quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Huang Po, Buddha e o método da Iluminação


"Doutrinas existem somente para apontar na direção do espírito. Tendo visto o espírito, por que dar atenção a doutrinas?"

BODHIDHARMA, Sermão da Corrente Sanguínea

O método de iluminação espiritual é um dos temas principais dos ensinamentos e discursos do mestre Ch'an (Zen, no Japão) Huang Po. O que causa certa estranheza a seus ouvintes é a sua aparente negação da importância dos métodos espirituais transmitidos pela tradição. É preciso, no entanto, entender que essas negações aparentes adquirem seu sentido pleno quando compreendidas a partir de Sunyatta, a "vacuidade".

Na rica tradição budista Mahayana, não é raro encontrar ordens paradoxais como "se encontrar o Buddha, mate o Buddha!" dadas por mestres aos seus discípulos. A mentalidade ocidental só consegue enxergar contradição nessas declarações porque não compreende de onde elas estão sendo proferidas. Assim como o ditado Zen que diz que o mestre aponta para a Lua e o tolo olha para o dedo, o discípulo só vê o instrumento, o método, sem se atentar para o fato de que o método ele mesmo faz parte do mundo fenomênico a que se quer ultrapassar.

O grande mestre indiano Bodhidharma, considerado como o introdutor do budismo na China e como mestre das artes marciais, dizia que "seu espírito é o Buddha. Não use o Buddha para venerar o Buddha". A advertência é dirigida aos discípulos que absolutizam o método, ou mesmo hipostaziam o Buddha, transformando a natureza búdica informe em um fenômeno entre outros fenômenos. No fundo, o método e o Buddha são, tais como se apresentam a nós nessa realidade fenomênica, são ainda fenomênicos.

Não obstante, aquilo para o qual eles apontam, não é o fenomênico. Em certo sentido, o Buddha é fenômeno na medida em que se mostra a nós como algo entre outras as coisas deste mundo. Em outro sentido, o Buddha, na sua verdade última, é a realidade que ultrapassa tudo aquilo que é fenomênico. Analogamente, o método de iluminação é um fenômeno que aponta para o que ultrapassa todo fenômeno. Na sua verdade última, o método é o espírito puro sem distinções do qual fala Huang Po. Não há outro método. 

Huang Po ensina que se os discípulos querem uma fórmula essencial, basta a eles nada fixar no espírito. O corpo absoluto do Buddha é comparado metaforicamente ao céu. Não significa que o corpo do Buddha seja contido pelo céu, e sim que o corpo e o céu são uma e só realidade. Não há diferença entre um e outro, como não há diferença entre Samsara e Nirvana. O espírito do Buddha reside onde não há caracteres particulares. O mundo fenomênico não se distingue do espírito búdico como algo separado. 

O método não é mais do que esquecer os objetos e o espírito, diz Huang Po. Nesse caso, o mestre chinês se refere ao espírito individual e aos objetos que nos cercam. Mas as pessoas comuns têm receio de esquecer deles porque temem tombar no vazio sem ter onde se agarrar. A nossa natureza búdica, porém, não é um simples vazio, ela não possui início e nem fim, nem acima e nem abaixo, nem silenciosa e nem sonora, nem número e nem quantidade, , jamais se sujou ou se purificou, não possui voz, silhueta ou voz, não é antiga e nem nova, não possui lugar e nem direção.

O Buddha é o espírito puro, e o Buddha é o método. O método, portanto, não é esta sequência de práticas que supostamente conduz a alguma coisa. Mesmo o método e as práticas espirituais ainda são fenômenos. O sentido profundo do método é a negação da substancialidade do próprio método e de sua importância. Em outros termos, o método, visto a partir do espírito absoluto do Buddha onde todas as distinções desaparecem, também ele é uma entidade distinta que desaparece e deve desaparecer. Seu valor não reside nele mesmo, reside na sua negação na real Iluminação.

Como já afirmamos em outros momentos, aqui estamos usando a linguagem para ultrapassar a linguagem a fim de falar daquilo que é o fundamento das coisas e da própria linguagem. Não à toa, o budismo, e Huang Po, não preconizam o pensamento conceitual para compreender a Iluminação. Não há compreensão conceitual daquilo que ultrapassa o conceito. O que dizemos, inclusive o que Huang Po ensina verbalmente a seus discípulos, é um vestígio, uma imitação imperfeitíssima dessa realidade búdica que só é "compreendida" quando "experimentada".

Quando os mestres falam do espelho claro, por exemplo, eles usam um símile para esclarecer as pessoas de faculdades medianas e inferiores. O espírito puro é como o espelho completamente limpo que reflete tudo o que se lhe coloca à frente sem nada distorcer e sem nada acrescentar ou subtrair, mantendo sempre sua pureza original intocada. Aqueles que desejam fazer a real experiência, por assim dizer, não devem mais pensar usando esses símiles, dado que causam apego aos objetos. 

"No ser se afunda a realidade. Então, não crer em ser ou não-ser é suficiente para enxergar", arremata Huang Po. Na primeira sentença, o mestre sintetiza uma verdade metafísica profunda: nas coisas que são, isto é, nas coisas que existem ou podem existir, a realidade última que funda a existência de todas as coisas submerge ou é "escondida" por esses mesmos seres aos quais dá origem. O mundo fenomênico (ou o mundo dos entes, o mundo da limitação e das oposições), "submerge" a realidade búdica por causa de nossos apegos ou de nossas rejeições a este ou àquele ser em particular.

Toda a nossa percepção é dirigida para a distinção e separação dos entes como se eles fossem absolutamente independentes uns dos outros e como se algum deles ou alguns deles tivessem o condão de, ainda que sendo limitados como são, satisfazer completamente os nossos desejos. Então, a realidade do Buddha, que sempre está lá onde estão as coisas (sem que nenhuma delas ou a sua totalidade se constitua em real obstáculo para a Iluminação), desaparece como a Lua desaparece para o tolo que olha para o dedo que aponta. 

A segunda sentença pode dar a impressão aos ouvidos ocidentais de que se trata de uma negação pura e simples da distinção entre ser e não-ser. Se fosse esse o caso, ser e não-ser seriam igualmente inexistentes, o que equivaleria a uma afirmação do nada puro. Huang Po não afirma que a cadeira não é um ser, isto é, não é um ente existente, e nem nega a existência de tudo aquilo que é não-cadeira, nem mesmo a simples inexistência de alguns entes. Mais uma vez, é mister ter em mente a partir "de onde" o mestre fala.

O seu objetivo é evitar o apego aos métodos como se fossem fins em si mesmos ou como se conduzissem a algo a ser descoberto fora das coisas. Não crer em ser ou não-ser é enxergar a realidade na sua totalidade, na sua talidade (caráter de ser tal), como o enxerga o Buddha Tataghata, aquele que conhece a realidade tal como ela é. Não há nada a excluir ou a separar, nada que seja substancialmente separado de todo o resto, de modo que todas as oposições, como ser e não-ser, são reunidas e transcendidas no espírito puro do Buddha. 

Aquilo que transcende, não nega. Só há negação onde há entes de uma mesma natureza a serem contrapostos. O espírito puro transcende e, portanto, reúne em si, as oposições e as negações. Ser e não-ser é a oposição mais básica do mundo fenomênico, isto é, do nosso mundo limitado. Não crer em ser ou não-ser é não absolutizar as diferenças, é reuni-las naquilo que as transcende e as fundamenta. No caso do mestre Huang Po, significa reunir e transcender as dualidades e oposições na sua fonte última, o espírito puro do Buddha. Nada é perdido, tudo é remetido à sua realidade última.

Essa é a simplicidade de que fala o mestre chinês. O método consiste em tão somente não absolutizar as oposições e dualidades. É não se afundar nos entes a ponto de tomá-los como a única realidade. O método não conduz à nenhuma novidade, à nada fora daquilo mesmo que as coisas sempre foram. Não é o método, mas a transcendência do método que é a Iluminação. Vistas todas as coisas a partir de sua raiz no espírito puro, todas as oposições se esvaem, são reconduzidas a seu fundamento, transcendidas sem serem negadas ou destruídas. 

Perseguir as coisas exteriores, confundir os objetos com o espírito puro, é como reconhecer como teus filhos aqueles que te saqueiam, ensina Huang Po. É exatamente por causa da existência do desejo, do ódio e da ilusão (as fontes básicas do sofrimento humano) que existe a Iluminação. O problema não reside na realidade enquanto tal, mas em nossa tendência de nos afundarmos nas coisas, buscarmos isso e rejeitarmos aquilo, absolutizarmos as dualidades e as oposições. Nada deve ser acrescentado à nossa natureza búdica original.

O espírito puro é como céu. Se quiséssemos orná-lo de pedras preciosas, nenhuma delas se fixaria nele nem por um momento. Embora se enfeite com méritos e sabedoria, nada se fixa no espírito búdico original. Basta se desviar de sua natureza fundamental para não mais a enxergar. Isto é, basta se fixar nos entes para não mais enxergar o espírito puro. Todavia, como todas as grandes religiões afirmam, o que há de mais fundamental nas coisas e nos homens jamais é afetado, manchado, diminuído ou acrescentado em sua pureza transcendente.

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As nuvens passam pelo Monte Fuji. 
Sem este, quem as notaria? 

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

George Berkeley, metafísica e ciência moderna

"Na física, sentidos e experiência dominam, os quais alcançam somente os efeitos aparentes. Na mecânica, as noções abstratas dos matemáticos são admitidas. Na filosofia primeira ou metafísica, estamos preocupados com os entes incorpóreos, com causas, verdade, e a existência das coisas."

GEORGE BERKELEY, De Motu, parágrafo 71

O filósofo e bispo anglicano George Berkeley publicou em 1710 o Treatise Concerning the Principles of Humean Knowledge, sua obra mais importante na qual expunha os princípios epistemológicos e metafísicos de sua filosofia imaterialista. O seu ponto de partida é o mesmo de praticamente toda a filosofia moderna desde o argumento do sonho em René Descartes, a saber, a tese segundo qual o espírito humano produz ou pode produzir, parcial ou totalmente, suas próprias ideias ou representações sem nenhum auxílio ou material do mundo externo. 

O que diferencia a metafísica de Berkeley é sua eliminação da matéria ou a redução ontológica da realidade ao imaterial. No título do Treatise, o bom bispo deixa claro seu intento de combater os ateus, os céticos e os irreligiosos, e a sua estratégia é exatamente retirar dos tradicionais inimigos da fé cristã a sua base comum: o materialismo. Evidentemente, Berkeley não acha que todos os que creem na existência da matéria sejam necessariamente materialistas (os que reduzem a realidade à matéria), não obstante o fato de seu alvo serem os materialistas.

As premissas sobre as quais toda a filosofia berkeleyana está assentada são simples. O que temos em nossa mente são ideias, algumas das quais são impressões dos sentidos, paixões ou operações do espírito, e outras são formadas pela memória ou por composições e recomposições da imaginação. As ideias geralmente vêm em conjunto e de modo constante e regular, de modo que atribuímos a esse feixe de sensações unificado um nome. Vejo a cor vermelha, sinto o cheiro adocicado, provo o gosto doce, toco e sinto a textura da superfície, e se todas essas sensações vêm sempre juntas, então o conjunto chamo de maçã.

Ora, tudo isso são ideias em nosso espírito e não a suposta maçã real e independente de mim. Em outros termos, só tenho acesso às minhas percepções, e, como dito acima, percepções sensoriais são ideias. Ninguém admite que ideias tenham existência fora da mente ou do espírito que as concebe ou sente. Sendo assim, seria absurdo sugerir que haja algo que subsista na realidade fora da minha percepção ou da percepção de algum outro espírito. Existir, propriamente dito, é ser objeto de uma consciência.

Esse est percipi. Ser é ser percebido. Isto é, não há o menor sentido em pensar que haja algo que não seja percebido por alguma mente. Montanhas, rios, casas, animais, plantas existem não de forma independente de nossa percepção, mas somente e tão somente na medida em que são percebidos. O realista crê que permaneça na existência uma montanha mesmo que não seja percebida por ninguém. Berkeley argumenta que isso não faz sentido, pois o que seria uma montanha não percebida por ninguém? Um nada.

Só conhecemos o que percebemos, só percebemos nossas ideias, e nossas ideias só existem em nossa mente ou espírito. A conclusão é a de que só há na realidade espíritos e ideias. A existência do espírito ou da mente é indiscutível dado o fato inegável de que pensamos, percebemos, sentimos, e temos outros muitos estados mentais. A existência das ideias é igualmente evidente, afinal elas são o conteúdo sobre o qual a mente se debruça. Mas a matéria, os seres corporais fora de mim, não são também reais?

Berkeley responde negativamente. Descartes defendera que havia dois tipos de qualidades, as qualidades primárias e as qualidades secundárias. As primeiras seriam extensão, comprimento, largura, altura, movimento, figura, etc. As secundárias seria cor, cheiro, sabor, valor, etc. As características primárias constituiriam as propriedades da matéria e, por isso, teriam existência substancial, real e independente de nossas percepções. Já as características secundárias teriam valor meramente subjetivo, residindo na mente do sujeito.

O que Berkeley faz notar, com razão, é que as propriedades materiais como extensão, comprimento, largura, figura, etc, só aparecem para nós pelos sentidos e, portanto, são ideias tanto quanto as cores, sabores, etc. Esse é o argumento que coloca todo idealista em vantagem quando confrontado com o materialista. Em outros termos, se o materialista quer reduzir toda a realidade à matéria, qualquer que seja o seu conceito de matéria, ele tem que admitir que só tem acesso a ela por meio do espírito ou da consciência. 

O movimento de Berkeley é simples. Quando o leitor aceita a premissa de que só temos acesso às nossas percepções, todo o resto se segue naturalmente. Sendo as percepções ideias, então só conhecemos nossas ideias. Não havendo nada mais de evidente na realidade a não ser as ideias e as mentes que as concebem, a conclusão é a de que somente existe um tipo de substância no mundo: espíritos. Por sua vez, o espírito (ou a mente) não é material, não tem aquelas características extensivas da matéria.

Realiza-se assim a redução imaterialista da realidade. Berkeley é geralmente encarado como um empirista, embora seu empirismo não seja realista. O princípio do conhecimento está nos sentidos, sem dúvida. Contudo, as percepções sensoriais não nos informam de uma suposta realidade exterior e independente de nós. As percepções sensoriais são os únicos dados a que temos acesso. Segue-se daí que o empirismo de Berkeley desemboca em um idealismo, ou em um imaterialismo, ou ainda, de um modo jocoso, em um espiritismo.

A metafísica imaterialista de Berkeley terá interessantes consequências para a sua concepção das Leis da Natureza e para a sua interpretação da ciência moderna, principalmente a física de Isaac Newton. Quando inspecionamos as nossas ideias, percebemos que controlamos algumas delas (nossos movimentos, alguns de nossos pensamentos, sentimentos, etc.), mas que estamos totalmente a mercê de outras tantas, algumas até desagradáveis. Percebemos também que essas ideias sobre as quais não exercemos nenhum controle são mais vivazes e têm um curso regular, ordenado e coerente.

Essas cadeias regulares de ideias, tão sabiamente ordenadas, atestam a sabedoria e a bondade de seu Autor. Nada sabemos sobre elas a priori, temos que aprender a reconhecer seu sentido no curso da experiência. A elas damos o nome de Leis da Natureza. Tudo o que percebemos que não seja fruto de nosso arbítrio ou do arbítrio de outro espírito, e que apresente um curso uniforme no tempo é uma Lei da Natureza. O que  faz o filósofo natural, como Isaac Newton em seu Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de 1687, é descrever acuradamente essas mesmas Leis.

Ora, Newton acreditava na existência do mundo externo, e, mais ainda, na existência da matéria, tanto que na sua obra de 1704, Opticks, na Query 31, o sábio inglês especula uma teoria corpuscular da luz. Não parece que Berkeley esteja tratando das mesmas Leis que Newton. Em certo sentido, não está, e está aqui uma consequência da sua metafísica imaterialista. As Leis da Natureza são cadeias ordenadas, constantes e regulares de ideias que se apresentam ao nosso espírito de forma tão imperiosa que não as podemos controlar ou as modificar segundo nosso arbítrio.

Sabemos, entretanto, que ideias não são entes independentes das mentes que as concebem. Sabemos também que ideias são inertes, ou seja, nenhuma ideia tem o poder de mudar ou causar uma outra ideia. O único agente causal real das ideias e nas ideias é o espírito, seja ele humano ou divino. É o espírito que cria, modifica, une, compõe, recompõe, separa as suas ideias. As Leis da Natureza são cadeias regulares de ideias impostas por Deus diretamente aos espíritos humanos. 

A conclusão óbvia é a de que não há nas ideias nenhum poder causal real, de modo que o que chamamos de Natureza não se refere a nenhuma dimensão da realidade que tenha em si mesma a sua regra de desenvolvimento, que contenha poderes causais, e que opere de modo independente. A Natureza não é mais do que um conjunto de sequências regulares e ordenadas de ideias que não possuem nenhuma realidade independente dos espíritos que as concebem mentalmente.

Natura sive Deus. A Natureza é a sequência de ideias ordenadas por Deus. Note-se que, como as ideias são inertes, sem poder causal, nenhuma ideia implica naturalmente uma outra ideia. A consequência é que as Leis da Natureza são fruto única e exclusivamente da vontade de Deus. Nenhuma ideia gera ou causa outra ideia. Toda uniformidade que observamos na Natureza é meramente uma hipótese, pois nada, absolutamente nada, obriga Deus a ordenar as ideias sempre da mesma forma.

O "fundamento" da Natureza é o ocasionalismo divino. Toda e qualquer situação do mundo natural é ocasião da ação direta de Deus. A pergunta é se Berkeley pode realmente ainda falar de Natureza depois de a reduzir à vontade absolutamente livre de Deus. Tradicionalmente, concebia-se que o mundo natural havia sido criado por Deus com uma série de ordenações ou de naturezas intrínsecas às coisas que, por sua vez, se desenvolviam e operavam a partir daí de modo relativamente independente de Deus. 

O cachorro foi criado com uma determinada estrutura essencial que não varia no tempo. Talvez o cachorro pudesse ter sido criado um tanto maior ou um tanto menor, pois Deus é absolutamente livre. Ocorre que, uma vez criado, ou seja, possuindo uma natureza própria, o cachorro não precisa de Deus para atuar e operar como um cachorro. A independência na operação é um dos traços distintivos do que usamos chamar de natureza. Berkeley elimina completamente a independência operativa dos entes naturais quando os identifica a ideias inertes nos espíritos.

O bispo afirma ao final do Treatise que, para ele, a concepção da Natureza como algo distinto de Deus e das coisas percebidas pelos sentidos não passa de um som vazio e sem qualquer sentido inteligível. E acrescenta que Natureza nessa acepção é uma vã quimera introduzida por aqueles pagãos que não possuíam noções justas da onipresença e da infinita perfeição de Deus. Porém, é mais inexplicável que isso seja acolhido entre Cristãos professando fé nas Sagradas Escrituras, as quais constantemente atribuem tais efeitos à imediata mão de Deus, do que entre filósofos pagãos que costumam imputar à Natureza.

O filósofo natural, como Newton, pode identificar as Leis Naturais, usá-las para enquadrar outros fenômenos ainda não incluídos, e pode mesmo deduzir novas Leis, desde que recorde que se tratarão sempre de hipóteses sobre o comportamento costumeiro de Deus. No Scholium Generale, ao final do Principia, Isaac Newton confessa que não sabe apontar a causa da força gravitacional, e, prudente, prefere não criar hipóteses. Berkeley conhece a causa da força gravitacional. 

Au rigueur, as forças nem mesmo existem como entidades. São ideias insubstanciais produzidas constantemente pela vontade sábia e bondosa do Espírito Supremo. O imaterialismo afirma que só há na realidade um tipo de substância ou entes, o espírito ou a mente, seguindo-se disso que a única causalidade real será o poder de concepção mental. Resta explicar como a ciência moderna alcançou tantos êxitos teóricos e práticos utilizando princípios exclusivamente mecânicos se a verdadeira causalidade não reside nas coisas corporais. 

No ano de 1721, Berkeley publicou o curto tratado De Motu: Sive, de Motus Principio & Natura, et de Causa Communicationis Motuum. Seu objetivo, como indica o título, seria determinar a natureza do movimento e explicar a causa de sua comunicação nos corpos. A crítica de Berkeley se dirige imediatamente aos fundamentos das explicações mecânicas dos fenômenos observáveis. O filósofo questiona o que significariam termos como esforço, solicitação, força, gravidade na física moderna. 

Quando sentimos o peso de um corpo em nosso corpo, sentimos nosso esforço para sustentá-lo. Quando vemos um corpo caindo na direção do solo, percebemos uma aceleração. That's all. Nada na experiência concreta nos permite inferir a existência, por exemplo, de uma força gravitacional intrínseca aos corpos. Não se trata de uma qualidade sensível e observável. É uma qualidade oculta, justamente aquilo contra o qual os filósofos naturais se ergueram. 

Isaac Newton defende explicitamente em seu método que o filósofo natural deveria utilizar somente os dados que pudessem ser deduzidos dos fenômenos, denominando tudo aquilo que não pudesse ser deduzido dos fenômenos como hipóteses. Por essa razão, ele se recusava a especular no Principia sobre a causa da gravidade. Mais à frente, Newton é cuidadoso em enfatizar que considera "essas forças matematicamente, e não fisicamente, e que o leitor não deve imaginar que ele, por essas palavras, tome para si a tarefa de “definir o tipo, ou a maneira de qualquer ação, as causas ou a razão física."

Segundo Berkeley, as forças não explicam nada, são meras abstrações, meros nomes, flatus voces. A razão disso é simples, e decorre dos princípios epistemológico-metafísicos de sua filosofia. Só temos acesso a nossas percepções e estados de consciência. Portanto, qualquer atribuição de existência independente fora desses dados é fruto de um uso abusivo de nossa razão. Não vemos nada a não ser uma sequência regular de ideias na nossa consciência quando presenciamos o fenômeno da queda dos corpos.

Aristóteles explicava a gravidade, o caráter de ser grave, por uma tendência intrínseca que os corpos formados predominantemente de terra têm de se dirigir em linha reta para o solo, o seu lugar natural. Os modernos chamaram essa tendência natural de qualidade oculta (termo que tem ligações com a magia medieval), e a rejeitaram como fantasia. No entanto, Berkeley aponta, o que são as forças se não qualidades ocultas intrínsecas aos corpos? Seis por meia dúzia.

No parágrafo 17 do De Motu, o bispo explica como devem ser interpretados esses conceitos científicos:

"Força, gravidade, atração, e termos desse tipo são úteis para raciocínios e cálculos sobre corpos e corpos em movimento, não para compreender a simples natureza do movimento enquanto tal ou para indicar tantas qualidades. Como no caso da atração, que foi claramente introduzida por Newton não como uma qualidade física, verdadeira, mas somente como uma hipótese matemática. De fato, Leibniz, quando distingue o esforço elementar ou solicitação do ímpeto, admite que tais entidades não são realmente encontradas na natureza, mas têm que ser formadas por abstração."

Em termos contemporâneos, Berkeley defende uma interpretação antirrealista da física moderna. As forças não são reais, são meras hipóteses matemáticas, ficções úteis aos cálculos e raciocínios e não afirmações ontológicas sobre o que há no mundo. O que importa ao filósofo natural não é saber se a gravidade existe como um propriedade dos corpos, mas tão somente identificar o comportamento constante e regular dos corpos, as leis mais gerais do movimento, e utilizá-las para trazer cada vez mais fenômenos à regra.

"Na filosofia mecânica, a verdade e o uso dos teoremas sobre a atração mútua dos corpos se mantêm firmes, fundados exclusivamente no movimento dos corpos, quer se suponha que esse movimento seja causado pela ação dos corpos atraindo uns aos outros, quer pela ação de algum agente diferente dos corpos, impelindo-os e controlando-os. De modo similar, as tradicionais formulações de regras e leis do movimento, junto com os teoremas daí deduzidos, permanecem inabaladas, desde que os efeitos sensíveis e os raciocínios fundados sobre eles sejam garantidos, não importa se supomos que a ação em si ou a força que causa esses efeitos estejam no corpo ou em um agente incorpóreo."

A passagem acima do De Motu, resume perfeitamente a concepção antirrealista em geral. Não é necessário pensar que o mundo seja um mecanismo para empregar explicações mecânicas nos fenômenos do movimento dos corpos. Basta que os princípios mecânicos sejam encarados como hipóteses matemáticas, ou conceitos operativos, das quais se serve o físico na qualidade de auxiliares para o cálculo e para o raciocínio. Tudo se passa como se o mundo fosse mecânico.

O conceito de explicação também sofre mudanças, pois não é mais dever do filósofo natural, do físico moderno, determinar as reais causas agentes dos fenômenos. A explicação mecânica se limita a, identificadas pela experiência as leis do movimento,  solucionar com elas fenômenos particulares. Ou seja, demonstrar que o comportamento de um determinado fenômeno pode ser deduzido das leis gerais do movimento obtidas pela experiência.  

"39. E tal qual os geômetras que, por conta de sua arte, fazem uso de muitos artifícios os quais eles mesmos não podem descrever e nem encontrar na natureza das coisas, o mecânico também faz uso de certos termos gerais e abstratos, imaginando nos corpos força, ação, atração, solicitação, etc, os quais são de primeira utilidade para teorias e formulações, assim como para computações sobre movimento, mesmo se na verdade das coisas, e nos corpos realmente existentes, seriam buscados em vão, tal como as ficções dos geômetras feitas por abstração matemática."

Conceitos como espaço absoluto e tempo absoluto não podem possuir um significado realista. Um espaço sem nenhum corpo é um nada. Tempo sem as coisas que mudam é um nada. Nenhum movimento absoluto é perceptível pelos sentidos, então não há utilidade alguma em manter um referencial que pode ser substituído, for all practical purposes, pelo céu das estrelas fixas. Tomando como referência somente o movimento relativo, que é observável, todos os cálculos se mantém tão válidos quanto antes.

A primeira regra metodológica que o filósofo natural deve seguir é distinguir a hipótese matemática da natureza das coisas. A segunda é cuidar-se contra as abstrações. A terceira é considerar sempre o movimento como um fenômeno sensível, e, portanto, restringir-se ao movimento relativo, que é a quarta regra. O ponto central é que a aceitação de uma hipótese matemática não implica em compromissos ontológicos realistas. Utilizar o conceito força não significa afirmar a existência real de alguma entidade ou propriedade entre as coisas que há no mundo. A hipótese matemática é um modelo simplificado da realidade, e não a própria realidade. 

Embora Berkeley não use a expressão clássica, a sua tese está em consonância com a tradição astronômica grega segundo a qual os modelos matemáticos das órbitas inobserváveis dos planetas tinham somente que salvar os fenômenos, σῴζειν τὰ φαινόμενα. Isto é, a função do modelo era só e tão somente ser adequado empiricamente, estar de acordo com o que era observável e acurado nas suas predições. Não havia nenhum constrangimento no fato de dois modelos matemático-astronômicos incompatíveis um com o outro serem ambos adequados empiricamente. 

É exatamente o que Berkeley defende ao afirmar que "embora Newton e Torricelli pareçam estar em desacordo um com o outro, eles defendem visões consistentes, e a coisa é suficientemente explicada por ambos. Pois todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, exatamente como eram as forças atrativas nos planetas e no Sol. Entidades matemáticas, porém, não possuem uma essência estável na natureza das coisas, e dependem da noção do definidor. Consequentemente, a mesma coisa pode ser explicada de diferentes formas."

A física matemática só versa sobre aquilo que é quantitativo ou pode ser descrito em termos quantitativos. Ela não tem condições de definir uma ontologia, ou seja, é incapaz de distinguir qualitativamente um ente de um outro. Não há diferença quantitativa que distinga essencialmente um ovo de um prego. As forças, a atração e a repulsão não são coisas na realidade, mas somente quantidades mensuráveis de um je ne sais quoi que pode ser diferentemente definido. É perfeitamente possível medir e quantificar aquilo cuja natureza desconhecemos.

Resolvido o problema de como interpretar os princípios mecânicos utilizados na filosofia natural, resta saber qual a natureza do movimento e da sua comunicação nos corpos. A solução está dada desde o Treatise. Só há uma substância na realidade, o espírito ou a mente, sendo todo o resto ideias inertes produzidas por Deus ou pelos espíritos finitos. A filosofia natural encontra seu limite epistemológico naquilo que é observável, perceptível pelo espírito. Logo, seu âmbito é o das ideias ordenadas e regulares produzidas por Deus.

A fonte do conhecimento das causas eficientes reais reside em uma ciência superior, a filosofia primeira ou metafísica, cujo ofício é lidar com os entes incorpóreos, com as causas, com a verdade e com a existência das coisas. A metafísica imaterialista de Berkeley elimina a matéria enquanto um ente substancial e independente de nossas percepções, o que, consequentemente, elimina na raiz o materialismo e o mecanicismo. A filosofia natural não pode então ser o estudo da Natureza, considerada como um poder relativa ou completamente independente de Deus. 

O mecanicismo não pode ser nada além de uma hipótese matemática útil para os cálculos e os raciocínios, jamais uma ontologia do mundo sensível. No fundo, o filósofo natural é um estudioso do comportamento habitual do Autor da Natureza. O materialista, o mecanicista, o ateu e o irreligioso são refutados de uma só vez pela eliminação da substancialidade da matéria.

Cabe observar que a teoria antirrealista acerca da ciência moderna que Berkeley, embora se siga logicamente de sua metafísica imaterialista, não depende em si mesma dessa metafísica. Basta notar a sua origem na astronomia grega e a sua defesa historicamente por autores muitos diferentes entre si em termos de (ou rejeição da) metafísica. Apenas para efeito de ilustração, compare-se a posição de Berkeley sobre as hipóteses matemáticas com as teses antirrealistas de Pierre Duhem e de Bas van Frassen.

Na sua obra La Théorie Physique, o físico, matemático, historiador e filósofo francês Pierre Duhem defende que as teorias físicas são classificações naturais do comportamento observável das magnitudes físicas sem qualquer pretensão de determinar as suas reais naturezas. A física se limita a descrever matematicamente o que se observa, estando livre das disputas da metafísica que, essa sim, almeja determinar a natureza das coisas. A pedra de toque da aceitação de uma teoria física é a sua capacidade de salvar os fenômenos, a sua adequação empírica.

Em seu livro The Scientific Image, o filósofo da ciência holandês Bas Van Fraassen define o seu empiricismo construtivo como a tese segundo a qual o "objetivo da ciência é fornecer teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como crença somente que ela é empiricamente adequada". Fraassen enfatiza que, embora ela deva ser interpretada literalmente, não há nenhum compromisso de acreditar ipso facto nas entidades postuladas pela teoria. E a adequação empírica significa apenas que o que a teoria diz sobre as coisas e os eventos observáveis é verdadeiro, isto é, salva os fenômenos.

Tanto Pierre Duhem quanto Bas van Fraasen não esposam a metafísica imaterialista de Berkeley. Na realidade, o antirrealismo científico em geral não implica quaisquer comprometimentos metafísicos. No caso de Duhem, isso é ressaltado pelo próprio autor como uma das vantagens de sua teoria. A física e a metafísica estariam tão bem distintas, separadas e independentes que os resultados de uma dessas disciplinas nunca poderiam ser usados para refutar os resultados da outra.

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Para uma versão mais detalhada: 

Vista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Pierre Duhem (oleniski.blogspot.com)

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Meister Eckhart, neoplatonismo e a beatitude no Uno divino


"Toda mediação é estrangeira a Deus."

MEISTER ECKHART, Do Homem Nobre

O teólogo, filósofo e místico renano medieval (1260/1328) Meister Eckhart, em seu curto tratado sobre o homem nobre, trata do tema da verdadeira beatitude humana. Fazendo uso de uma passagem do Evangelho onde Cristo diz que "um homem nobre partiu para um país distante a fim de ali ganhar um reino e retornar em seguida" (Lc 19,12), Eckhart desenvolve sua concepção do destino último do ser humano no seio de Deus. 

Há no homem duas naturezas, a exterior e a interior. A natureza exterior é o velho homem sobre o qual falam as Escrituras, o homem carnal, voltado às coisas deste mundo, escravo, terrestre, inimigo. A natureza interior é o homem novo das Escrituras, o jovem, o amigo, o celestial, o homem nobre. Todos têm ao seu lado um anjo que inspira o desejo pelas coisas belas, eternas e virtuosas, e um demônio que as tenta com as coisas baixas, fugidias, passageiras e viciosas. 

Tal como a serpente, por intermédio de Eva, conduz Adão à Queda, o demônio, por intermédio do homem exterior, espezinha o homem interior. É justamente no homem interior, Adão, que se encontra depositada a imagem e a semelhança de Deus, a semente da natureza divina, o Filho de Deus. Ali se encontra a árvore boa que sempre dá bons frutos, ainda que seja obscurecida pela árvore má do homem exterior. Mas a semente da natureza divina, o homem interior, foi plantada por Deus e, portanto, não pode jamais ser destruída, por mais enterrada e escondida que esteja.

Eckhart faz alusão obviamente à doutrina bíblica do Gênesis segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Porém, a tradição neoplatônica, em sua visão hierárquica da realidade, afirma também que a alma tem uma "parte voltada para cima", para a realidade superior. Nas Enéadas de Plotino, por exemplo, a "descida" da alma não é a habitação da alma no corpo material, mas sim a elevação do corpo ao inteligível efetuada pela alma que permanece tal como era antes. 

Isto é, a alma não está no corpo, ela permanece em sua própria natureza imaterial (sem lugar) enquanto, ao mesmo tempo, o corpo participa, tem algo, da vida da alma. Poderíamos dizer que o corpo é que se torna real e vivo pela participação na (ou imitação da) alma, que, por seu turno, permanece em si mesma tal como era "antes" (não se trata de relação temporal) voltada às realidades superiores à ela mesma. (Enéadas, VI, 4. 16, 10-15)

Na linguagem de Eckhart, há no ser humano o homem interior e o homem exterior, este voltado às coisas deste mundo fugidio e aquele voltado às coisas celestes e eternas. Por mais que o homem exterior obscureça, esconda, enterre o homem interior, jamais conseguirá destruir sua imagem e semelhança com Deus. Isto é, há uma dimensão fundamental no ser humano que é uma semente da natureza divina que não pode ser maculada ou destruída, que é como a árvore que sempre dá bons frutos, e que brilha mesmo que esteja escondida ou enterrada.

Note-se o quanto o tema evangélico do tesouro escondido está em consonância com o que defende o mestre Eckhart: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido num campo. Alguém o encontra, deixa-o lá bem escondido e, cheio de alegria, vai vender todos os seus bens e compra aquele campo" (Mt 13, 44-52). Simbolicamente, o campo é o próprio homem que descobre em si mesmo essa dimensão fundamental escondida sob a terra de suas próprias ações mundanas e voltadas às coisas passageiras e viciosas. 

Ele deixa o tesouro lá, bem escondido, ou seja, não o pode resgatar de imediato porque ainda não pertence a ele, pertence ao homem exterior. O que ele faz é vender seus bens e comprar o campo para desencavar o tesouro e dele tomar posse. Vender seus bens é abandonar o homem exterior com seus vícios e desejos pelas coisas cambiantes e passageiras. Mais profundamente, é retirar os obstáculos, desfazer-se daquilo que está escondendo o tesouro, abrir passagem, limpar, tirar o acessório, desnudar-se, abandonar as adições feitas à sua real natureza. Ser a parteira de si mesmo.

Ora, citando Agostinho, Eckhart prossegue seu tratado afirmando que no primeiro grau do homem interior acontece quando se busca imitar os exemplos dos homens bons e santos. O segundo grau é alcançado quando não mais são seguidos os bons e os santos e sim os conselhos e a Sabedoria de Deus. No terceiro, a comunhão com o Senhor é tal que nem sequer a possibilidade de fazer o mal sem punição é mais tentadora. Só Deus interessa e tudo o que d'Ele afaste aborrece e desagrada.

Quando alcança o quarto grau, o homem está disposto a sofrer quaisquer adversidades, provas, sofrimentos e contrariedades de bom grado. No quinto grau, vive somente em si mesmo, absolutamente mergulhado na paz da Sabedoria de Deus. O grau mais avançado, o sexto, para além do qual não há nenhum outro, é o da identificação com o Eterno, no qual o homem é "despojado dele mesmo e transformado pela eternidade de Deus, quando alcança o completo esquecimento da vida temporal com tudo isso que ela tem de perecível, dirigido e transfigurado em uma imagem divina, se tornou uma criança de Deus."

O homem nobre, o homem interior, semente da natureza divina plantada nos seres humanos, diz Eckhart citando Orígenes, é comparável a um fonte d'água sobre a qual foi jogada terra até que ficasse encoberta. Tão logo se retire essa cobertura, ela voltará a ser usada como fonte. A comparação seguinte é ainda mais significativa. Ao contrário da tradição que afirma que o artista impõe à matéria a ideia da estátua que tem em sua mente, Eckhart diz que o artista remove as lascas que cobriam e escondiam a estátua. 

Essa maravilhosa imagem contraria frontalmente a concepção aristotélico-tomista da produção (ποίησις) dos artefatos. O produtor ou artista exerce sua arte (τέχνη) no curso mesmo do processo em que imprime uma Forma que estava em seu intelecto em uma matéria preexistente. Nesse caso, a arte é uma ação causal transitiva de sujeição da matéria a um padrão abstrato. Eckhart transforma o artista em uma espécie de parteiro socrático, eliminando com seus golpes, assim como Sócrates com suas perguntas, os obstáculos que encobrem e escondem a estátua, ou o conhecimento, que já está lá esperando somente para ser des-coberto.

O tema é platônico, evidentemente. Agostinho, no seu livro A Trindade, tratando do preceito délfico conhece-te a ti mesmo, exorta o leitor que deseja conhecer a sua própria alma (mens, no Latim) a abandonar os dados sensíveis e as imagens dos dados sensíveis, isto é, abandonar aquilo que não é a alma, e que a ela foi acrescentado

"E esta é a sua impureza, porque, ao tentar pensar em si sozinha, julga ser aquilo sem o qual não se pode pensar a si mesma. Quando, pois, lhe é ordenado que se conheça a si mesma, não se deve procurar como se fosse separada de si, mas deve separar de si aquilo que a si acrescentou. (A Trindade, X, 8-11)

Não é necessário sair de si mesmo, buscar algo exterior, mesmo que sejam as boas obras. O que é preciso é retirar os obstáculos, não para enxergar corretamente a realidade externa, mas para ser aquilo que sempre fomos. O homem nobre de quem Cristo fala é o homem que se desfez das imagens e de si mesmo, que se fez estrangeiro a todas as coisas, ensina Eckhart. A diferença repousa nas adições, afirmava Plotino nas Enéadas. O que resta quando todas as adições, as diferenças, são removidas? O Uno.

Eckhart enuncia então o centro de sua doutrina da beatitude asseverando que toda mediação é estrangeira a Deus. Tanto esta primeira afirmação quanto aquelas que serão apresentadas em seguida estão em consonância com a tradição neoplatônica do Uno. A questão é saber de que forma a henologia neoplatônica pode ser combinada com o trinitarismo cristão. Segundo o dogma, Deus é uma Trindade consubstancial formada por três hipóstases, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

As três Pessoas divinas possuem igualmente uma e a mesma natureza divina (ὁμοούσιος), sem que as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo firam a absoluta homogeneidade e unicidade de Deus. O neoplatonismo vê no Uno (Hen, Τὸ Ἕν) a realidade última e fonte de todas as coisas. Se toda mediação é estrangeira a Deus, a Trindade, ela mesma, não se constitui em uma mediação a ser ultrapassada? A resposta de Eckhart é neoplatônica e cristã a um só tempo.

O homem nobre encontra a beatitude no Um, a natureza divina compartilhada pelas três Pessoas. Nenhuma distinção existe na natureza de Deus e nem nas pessoas divinas segundo a unidade de sua natureza. A natureza divina é Um, e cada pessoa é igualmente Um, esse mesmo Um que é sua natureza, escreve Eckhart. Levando até as últimas consequências a consubstancialidade da Trindade, isto é, a natureza divina igualmente presente nas três Pessoas, Eckhart pode encontrar o Uno que é o fundo comum.

Em certo sentido, o místico renano quer penetrar na absoluta unicidade divina "anterior" às Pessoas. Ele preserva o dogma trinitário intacto, pois ninguém na Cristandade negará que Deus é uma Trindade consubstancial, ou seja, com a mesma substância, ou a mesma essência, ou a mesma natureza. É precisamente nesse divino consubstancial, "anterior" a tudo, o Um absoluto, que reside a beatitude. Formalmente, estão preservadas as Pessoas divinas, assim como a unicidade consubstancial que impede a Trindade de se tornar um triteísmo. 

Eckhart prossegue dizendo que "a distinção entre ser e essência é reabsorvida no Um e não faz mais do que Um. É somente quando o Um cessa de estar nele mesmo que ele recebe, possui e fornece uma distinção. Eis a razão pela qual é no Um que se encontra Deus, e também a razão pela qual aquele que quer encontrar Deus deve ele mesmo se tornar um."

No interior do Um, a distinção entre ser e essência se desfaz. Grosso modo, o ente, qualquer que ele seja, tem seu ser, sua existência, idêntico a qualquer outro existente, mas se distingue de todos os outros por sua essência, aquilo que ele é, seu modo de ser. A distinção primordial da realidade se dá entre o ser como o caráter mais universal de tudo o que existe, existiu e pode existir, e a essência, aquilo que determina à qual classe, tipo ou modo de ser o ente pertence. Por exemplo, o gato e o livro existem igualmente, porém diferem no tipo de ser que cada um é.

Eckhart, quando fala do Um, está se referindo à realidade anterior à essa distinção primordial entre ser e essência, portanto, anterior a qualquer distinção. Toda multiplicidade se dá a partir da distinção, e esta é fundada na unidade, se resolve em uma unidade subjacente. Em termos neoplatônicos, Eckhart está afirmando que Deus se encontra lá no Uno, onde a Díada é ultrapassada, e que, consequentemente, quem quer encontrar Deus deve se despojar de suas próprias características distintivas.

"Antes da Díada está o Uno. A Díada é a segunda e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe a ela definição, enquanto ele mesmo é indefinido", ensina Plotino (Enéadas, V, 1, 5). Em sua filosofia, Plotino identifica a Díada ao Ser ou Intelecto (νοῦς), onde as Ideias eternas existem justamente porque cada uma recebeu sua definição. Ali se encontra o início do mundo da Identidade e da Diferença, no qual ser X, implica necessariamente em não ser Y. 

Eckhart declara sem peias que "na distinção não se encontra o Um, nem Ser, nem Deus, nem repouso, nem beatitude, nem satisfação. Em verdade, se tu fosses verdadeiramente um, tu permanecerias igualmente um na distinção, e a distinção se tornaria para ti o Um, não podendo mais em nada te fazer algum obstáculo." A beatitude só se realiza no Um. Viver no Um é possível mesmo no mundo da distinção, tal qual se mostrou acima no sexto grau do homem interior.

"O Reino de Deus está dentro de vós", disse o Senhor. A vida beatífica começa aqui para aquele que vive no mundo da distinção interiormente mergulhado no Um. O que Eckhart está ensinando pode ser traduzido em termos metafísicos nas afirmações de que tudo aquilo que procede do Princípio necessariamente possui uma existência derivativa, e, que, portanto, nunca pode se constituir em obstáculo comparável ao Princípio. Se toda multiplicidade se reduz à uma unidade subjacente, essa unidade que serve de fundamento não pode ela mesma ser comparável com a multiplicidade a que ela dá origem.

Há uma relação de anterioridade ontológica, não temporal, entre o Um e a distinção. O Um fundamenta e dá origem à distinção não como se ela fosse algo completamente diferente dele mesmo. Não há o Um e a distinção, como se estivessem ambos no mesmo nível de realidade, só que em lados opostos. Na realidade, há o Um, e a distinção é o mesmo Um manifestado como limitação, determinação, delimitação. A distinção é, portanto, derivativa, não tem realidade em si mesma. 

Por essa razão, Ulrich de Strasburg, outro renano como Eckhart, chamava os seres limitados de falsos seres. Não porque eles não existam de nenhuma maneira, mas porque eles existem de uma forma muito tênue, derivativa e dependente de Deus, o único que realmente pode ser dito existente. Vê-se que a distinção e a multiplicidade não podem ser postas no mesmo nível do Um como se fossem opostos igualmente existentes.

Ora, sendo assim, a beatitude começa aqui e agora para aquele que enxerga tudo no Um. O homem nobre, segundo a descrição de Eckhart, é um com o Um, de tal modo que toda distinção que o cerca, justamente por sua natureza derivativa, não se constitui em obstáculo à beatitude já na vida terrestre. É assim que o homem deveria ser um, afirma Eckhart, pois Cristo disse que "o homem partiu". O que significa essa partida?

Eckhart sugere primeiramente que o significado de homem seja o do ser que se inclina e se submete inteiramente a Deus, com tudo o que ele é e possui, que eleva seus olhos a Deus e a mais nada. Essa é a perfeita humildade. Homem também significa algo que está acima da natureza, acima do tempo, e de tudo que está ao sabor do tempo. O mesmo vale para o espaço e a corporeidade. De certa maneira, o homem nada tem de semelhante com qualquer outra coisa, encontrando-se nele somente a vida, o ser, a verdade e a bondade puras. Quem é assim feito, ele somente é o homem nobre.

"O homem partiu" porque é da natureza humana verdadeira partir, deixar de ser o que é para habitar na indistinção do Um. O homem nobre é aquele cuja humildade é tão perfeita que ele se despoja inclusive de seu próprio ser, de sua própria distinção, para ser um com o Um. Imerso no Um, o homem nada tem de semelhante a qualquer outra coisa, está acima do tempo, da corporeidade, do espaço e da natureza. Toda distinção e toda multiplicidade foram suspensas. Para aquele que é um com o Um, só há o Um.

O mestre renano assevera que aqueles que conhecem Deus sem véus, conhecem também todas as criaturas. Quando alguém conhece as criaturas elas mesmas, com todas as suas distinções, denomina-se isso de conhecimento da noite. Por outro lado, quando alguém conhece as criaturas em Deus, denomina-se conhecimento da manhã, pois as criaturas são vistas sem a menor distinção, desprovidas de toda imagem, libertas de qualquer semelhança com qualquer coisa, imersas no Um que é Deus. 

O homem nobre é esse que vê tudo em Deus. Essa formulação ainda é inexata e algo enganadora. O que Eckhart quer expressar é absolutamente indizível. Nossa linguagem não foi feita para essas alturas divinas. O homem nobre é aquele que fez a renúncia de seu próprio ser, o falso ser das criaturas, e somente reconhece o Um como realidade. A profundidade metafísica do que Eckhart está defendendo passará desapercebida a um olhar superficial.

Não se trata aqui de uma concepção costumeira de beatitude, de uma comunhão paradisíaca com Deus aos moldes da piedade comum. Eckhart está dizendo que para o homem nobre a beatitude consiste, se posso formular desse modo, no retorno ao momento imediatamente anterior à sua própria criação. É óbvio que aqui as referências temporais não têm sentido literal. A ideia é que a beatitude verdadeira consiste naquela realidade pré-distinção, antes de cada coisa se tornar o que é, em que estavam todos os seres em Deus indistintamente como possíveis. 

Isso não significa que Eckhart esteja negando ou lamentando o fato da Criação. A distinção não impede o homem nobre de estar imerso no Um. O que o mestre renano está dizendo é que a verdadeira beatitude passa pelo abandono do próprio ser, pela humilde negação de sua própria substancialidade, e, consequentemente, pelo reconhecimento de que só há realmente um existente, Deus, o Um, para além de todas as distinções. Sob esse ângulo, é possível compreender melhor o que Eckhart diz em seguida sobre o homem nobre. 

Vários teólogos da época do mestre renano afirmavam que a beatitude consistia no conhecimento de que se conhece Deus. Eles argumentavam que não faria nenhuma diferença gozar do conhecimento de Deus sem a consciência de que se está conhecendo Deus. Contra eles, Eckhart opunha a sua concepção de beatitude na qual a alma contempla a Deus sem véus, e lá, "no próprio fundo de Deus, ela não sabe nada do saber e nem nada do amor, nem absolutamente nada de nada. Ela repousa inteira e exclusivamente no ser de Deus, e não conhece nada além do ser e de Deus."

Compare-se a concepção eckartiana com a seguinte passagem das Enéadas, VI, 9.7: "(...) a alma deve ignorar tudo, especialmente as coisas da percepção sensível, mas também em formas, e então, na consideração do Uno, chegar a ignorar a si mesma. E quando a alma vier a estar com o Uno, e, de certo modo, estiver comungada com ele em um grau suficiente, então ela deverá contar aos outros sobre esse contato íntimo, se for capaz." 

A alma entra em si mesma, saindo das percepções sensíveis e denão tudo o que possui forma, portanto distinção, até alcançar o Uno, ignorando a si mesma. Comunhão com o Uno, por assim dizer, implica o esquecimento de si mesmo, dado que no Uno nenhuma distinção permanece. Entretanto, essa comunhão se acontece já nessa vida dentro da distinção, pois a alma deve dar testemunho aos outros do contato íntimíssimo com o Uno. Se for capaz disso, uma vez que nossa linguagem só comporta o que é distinto.

A rejeição de Eckhart da beatitude como conhecimento do conhecimento de Deus, ou o saber que se está conhecendo Deus, também encontra paralelos na tradição neoplatônica antiga. Note-se que o conhecimento implica, sutilmente no caso dos intelectos não ligados a um corpo, uma certa dualidade entre o inteligente e o inteligido. Mesmo que o intelecto se torne aquilo que ele intelige, ainda assim o intelecto não é absolutamente idêntico ao inteligido. 

Em uma linguagem mais simples, e não totalmente correta, a questão é que o pensamento implica sempre alguma distinção entre aquele que pensa e aquilo que é pensado. Da mesma forma, o conhecimento é uma relação, como já dizia Aristóteles nas Categorias. O conhecimento é sempre conhecimento de algo. Neoplatônicos como Plotino usaram esse caráter dual da intelecção para negar ao Deus de Aristóteles, que "pensa a si mesmo", o posto de primeiro princípio.

"Aquilo que pensa é duplo, mesmo se pensa a si mesmo, e é deficiente pelo fato de que tem seu bem em seu pensamento e não em sua existência." (Enéadas, III, 9,7) Em outra passagem, é dito que "Aristóteles disse depois que o primeiro princípio era 'separado' e 'inteligível', mas quando afirmou  que ele 'pensa a si mesmo', ele não o fez mais o primeiro princípio." (Enéadas, V, 1,9). Por conseguinte, e Plotino o declara explicitamente, o primeiro princípio, o Uno, não intelige, não pensa. 

Entende-se agora facilmente por qual motivo Eckhart defende que a beatitude não é conhecimento. Se fosse conhecimento, a alma permaneceria no âmbito da distinção. Compreende-se igualmente a razão pela qual o mestre renano afirma que no Um a alma não sabe de nada sobre nada. Saber algo é "descer" ao nível da distinção, é sair do Um tal como Deus é na Sua absoluta indistinção. Nada que implique ou sugira alguma mínima distância, como o amor e o conhecimento, pode existir no Um. 

Saber que conhecemos Deus é parte da beatitude, mas não seu cerne. Muito diferente é o calor e o fogo que o calor produz. "Um homem nobre partiu para um lugar distante para ganhar um reino e depois dali retornar". O homem deve entrar em si mesmo, ser um com o Um, contemplar somente o Um, e depois "retornar", isto é, saber e conhecer que ele conhece algo de Deus. Nessa bela interpretação da passagem evangélica, Eckhart não nega o conhecimento, mas o encaixa na hierarquia ontológica da realidade. 

Saber que conhecemos algo de Deus corresponde à descida ontológica do Um à distinção, do Uno à Díada. Porém, conhecer Deus (ser um com o Um) é justamente não saber nada de nada, nem de si mesmo, pois no Um não há distinção. Na linguagem de um místico neoplatônico posterior a Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, temos de Deus somente a Douta Ignorância, pois Ele é a Possibilidade Absoluta na qual estão contidas todas as coisas na condição de coincidentia oppositorum. 

Conhecer Deus consiste em nada saber. Se o homem soubesse algo ao conhecer Deus, ele não conheceria Deus, e sim outra coisa qualquer. Conhecer Deus implica não ser mais aquilo que se é, implica perder-se completamente no fundo indistinto da realidade incognoscível do Um. "Mas você não poderá ver a minha face, porque nenhum homem poderá continuar vivo depois de me ver" (Êxodo, 33, 20). Nada há na existência ao lado do Um sem segundo. Ver Deus é deixar de existir.

O homem nobre, é preciso que se diga, não afirma sua identidade com Deus. Não se trata do orgulho luciferiano ou da tentação da serpente que sussurra "sereis como deuses". Ao contrário, o que Eckhart enfatiza é a pobreza ontológica das criaturas. Frente ao Deus verdadeiro, não somos nada, desaparecemos, e só Ele resta na Sua glófia infinita. Imagine-se a arrogância de quem ainda pretende afirmar sua existência mesmo diante do único Existente! 

É por isso que Meister Eckhart encerra seu opúsculo afirmando "o Um com o Um, o Um do Um, o Um no Um, e, no Um, eternamente Um!"

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sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Ulrich de Strasburg, neoplatonismo medieval e teologia mística


"É evidente, portanto, que o Ser divino é um ser verdadeiro, pois nada há n'Ele que não seja Ele. Ao contrário, cada criatura, porque é necessariamente um ente especial diferente dos outros, possui, além do ser comum a todos, outra coisa que penetra na natureza do ente como a determinação no determinado e que o especifica e o distingue dos outros. Com efeito, uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo fundar uma conveniência e uma diferença. Eis porque a criatura é um falso ser."

ULRICH DE STRASBURG, De Summo Bono, II, 2, 4.1

A tradição platônica (ou neoplatônica) esteve presente por toda a Idade Média principalmente pelas obras de Agostinho de Hipona e de Dionísio Areopagita. Porém, as obras de Platão, assim como as de Aristóteles e de outros pensadores gregos, em sua maioria não eram mais acessíveis aos europeus após a queda do Império Romano do Ocidente no século V. Partes do Órganon aristotélico e do Timeu platônico foram basicamente as únicas fontes da filosofia e da ciência medievais até o influxo extraordinário das traduções ao Latim das obras de Aristóteles no século XII em diante.

Junto a essas traduções de Aristóteles, e atribuídas a ele, vieram muitas obras de procedência diversa, como o Liber de Causis, que na verdade se tratava de parte dos Elementos de Teologia de Proclo, o filósofo neoplatônico do século V D.C.. Vê-se o quão errônea é a tese segundo a qual Aristóteles reinou absoluto pelos mil anos da Idade Média. Na realidade, antes de sua chegada, por assim dizer, havia uma tradição platônica muito bem assentada, e da qual se pode traçar a continuidade até Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino, Pico Della Mirandolla, e mesmo, no caso do agostinianismo, René Descartes e outros modernos.

Em seu excelente livro La Mystique Rhénane, o filósofo e historiador da filosofia medieval Alain de Libera estuda a tradição platônica que alemã da região do Reno que, sob a influência de Alberto Magno, desenvolve uma metafísica que deságua na mística de Meister Eckhart e seus discípulos. Nessa linha de desenvolvimento, há a tentativa de união e de síntese do neoplatonismo latino de Agostinho, do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita, da teologia henológica de Proclo e, logicamente, da fé cristã católica.

O frade dominicano alemão Ulrich de Strasburg (1220/1277) é um dos filósofos e teólogos dessa corrente renana, e como seu contemporâneo Tomás de Aquino, um discípulo de Alberto Magno. Apesar de compartilharem o mestre, Ulrich e Tomás seguem caminhos muito diferentes na filosofia. O neoplatonismo renano de Ulrich possui bases bem diferentes das do aristotelismo tomista.

A obra mais importante de Ulrich é De Summo Bono (Sobre o Bem Supremo), que,  segundo Alain de Libera, foi eclipsada pela Summa Theologica de Tomás de Aquino. A metafísica exposta no livro parte do Bem supremo até o bem participado, os entes, e destes sobe ao Bem supremo, como é típico do neoplatonismo. 

Segundo Ulrich, o homem pode conhecer algo de Deus pela razão natural, isto é, somente pelo uso do raciocínio filosófico sem auxílio da fé. Entretanto, é mister distinguir entre conhecer e compreender. Deus é a um só tempo cognoscível e incognoscível. Aqui Ulrich introduz algumas distinções interessantes. 

Deus é incognoscível porque o intelecto humano só apreende aquilo que é um ente ou um ser. Isto é, o ser humano só pode conhecer aquilo que é limitado, o que é isto ou aquilo. Ulrich chama os entes de primeiras emanações da divina Bondade. Essa afirmação não é estranha a quem conhece as Enéadas de Plotino, onde a incognoscibilidade do Uno se deve justamente à incapacidade do intelecto de captar aquilo que não seja delimitado.

Deus, portanto, não é um ente. É incognoscível por conta da incapacidade intelectual humana de captar aquilo que não seja um ente. Por outro lado, Deus é cognoscível, pois sendo um intelecto, alguma semelhança há entre Ele e os seres humanos, possibilitando que O conheçamos pelos Seus efeitos. Mesmo assim, não conhecemos o que Deus é (quidditas) e nem como Ele é em si mesmo.

Ulrich entende haver cinco vias de conhecimento de Deus, sendo a primeira um conhecimento confuso que é ativado pela experiência da causalidade. Todos os homens possuem naturalmente uma noção confusa, vaga, da existência de Deus. Esse instinto ou sentimento não é uma prova da existência de Deus, mas uma predisposição para a prova. Quando o ser humano tem a experiência empírica da causalidade, ele forma a noção clara de uma Causa Primeira.

A segunda via é a da negação, onde, no âmbito da teologia simbólica, afirmamos e negamos, ao mesmo tempo, um certo nome ou atributo. Por exemplo, se as Escrituras dizem que o Senhor é como um leão, negamos que Ele seja literalmente um leão ao mesmo tempo em que afirmamos que há no leão algo que recorda uma perfeição que está infinitamente em Deus. 

A terceira via é a da causalidade, segundo a qual toda perfeição que está no efeito, está também na causa. O que significa que, remontando dos efeitos às causas, chegamos ao conhecimento de que a Causa Primeira possui em Si mesma todas as perfeições que estão em todos os Seus efeitos.

A quarta via é a da eminência ou teologia mística. Tudo o que sabemos de Deus, sabemos por meio das coisas que são Seus efeitos. Contudo, quando atribuímos perfeições a Deus, nós as atribuímos segundo a medida das coisas que conhecemos, ou seja, de modo sempre limitado. Por exemplo, se dizemos que Deus é bom, a bondade que a Ele atribuímos é só a bondade limitada que conhecemos, e não a Bondade tal como é essencialmente em Deus.

Todos os termos e conceitos atribuídos a Deus, portanto, são sempre inadequados. A única forma de designar Deus é a negação por superabundância, como defendia Dionísio Areopagita. Se dissermos que Deus não é uma substância (um ente), não estamos dizendo que Ele é menos que uma substância (menos que um passarinho, por exemplo), mas, ao contrário, que Ele é suprassubstancial, acima de qualquer limitação de qualquer ente real ou possível. O termo que Dionísio Areopagita utiliza frequentemente na Teologia Mística e no Os Nomes Divinos é supraessencial (ὑπερούσιος, além do ser).

A quinta via é a perfectibilidade do intelecto. Na medida em que o intelecto humano pode sempre se elevar a realidades cada vez mais altas, mais imateriais, ele alcança as substâncias separadas, se assimila a elas, e, assim, conhece e se torna o intelecto divino. É pelo fato de o homem ser um ente intelectual que ele pode ter como fim último a perfeição de seu intelecto no conhecimento puro do intelecto divino. Não significa que haverá como conhecer Deus tal como Ele é. O intelecto humano é finito, limitado, mas, por isso mesmo, é perfectível.

Deus tem no Ser a Sua emanação primeira ou ainda a primeira forma em que todas as formas se resolvem. O que Ulrich quer dizer é que o Ser é a única criação divina, isto é, tudo o que há na realidade, tudo o que foi e tudo o que pode haver na realidade é, foi e será sempre ente, um isto ou um aquilo. Em outros termos, Ulrich está afirmando que a criação primária de Deus é a limitação, o ser isto ou o ser aquilo. E o filósofo alemão identifica o Ser com o Intelecto divino.

Nisso ele está novamente de acordo com a tradição neoplatônica do Uno e da Díada Indeterminada que é afirmada também nas Enéadas. O Uno é a origem do Nous (o Intelecto ou o Ser), o cosmos noético onde residem as Ideias ou Formas, os modelos eternos de todas as coisas deste mundo. É no Intelecto que nasce a multiplicidade e, portanto, a limitação, pois uma Ideia não pode ser idêntica formalmente à outra Ideia. Na Enéada V, 4.2, o divino Plotino afirma que: 

"A intelecção vê o inteligível e se volta para ele, sendo dessa forma tornado perfeito. Ele é, de si mesmo, indefinido como a visão, e tornado definido pelo inteligível. Por essa razão é dito que 'da Díada Indeterminada e do Uno' vêm as Formas ou Números. Pois isso é o Intelecto."

Então, o Intelecto divino de Ulrich é o Ser indeterminado, o Ser enquanto Ser, que só se determina e se manifesta nos seres, nisto e naquilo, da mesma forma em que são as Ideias que manifestam de modo determinado o poder indeterminado do Intelecto de inteligir algo. Não será errôneo, creio, afirmar que o Intelecto ou o Ser de Ulrich, a primeira emanação, possa ser entendido como o princípio de determinação dos seres, e, por isso mesmo, o princípio da criação dos seres. 

Todo ente, qualquer que seja, para entrar na realidade, deve já estar determinado, limitado, definido dentro de certas categorias, espécies, gêneros, classes, etc. O Ser de Ulrich é o princípio determinante que "coloca" cada ente na realidade por meio de sua determinação dentro de algumas dessas categorias, espécies, gêneros, etc. O Ser é a determinação primeira e fundamental de todo e qualquer ente.

Contudo, o frade dominicano alemão, enquanto católico, reconhece que o nome de Deus proclamado nas Escrituras, Eu Sou Aquele que Sou (Êxodo 3,14), se refere à essência divina. A questão é como conciliar essa afirmação com a distinção neoplatônica realizada acima entre Deus e o Ser. Ulrich admite que biblicamente Deus é o Quid Est, Aquele que é, mas uma distinção capital deve ser feita entre o que significa Ser em Deus e nas coisas.

Ora, obviamente, por tudo o que foi dito anteriormente, não há comparação entre Deus e os entes finitos. Logo, ao afirmar que Ele é Aquele que é, as Escrituras se referiam não ao modo de ser dos entes deste mundo, mas sim a um Ser Absoluto. O que equivale, segundo Ulrich, a dizer que Deus é suprasser ou supraessencial. Em certo sentido, em analogia com os entes, Deus não é um ente como um passarinho é um ente. Em outro, enquanto fonte eterna de tudo, só Ele merece realmente o nome de Ser. Só Deus existe no sentido pleno da palavra, as coisas existem somente em sentido análogo.

Ulrich repete aqui a distinção neoplatônica entre o Uno e o Ser ou Intelecto, aplicando-a ao texto bíblico de modo a afirmar que, assim como o Uno, Deus não é o Ser considerado como um princípio de delimitação e de multiplicidade que une todos os entes, mas, por outro lado, Deus é o Ser quando este é considerado como uma afirmação da Sua absoluta existência como fonte última de tudo aquilo que há e pode haver. É enquanto Causa Primeira dos entes que pode se afirmar alguma analogia, alguma comparação, entre Deus e as criaturas.

Creio que é possível afirmar que distinção entre Deus e os entes (ou criaturas) reside exatamente na distinção. Assim como o tempo só existe para os entes do mundo temporal, a distinção só existe para os entes distintos. Apesar de não ser uma afirmação explícita de Ulrich, o que vai acima parece se encaixar bem na tese do dominicano alemão segundo a qual "o Ser divino é um ser verdadeiro, porque nada há n'Ele que não seja Ele." 

Como disse anteriormente, todo ente para entrar na realidade já entra determinado, limitado, definido por alguma espécie, classe, tipo, etc. Todos os entes possuem em comum a característica de que eles só existem sendo algo, sendo instância ou exemplar de um tipo de ser. Essa é a primeira e fundamental determinação a partir da qual todas as outras se seguirão, como as potencialidades próprias do  tipo de ser que o ente é, as possibilidades e as impossibilidades daquele tipo de ente, etc. 

Todavia, o que a coisa é distingue-se da sua existência. O livro existe tanto quanto o computador no qual escrevo, mas ninguém diria que um livro é um computador. No simples ato de existir, o livro e o computador não se distinguem. No ato de existir como um livro ou como um computador eles se distinguem absolutamente. Isto é, o modo de ser de um livro é diferente do modo de ser de um computador. A distinção nasce no modo de ser do ente.

Em Deus nada há de distinto, portanto nada há de limitado. Por essa razão Ele existe no pleno sentido da palavra, simpliciter. Os entes só existem em um sentido análogo, não possuem seu ser, mas o recebem de um outro. Cada um dos entes deste mundo, individualmente, passou a existir, teve uma causa. Isso significa que receberam a existência de outro. Não possuem a existência como algo que lhes seja próprio. Os entes, diz Ulrich de Strasburg, possuem um falso ser (falsum ens).*

Os entes não possuem o ser por si mesmos, só existem porque uma causa já existente as trouxe à existência. O ente é um nada em potência. Diz Ulrich sobre o ente que "...o ser não se encontra nele absolutamente, não possui existência a não ser por conta de sua causa, é um não-ser em potência; 'em potência', no sentido da potência condicionada, isto é, na previsão do caso onde onde a influência de sua causa seria retirada. Essa potência a não-ser é aquela de um nada."

O que o frade dominicano alemão quer dizer não é de difícil compreensão. Os entes deste mundo só existem na medida em que são trazidos à existência por outros já existentes, e são mantidos na existência por uma série de condições. Retiradas as causas e as condições, os entes retornariam à não existência, ao nada. Por isso, aos entes não cabe plenamente os termos ser existir. Existindo, as coisas tendem ao nada, porque por si mesmas elas são nada. 

Não houvesse Deus, a Causa Primeira, o verdadeiro existente, não haveria nenhum ente na realidade. A existência divina, no entanto, não é a de um ente, de um isto ou de um aquilo. O Ser de Deus é a pura existência sem determinação. Ausentes as determinações, estarão ausentes as limitações ontológicas que caracterizam os entes. O que é ilimitado não necessita de causa, é Ele mesmo a Causa de tudo.

Como assinala Alain de Libera, em Ulrich de Strasburg, acontece uma síntese do neoplatonismo latino de Agostinho centrado na metafísica do Ser e do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita centrado na henologia do Uno. Por conta do texto bíblico, o frade alemão reinterpreta o Eu Sou Aquele que Sou do Gênesis em termos neoplatônicos. O Ser ou Intelecto, que na teologia natural de Ulrich era a primeira emanação de Deus, correspondia perfeitamente ao esquema neoplatônico do Uno e do Ser ou Intelecto.

Logicamente decorria daí o apofatismo da teologia mística, dado que tudo o que o ser humano poderia captar com seu intelecto limitado estava contido de forma principial no Ser ou Intelecto, para além do qual havia somente a realidade indizível e incognoscível de Deus assimilado ao Uno livre de toda multiplicidade e de toda delimitação. O mundo do Ser, ou seja, o mundo dos entes, era a emanação primordial de Deus, o supraessencial, o Uno indizível para além do Ser.

A partir desse ponto de vista, não haveria nenhum problema em dizer que Deus não é um ente, ou, mais ousadamente, que Deus é Não-Ser, ou pior, que Deus não existe. A negação da teologia mística, da teologia apofática, não é uma simples privação, como dizer "João não é rico". A negação é uma medida de preservação da absoluta transcendência do Princípio de todas as coisas. Afirmar que Deus é bom é correto, mas somente na medida em que temos em mente que a bondade é um termo limitado, relativo, e, portanto, inadequado para se referir ao Princípio.

A distinção só existe para o distinto, então o que para nós aparece como perfeições distintas ou separadas (bondade, razão, amor, etc.), em Deus são uma só e mesma coisa infinitamente. A definição do discurso apofático que formulei e utilizo é a de que o apofatismo afirma a perfeição para negar a imperfeição, e nega a perfeição para negar imperfeição. Isto é, toda perfeição é justamente atribuída a Deus para que nenhuma imperfeição seja pensada em relação a Ele, porém, ao mesmo tempo, é necessário negar até mesmo essas perfeições que atribuímos a Deus, não porque Ele não as possua, mas porque elas são imperfeitas quando comparadas à infinitude divina.

Afirmar apofaticamente que Deus é Não-Ser, ou mesmo que Ele é Nada, não significa privar Deus da existência. Significa enfatizar o fato de que os termos e os conceitos humanos, ainda que sejam os mais elevados possíveis, não podem definir o que Deus é. Quando um místico afirma que Deus é Nada, não se refere à absoluta ausência de qualquer coisa, ou à simples inexistência de algo. O místico se refere justamente àquele fundo sem determinações, o Uno, ou Deus, que ultrapassa o Ser, o mundo dos seres determinados. 

Se a nossa linguagem, os nossos conceitos e o nosso intelecto só podem lidar com o que é delimitado, então que outro nome dar à essa realidade divina que está para além das determinações senão Não-Ser ou, mais diretamente, Nada? Não à toa, na sequência da mística renana, Meister Eckhart chamará Deus, entre outros termos, de Uno, de Fundo e, finalmente, de Nada. 

A linguagem bíblica, no entanto, denominava Deus como Aquele que É, uma afirmação da perfeição do Ser divino. Ulrich de Strasburg efetua uma apofatização da metafísica do Ser na medida em que considera que o ser dos entes, o ser das criaturas, é sempre derivativo, proveniente de um outro, justamente porque cada ente têm, além de sua existência, uma determinação essencial que o torna um isto ou um aquilo. Nenhuma determinação se encontra em Deus. Ele não é um isto ou um aquilo.

Por isso mesmo, a existência divina não é limitada como a dos entes. Comparados a Deus, as criaturas são falsos seres. Se retirarmos tudo o que é falso, permanecerá somente o que é verdadeiro. Retirando os falsos seres, permanecerá o verdadeiro Ser. Os entes são caracterizados por suas determinações. Eliminando as determinações, vão-se os falsos seres. O que resta é o Ser puro, a existência sem determinação. O que o homem pode dizer do puro Ser destituído de todas as determinações possíveis? 

Que Deus é Nada.

...

* Alain de Libera, em uma nota, cita o comentário de Alberto Magno ao Os Nomes Divinos de Dionísio Areopagita onde o mestre de Ulrich faz declarações semelhantes, embora não idênticas, sobre o ser dos entes: "Creatura non habet verum esse, quia habet esse ab alio. (...) Ens creatum non habet verum esse, quia in comparatione Dei, qui vere est, alia nihil sunt." A criatura não tem ser verdadeiro por receber o ser de outro. O ente criado não possui verdadeiro ser, pois em comparação com Deus, que verdadeiramente é, nenhuma das outras coisas são.