segunda-feira, 6 de novembro de 2017

"The Mission", a redenção e os caminhos da virtude



"Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos."

JOÃO, 15:13

"Devolve a espada ao seu lugar, pois todos os que tomarem a espada perecerão pela espada." 

MATEUS, 26:52.

"Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada."

MATEUS, 10:34


The Mission (1986), belíssimo filme de Roland Joffé, narra a história da relação conflituosa que estabelece-se entre o padre jesuíta Gabriel (Jeremy Irons) e o mercenário e mercador de escravos Rodrigo Mendonza (Robert De Niro) na região entre o Paraguai e a Argentina durante a segunda metade do século XVIII. Padre Gabriel é um missionário que, líder um pequeno grupo de padres da Companhia de Jesus, embrenha-se na densa selva a fim de fundar uma comunidade (a "Missão" do título) dedicada à conversão dos índios guarani, mesmo sabendo do martírio sofrido por seu antecessor.

No primeiro contato de Gabriel com Mendonza, o padre testemunha os métodos cruéis empregados pelo mercador de escravos para capturar os guaranis. O religioso reconhece a humanidade dos guaranis a ponto de arriscar sua vida para salvar-lhes as almas imortais. O mercador só os enxerga como mercadorias, utensílios a serem vendidos pelo melhor preço. O antagonismo inicial está posto: os dois vivem em mundos morais distintos e inconciliáveis. 

O destino (ou A Providência) tratará de uni-los, contudo. Por causa de uma disputa com seu irmão Felipe pelo amor de uma mulher, Mendonza cai em desgraça. Em um duelo com Felipe, ele comete o fratricídio.  Mas assim como Caim carrega em sua testa a marca de sua culpa onde quer que vá, Mendonza também carrega o peso do fratricídio e consome-se pelo remorso. Que oceano poderá lavar o sangue de suas mãos?

Gabriel é sua resposta. O padre vai visitá-lo e o insta a buscar a redenção por meio da penitência. Mendonza une-se ao padre Gabriel em seu retorno à Missão. No caminho, os viajantes são obrigados a escalar o lado de uma alta queda d'água. Mendonza, atormentado pela culpa, carrega, pendurado à sua cintura por uma corda, a carga de suas armas e de sua armadura. O fardo da guerra e da violência. A dificuldade de subir atado a tanto peso é enorme e, ao chegar ao topo, os guaranis cortam a corda e libertam Mendonza.

O mercador de escravos cai em prantos e é efusivamente consolado pelos guaranis. O simbolismo é claro: não é possível subir aos céus com o peso do pecado e da culpa. Não é possível subir aos céus carregando a vida antiga, as armas e a armadura. É preciso abandonar o homem velho para que nasça o homem novo. O guarani que corta a corda que ata Mendonza à vida antiga, simboliza o perdão divino, a redenção garantida à alma purificada pelo arrependimento e pela penitência. Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento (Lucas 15:7).

Na Missão de São Carlos, Mendonza é apresentado à simplicidade da vida dos guaranis e à profundidade espiritual dos Evangelhos. Decide, então, tornar-se ele mesmo um jesuíta. Padre Gabriel o recebe na Ordem da Companhia de Jesus como noviço. Todavia, questões mundanas envolvendo os poderes seculares de Espanha e de Portugal colocarão o destino das missões em risco.

O território onde localizava-se a Missão estava sob domínio espanhol, onde a escravidão era proibida. Ocorre que, por conta de um tratado, Portugal assumiria esse território, o que exporia os guaranis ao comércio de escravos permitido pelos portugueses. Enviado pelo Vaticano, o cardeal Altamirano reúne os jesuítas, os representantes das coroas portuguesa e espanhola para decidir se as missões permaneceriam ou não sob proteção da Igreja.

Durante as discussões, Mendonza, sabendo da cumplicidade de Don Cabeza (o representante espanhol) com o tráfico de escravos, acusa-o publicamente. Por obediência a seus superiores, é obrigado a retratar-se. Mas, a questão principal permanece: os jesuítas obedecerão as autoridades seculares e religiosas se forem obrigados a abandonar as missões? Pressionado de todos os lados, Cardeal Altamirano compromete-se a visitar as missões a fim de tomar sua decisão.

Apesar de testemunhar a beleza e a prosperidade das missões, Altamirano exige que elas sejam abandonadas sem resistência pelos guaranis e, principalmente, pelos padres. Aqueles dentre os jesuítas que desobedecerem sua ordem ou que incentivarem os guaranis a resistir ao domínio português serão excomungados.  A autoridade espiritual curvou-se ao poder temporal e o que resta à diminuta comunidade jesuíta é decidir a quem obedecer e como obedecer.

Eis o grande dilema: o conflito entre a obediência à autoridade espiritual legitimamente constituída e a obediência aos ditames da consciência que julga apreender uma lei ainda mais profunda. Padre Gabriel e sua comunidade escolhem obedecer à lei da consciência a fim de cumprir a lei de Deus. Mas não do mesmo jeito.

Padre Gabriel escolhe o martírio pacífico ao lado dos guaranis. Mendonza e os outros jesuítas decidem resistir com armas ao assalto das tropas européias. Aqui, de novo, há antagonismo entre Gabriel e Mendoza. O sacerdote não concebe que a violência seja um meio verdadeiramente cristão de opor-se ao mal e à injustiça. Se Mendonza quer mesmo ajudar os guaranis, que o faça como padre e não como soldado. Gabriel dará a outra face.

Mendonza, por seu turno, não vê outro caminho para ajudar os guaranis que não seja juntar-se a eles na luta contra os invasores. Dar a própria face ao tapa não é o mesmo que dar a face dos outros. Em mais uma cena simbólica, um pequeno guarani resgata do fundo do rio a espada de Mendonza e a entrega a ele. É das profundezas do homem antigo que o ex-mercenário deve trazer os talentos necessários ao combate. Entretanto, agora, essas habilidades não estão mais a serviço da injustiça. Foram reconfiguradas em um pano de fundo completamente diferente.

Mendonza representa o homem convertido que luta contra suas tendências antigas, mas que, por ação de circunstâncias externas a ele, vê-se colocado em uma situação na qual pode dar curso à sua natureza colocando-a a serviço de uma causa encarada como justa. É o que acontece, por exemplo, com Augusto Matraga contra Joãozinho Bem Bem, no conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. A questão é saber se esse homem antigo tem algum lugar na economia do homem novo.

Em caso de resposta negativa, Mendonza retornou ao mercenário que foi e perdeu sua alma. Assim, Gabriel e Mendonza estão novamente separados por mundos morais antagônicos e inconciliáveis. Mas se a ação do ex-mercador de escravos é justa, então suas opções são modos diferentes de um mesmo mundo moral. São caminhos diferentes da virtude. Nem Gabriel ousa determinar isso com certeza, deixando a Deus o julgamento: se Mendonza estiver certo, Deus o abençoará. 

Gabriel aceita o martírio e morre pacificamente conduzindo seu rebanho em procissão, não opondo resistência ao maligno. Mendonza morre no combate, opondo ao maligno a espada daqueles que viveram pela espada. Do ponto de vista mundano, todavia, ambos são derrotados. Um massacre é perpetrado, a Missão é destruída e o paraíso é vilipendiado.

O tema do paraíso perdido é recorrente durante o filme. As missões são, diversas vezes e pela boca de personagens muito distintos entre si, comparadas ao paraíso terrestre. Ao fim, os acontecimentos parecem demonstrar mais uma vez que não é possível "construir o Éden com os meios da Queda", como afirmava Cioran. O cardeal Altamirano, diante da afirmação cínica do representante português de que simplesmente o mundo é assim mesmo, relembra a responsabilidade humana: "fomos nós que o fizemos assim. Eu o fiz assim."