"Concorda-se hoje em ligar à tradição pitagórica a doutrina platônica da anamnesis. Mas, em Platão, não se trata mais de memórias pessoais de existências anteriores, mas de um tipo de 'memória impessoal', enterrada em cada indivíduo, a soma das lembranças do tempo onde a alma contemplou diretamente as Idéias."
MIRCEA ELIADE, Mythes, Rêves et Mystères, p. 55 (tradução própria; itálicos no original)
"Para os pitagóricos, rememoração significava, primeiramente, a lembrança das suas encarnações anteriores (como afirmava-se que o próprio Pitágoras havia realizado) e, em segundo lugar, a lembrança das senhas secretas e indicadores de caminho comunicados aos iniciados para uma passagem segura no domínio dos mortos. Platão transformou essa essa noção mágica e ritualística de rememoração em uma epistemologia das idéias inatas e conhecimento a priori."
CHARLES KAHN, Pythagoras and the Pythagoreans, p. 51 (tradução própria)
Mircea Eliade, em diversas de suas obras de história das religiões e dos mitos, sugere uma ligação íntima entre a filosofia de Platão e a mentalidade mítica. O caminho mais óbvio para fundamentar essa tese seria fazer referência ao uso de mitos (como o famoso mito da caverna) nas obras platônicas. Todavia, Eliade toma uma direção diferente e busca revelar a permanência de uma estrutura arcaico-mítica no centro do pensamento de Platão: a doutrina da anamnesis e a teoria das Idéias.
Em Le Mythe de L'Éternel Retour, Eliade apresenta as características essenciais daquilo que denomina "mentalidade primitiva": imitação de modelos atemporais. O mito é um relato verdadeiro, atemporal e exemplar que revela a origem de algo. O homem que vive o mito só está no Real quando imita os atos divinos exemplares dados em um tempo atemporal. A imitação dos modelos sagrados faculta ao homem participar, em sua medida, da ordem do Ser. O grande mal, por conseguinte, não pode ser outro que o esquecimento dos modelos.
Dito de outro modo, só existe realmente aquele/aquilo que imita/participa de um modelo atemporal. Eliade afirma que essa é a "ontologia primitiva ou arcaica" e que Platão pode ser considerado como o filósofo par excellence dessa mentalidade. Obviamente, isso não significa que o filósofo não tenha apresentado razões para defender essa estrutura de um ponto de vista filosófico-racional.
A discussão aprofunda-se em Aspects du Mythe, onde Eliade discute a filosofia platônica dentro do contexto das mitologias da memória e do esquecimento. Nas sociedades iniciáticas órfico-pitagóricas, o esquecimento é representado pelo rio Lethes no qual bebem as almas descidas ao Hades e esquecem-se de sua vida pregressa. Os iniciados eram orientados a não beber do Lethes, mas, tomando o caminho à direita, beber das águas da fonte de Mnemosyne (memória).
O conteúdo soteriológico da doutrina estava intimamente ligado à manutenção da memória. Ao contrário da tradição homérica na qual a psyché desce para sempre ao Hades e esquece sua vida pregressa, o simbolismo aqui é invertido, já que as águas do Lethes fazem a alma esquecer de suas vidas anteriores e, assim, a prepara para a sua próxima encarnação. Esquecimento não é morte, mas retorno à vida terrestre.
Na tradição grega, a doutrina pitagórica da metempsicose inclui também a crença de que certos sábios, como Pitágoras e Empédocles, possuíam a capacidade de rememorar as suas vidas anteriores. Nesse caso, a anamnesis atua no sentido de unir em uma única trama a história das encarnações anteriores do sábio, antes dispersas no esquecimento. Trata-se, aqui, obviamente, de memórias pessoais.
Platão retoma esses temas mítico-espirituais, dando-lhes, contudo, nova interpretação simbólica e filosófica. A alma esquece da verdade quando entra neste mundo. De novo, o tema da vida terrestre como esquecimento. A diferença é que aquilo do qual esquece a alma quando vem a este mundo não é o conjunto de suas encarnações anteriores e sim o conhecimento imediato dos modelos eternos das coisas, as Idéias. A anamnesis é a rememoração desse conhecimento que a alma possuía quando desencarnada.
O conhecimento não é descoberta de novos conteúdos, mas a diligente rememoração daquilo que foi contemplado imaterialmente pela alma antes de sua existência corporal terrestre. A verdade e o Ser são encontrados quando o homem volta-se aos modelos eternos. Analogamente, o homem que vive no estrato mítico, entende-se como real e verdadeiro somente quando imita e participa dos modelos atemporais apresentados pelo mito.
Não interessa mais a rememoração pessoal e histórica das vidas anteriores. Interessa, em vez disso, a rememoração de conteúdos paradigmáticos, atemporais e impessoais: as Idéias, estruturas fundamentais da própria Realidade. O retorno às origens do homem que vive no mundo mítico é justamente o retorno periódico aos atos exemplares dos entes divinos por meio da imitação e da rememoração.
Além das referências ao pitagorismo acima citadas, Eliade apresenta doutrinas da Yoga e do Budismo na discussão sobre a estrutura arcaico-mítica da filosofia de Platão em Mythes, Rêves et Mystères. Segundo o historiador das religiões, yogues e budistas partilham da prática de recuar na lembrança das encarnações anteriores até o momento paradoxal onde nada havia. Isto é, a via da anamnesis conduz o asceta a ultrapassar o tempo e espaço.
Soteriologicamente, isso equivale a transcender o estado humano limitado e alcançar o absolutamente incondicionado. O importante, portanto, não é simplesmente lembrar-se do que se foi em vidas passadas e sim pausar, por meio da técnica de recuo, o ciclo vertiginoso das encarnações. Libertar-se da cadeia dos estados condicionados recuando na série a cada um de seus elos até alcançar o Incondicionado.
A técnica oriental de recuo na cadeia das encarnações assemelha-se (exteriormente, ao menos) às práticas pitagóricas de rememoração das vidas passadas e à anamnesis platônica. Todavia, Platão não se interessa por memórias pessoais de existências anteriores e sim pelo momento no qual as almas desencarnadas contemplam as verdades eternas e impessoais. Platão interessa-se por uma espécie de memória impessoal.
É justamente na doutrina das Idéias que Platão prolonga e revaloriza filosoficamente temas arcaicos e míticos, assinala Eliade. Como no mito, o homem só alcança a Realidade quando recua até os modelos atemporais. A existência temporal possui seu fundamento em realidades atemporais e exemplares e é somente em contato com essa estrutura do Ser que o homem existe plenamente.
O homem arcaico crê que o mito é exemplar e, portanto, impessoal. O que importa não são as lembranças pessoais, mas sim a lembrança e a imitação dos atos paradigmáticos dos entes divinos acontecidos no princípio. Outrossim, importa a Platão a anamnesis que conduz aos modelos exemplares, eternos e impessoais de todas as coisas. Para Eliade, os pitagóricos, com sua rememoração das existências pessoais anteriores, estariam mais próximos dos yogues, dos budistas e dos shamans. Platão, por seu turno, com sua doutrina da anamnesis, estaria mais próximo do pensamento tradicional, aquele no qual a ênfase está nos modelos atemporais e transcendentes.
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com.br/2018/01/mircea-eliade-mito-ontofania-hierofania.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2015/04/mircea-eliade-tempo-sagrado-e-historia.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2015/04/mircea-eliade-sagrado-tempo-espaco-e.html
Em Le Mythe de L'Éternel Retour, Eliade apresenta as características essenciais daquilo que denomina "mentalidade primitiva": imitação de modelos atemporais. O mito é um relato verdadeiro, atemporal e exemplar que revela a origem de algo. O homem que vive o mito só está no Real quando imita os atos divinos exemplares dados em um tempo atemporal. A imitação dos modelos sagrados faculta ao homem participar, em sua medida, da ordem do Ser. O grande mal, por conseguinte, não pode ser outro que o esquecimento dos modelos.
Dito de outro modo, só existe realmente aquele/aquilo que imita/participa de um modelo atemporal. Eliade afirma que essa é a "ontologia primitiva ou arcaica" e que Platão pode ser considerado como o filósofo par excellence dessa mentalidade. Obviamente, isso não significa que o filósofo não tenha apresentado razões para defender essa estrutura de um ponto de vista filosófico-racional.
A discussão aprofunda-se em Aspects du Mythe, onde Eliade discute a filosofia platônica dentro do contexto das mitologias da memória e do esquecimento. Nas sociedades iniciáticas órfico-pitagóricas, o esquecimento é representado pelo rio Lethes no qual bebem as almas descidas ao Hades e esquecem-se de sua vida pregressa. Os iniciados eram orientados a não beber do Lethes, mas, tomando o caminho à direita, beber das águas da fonte de Mnemosyne (memória).
O conteúdo soteriológico da doutrina estava intimamente ligado à manutenção da memória. Ao contrário da tradição homérica na qual a psyché desce para sempre ao Hades e esquece sua vida pregressa, o simbolismo aqui é invertido, já que as águas do Lethes fazem a alma esquecer de suas vidas anteriores e, assim, a prepara para a sua próxima encarnação. Esquecimento não é morte, mas retorno à vida terrestre.
Na tradição grega, a doutrina pitagórica da metempsicose inclui também a crença de que certos sábios, como Pitágoras e Empédocles, possuíam a capacidade de rememorar as suas vidas anteriores. Nesse caso, a anamnesis atua no sentido de unir em uma única trama a história das encarnações anteriores do sábio, antes dispersas no esquecimento. Trata-se, aqui, obviamente, de memórias pessoais.
Platão retoma esses temas mítico-espirituais, dando-lhes, contudo, nova interpretação simbólica e filosófica. A alma esquece da verdade quando entra neste mundo. De novo, o tema da vida terrestre como esquecimento. A diferença é que aquilo do qual esquece a alma quando vem a este mundo não é o conjunto de suas encarnações anteriores e sim o conhecimento imediato dos modelos eternos das coisas, as Idéias. A anamnesis é a rememoração desse conhecimento que a alma possuía quando desencarnada.
O conhecimento não é descoberta de novos conteúdos, mas a diligente rememoração daquilo que foi contemplado imaterialmente pela alma antes de sua existência corporal terrestre. A verdade e o Ser são encontrados quando o homem volta-se aos modelos eternos. Analogamente, o homem que vive no estrato mítico, entende-se como real e verdadeiro somente quando imita e participa dos modelos atemporais apresentados pelo mito.
Não interessa mais a rememoração pessoal e histórica das vidas anteriores. Interessa, em vez disso, a rememoração de conteúdos paradigmáticos, atemporais e impessoais: as Idéias, estruturas fundamentais da própria Realidade. O retorno às origens do homem que vive no mundo mítico é justamente o retorno periódico aos atos exemplares dos entes divinos por meio da imitação e da rememoração.
Além das referências ao pitagorismo acima citadas, Eliade apresenta doutrinas da Yoga e do Budismo na discussão sobre a estrutura arcaico-mítica da filosofia de Platão em Mythes, Rêves et Mystères. Segundo o historiador das religiões, yogues e budistas partilham da prática de recuar na lembrança das encarnações anteriores até o momento paradoxal onde nada havia. Isto é, a via da anamnesis conduz o asceta a ultrapassar o tempo e espaço.
Soteriologicamente, isso equivale a transcender o estado humano limitado e alcançar o absolutamente incondicionado. O importante, portanto, não é simplesmente lembrar-se do que se foi em vidas passadas e sim pausar, por meio da técnica de recuo, o ciclo vertiginoso das encarnações. Libertar-se da cadeia dos estados condicionados recuando na série a cada um de seus elos até alcançar o Incondicionado.
A técnica oriental de recuo na cadeia das encarnações assemelha-se (exteriormente, ao menos) às práticas pitagóricas de rememoração das vidas passadas e à anamnesis platônica. Todavia, Platão não se interessa por memórias pessoais de existências anteriores e sim pelo momento no qual as almas desencarnadas contemplam as verdades eternas e impessoais. Platão interessa-se por uma espécie de memória impessoal.
É justamente na doutrina das Idéias que Platão prolonga e revaloriza filosoficamente temas arcaicos e míticos, assinala Eliade. Como no mito, o homem só alcança a Realidade quando recua até os modelos atemporais. A existência temporal possui seu fundamento em realidades atemporais e exemplares e é somente em contato com essa estrutura do Ser que o homem existe plenamente.
O homem arcaico crê que o mito é exemplar e, portanto, impessoal. O que importa não são as lembranças pessoais, mas sim a lembrança e a imitação dos atos paradigmáticos dos entes divinos acontecidos no princípio. Outrossim, importa a Platão a anamnesis que conduz aos modelos exemplares, eternos e impessoais de todas as coisas. Para Eliade, os pitagóricos, com sua rememoração das existências pessoais anteriores, estariam mais próximos dos yogues, dos budistas e dos shamans. Platão, por seu turno, com sua doutrina da anamnesis, estaria mais próximo do pensamento tradicional, aquele no qual a ênfase está nos modelos atemporais e transcendentes.
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