural.
Dentro desse problema, embora haja espaço para gradações, influência mútua, mesclas mais ou menos coerentes ou mesmo confusão, é possível distinguir, em suas linhas gerais, dois modos de discurso, tomando como referência a autoridade do emissor do discurso e, por conseguinte, sua confiabilidade como enunciador de verdades.
O primeiro tipo seria o discurso de Sabedoria. Aqui a própria Verdade fala, a partir de um ou de mais mensageiros. Sua mensagem é veraz, indubitável, autoritativa, dogmática. O mensageiro, entretanto, é mero canal, via, meio de transmissão da Verdade e tudo o que diz tem confiabilidade por causa não de suas próprias forças cognitivas ou especulativas, mas por causa da autoridade da fonte supranatural.
O mensageiro é o profeta, o santo, o sábio, o vidente, o místico, o aedo, o poeta, o extático ou, raramente, a própria Verdade encarnada, como no caso de Cristo. O centro da autoridade é a própria mensagem apresentada como revelação ou inspiração divinas. É o pensamento mítico-religioso-simbólico.
O segundo tipo, o discurso filosófico, é de outra ordem. A Verdade não fala por um mensageiro. Ela é desconhecida, mas é almejada pelo amante da sabedoria, o filósofo. Este não fala a partir de nenhuma autoridade indubitável, veraz e infalível. Ao contrário, o filósofo é um buscador ignorante e aquilo que sabe - ou pretende saber – é de sua inteira responsabilidade e possui somente a autoridade conjunta do argumento, da lógica e da busca diligente pela verdade. Tudo o que o filósofo diz pode ser objeto de discordância e de debate. Aquilo que sabe tem origem nas suas capacidades cognitivas e especulativas.
Como é sabido, durante o século VI A.C., na Jônia, Ásia Menor, deu-se uma revolução intelectual cujas consequências estendem-se até os dias de hoje. Alguns poucos indivíduos, como Tales de Mileto, começaram a conceber o mundo de forma muito diversa do modo como o concebiam as narrativas mítico-religiosas. Iniciava-se ali o que posteriormente usou-se chamar de filosofia.
Segundo o historiador britânico Francis MacDonald Cornford em seu Before and After Socrates a revolução científica iniciada pelos filósofos jônios estava assentada em três pilares principais:
I) A concepção do conhecimento pelo conhecimento, isto é, a busca do saber não por seu valor prático e social, mas pelo prazer intelectual da contemplação das verdades. A geometria, por exemplo, inicia-se como uma técnica prática de mensuração de terrenos. Somente quando abandona-se o interesse meramente prático e passa-se a considerar valioso por si mesmo estudar e conhecer as relações entre as figuras geométricas como meras estruturas formais é que a geometria torna-se científica.
II) A descoberta da Natureza, isto é, a concepção do mundo como um todo ordenado por leis imutáveis, inteligíveis e impessoais. Segundo Cornford, a descoberta da Natureza é
"a descoberta de que todo o mundo que nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos fornecem, é natural, e não em parte natural e em parte sobrenatural. A ciência tem início quando se compreende que o universo é um todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios – comportamentos que podem ser determinados pela razão humana, mas que estão além do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de vista foi uma grande conquista."
"a descoberta de que todo o mundo que nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos fornecem, é natural, e não em parte natural e em parte sobrenatural. A ciência tem início quando se compreende que o universo é um todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios – comportamentos que podem ser determinados pela razão humana, mas que estão além do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de vista foi uma grande conquista."
III) O abandono dos entes pessoais sobrenaturais – deuses, daemons e outros seres – como fonte de explicação da origem do cosmos e dos fenômenos nele contidos. Os rogos, orações e pedidos humanos nada podem diante de um mundo naturalizado, em que relações com seres pessoais ou parcialmente pessoais não determina mais o curso das coisas.
Cornford ressalta que a cosmogonia jônica é significativa não exatamente pelo que ela contém e sim pelo que ela não contém. A ausência dos deuses e dos poderes sobrenaturais é seu sinal mais marcante. Não há mais teogonia, mas cosmogonia. O cosmos é o objeto de estudo e de especulação e não mais a narração poético-simbólica da geração dos deuses como em Hesíodo. Fatores de ordem física serão os responsáveis pela formação das coisas e não mais o arbítrio pessoal das divindades com as quais sempre é possível negociar.
Outra característica da revolução jônica, dessa vez apontada pelo historiador da ciência Geoffrey Lloyd em seu Early Greek Science, é a discussão crítica das teorias. Segundo Lloyd, os filósofos jônios se dedicavam a conhecer e criticar as teorias de seus contemporâneos. A avaliação dessas teorias passava pela percepção de que estas eram explicações rivais para um determinado fenômeno sob estudo e de que se devia encontrar a resposta mais adequada para o problema estudado. Por conseguinte, as teorias eram apreciadas segundo sua força argumentativa e seus possíveis defeitos.
A consciência crítica da rivalidade das teorias estava em contraste com o pensamento mítico-simbólico que, embora tratando por vezes dos mesmos fenômenos sobre os quais os filósofos se debruçaram, explicava-os de forma desconectada uns dos outros e, por vezes, admitia, sem problemas, explicações diferentes e contraditórias para um mesmo ente.
Sendo assim, qual o lugar do símbolo mítico na nova ordem de conhecimento inaugurada pelos filósofos jônios? A descoberta da Natureza tornava o mundo não mais o palco de hierofanias e de relações simbólicas com realidades superiores. Os fenômenos falam somente de si mesmos e de suas relações causais com outros fenômenos.
Todo mistério resume-se à apreensão intelectual das naturezas intrínsecas das coisas e de suas relações causais. Se o símbolo é uma realidade conhecida que ilumina uma realidade desconhecida por meio de vínculos analógicos, a filosofia começa justamente pela restrição - ou eliminação, em alguns casos - dos vínculos analógicos entres as coisas.
E se o símbolo admite diversas interpretações, de acordo com o ângulo que seja encarado, a filosofia, por seu turno, busca as causas necessárias e suficientes das coisas, sem tolerância com as ambiguidades da polissignificabilidade simbólica. É certo, contudo, que símbolos e mitos podem ser encontrados nas especulações filosóficas. Todavia, eles encontram-se ali não mais como símbolos, mas já como teorias.
Segundo Tales de Mileto, a terra flutuava sobre as águas. Ora, o tema da terra que flutua é um símbolo mítico cosmogônico tradicional. A própria tese de Tales de que tudo provém da água é mítico-simbólica em sua origem. Não obstante, em Tales, o símbolo torna-se uma teoria explicativa que não admite alternativas a não ser como teses rivais na explicação do mundo e dos fenômenos nele contidos.
O mesmo se dá com o símbolo mítico do casal primordial que representa a complementaridade e união sagrada do homem e da mulher. O símbolo perde sua polissignificabilidade e adquire o sentido estrito de uma tese acerca da harmonia entre os contrários, por exemplo.
A tese de uma lei geral que rege toda a realidade é também de origem simbólico-mítica, como aponta Francis Cornford em From Religion to Philosophy. Ela tem origem nas Moirae - Lachesis, Athropos e Clotho - a trindade de fiandeiras que definiam os lugares próprios dos deuses e dos homens. O conteúdo simbólico é esvaziado de seus vínculos analógicos originais e é transformado em uma tese sobre a ordem impessoal e inteligível que rege o mundo e seus fenômenos.
Mircea Eliade identificava na própria Teoria das Idéias de Platão um conteúdo mítico tradicional: a imitação dos modelos divinos. Isto é, toda a realidade sensível só adquire sentido na medida em que se reconhece que ela é uma imitação de modelos eternos e imutáveis, fora deste mundo cambiável.
Além disso, para Platão, viver inteligentemente, isto é, apreender e compreender o verdadeiro, o belo e o bom, é antes de tudo relembrar-se de uma existência desencarnada, puramente espiritual. O grande tema mítico-simbólico do esquecimento como origem do estado atual do homem é aí transformado em teoria filosófica sobre a estrutura da realidade e a origem do conhecimento humano.
Os mitos e símbolos, aparentemente expulsos pela filosofia e pela ciência do campo do conhecimento, nunca abandonaram totalmente o imaginário humano, estando presentes mesmo no mundo moderno secularizado. É o que pensa Mircea Eliade. Ele identifica a sobrevivência de temas míticos e simbólicos, por exemplo, no prestígio das origens, manifestado na busca científica moderna pelas origens do mundo, do homem e da sociedade.
Semelhantemente, as ideologias e os regimes totalitários do século XX, como o nazismo e o comunismo, também exibem uma estrutura escatológico-milenarista tradicional - embora já bastante esvaziada de seu conteúdo simbólico - na qual o domínio da raça ariana ou da classe proletária significaria a realização de um destino histórico que realizaria o Éden na Terra.
Eliade identifica ainda conteúdos mítico-simbólicos no culto do sucesso, na proliferação dos super-heróis, na mitificação de personalidades públicas, na mística do gênio artístico, no esoterismo da arte moderna, na destruição das linguagens artísticas, etc. Para Eliade, isso indica que o pensamento mítico-simbólico é uma realidade humana essencial e que a compreensão correta do que é o homem deve passar por um estudo da mentalidade simbólica.
Se for assim, a filosofia teria de reconhecer no mito e no símbolo vias de conhecimento legítimo do mundo que, contudo, não se pautam pelos mesmos objetivos e tampouco possuem os mesmos métodos e critérios de aferição que a filosofia e a ciência?
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com.br/2016/07/notas-curtas-sobre-natureza-do-simbolo.html
Mircea Eliade identificava na própria Teoria das Idéias de Platão um conteúdo mítico tradicional: a imitação dos modelos divinos. Isto é, toda a realidade sensível só adquire sentido na medida em que se reconhece que ela é uma imitação de modelos eternos e imutáveis, fora deste mundo cambiável.
Além disso, para Platão, viver inteligentemente, isto é, apreender e compreender o verdadeiro, o belo e o bom, é antes de tudo relembrar-se de uma existência desencarnada, puramente espiritual. O grande tema mítico-simbólico do esquecimento como origem do estado atual do homem é aí transformado em teoria filosófica sobre a estrutura da realidade e a origem do conhecimento humano.
Os mitos e símbolos, aparentemente expulsos pela filosofia e pela ciência do campo do conhecimento, nunca abandonaram totalmente o imaginário humano, estando presentes mesmo no mundo moderno secularizado. É o que pensa Mircea Eliade. Ele identifica a sobrevivência de temas míticos e simbólicos, por exemplo, no prestígio das origens, manifestado na busca científica moderna pelas origens do mundo, do homem e da sociedade.
Semelhantemente, as ideologias e os regimes totalitários do século XX, como o nazismo e o comunismo, também exibem uma estrutura escatológico-milenarista tradicional - embora já bastante esvaziada de seu conteúdo simbólico - na qual o domínio da raça ariana ou da classe proletária significaria a realização de um destino histórico que realizaria o Éden na Terra.
Eliade identifica ainda conteúdos mítico-simbólicos no culto do sucesso, na proliferação dos super-heróis, na mitificação de personalidades públicas, na mística do gênio artístico, no esoterismo da arte moderna, na destruição das linguagens artísticas, etc. Para Eliade, isso indica que o pensamento mítico-simbólico é uma realidade humana essencial e que a compreensão correta do que é o homem deve passar por um estudo da mentalidade simbólica.
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