sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Ulrich de Strasburg, neoplatonismo medieval e teologia mística


"É evidente, portanto, que o Ser divino é um ser verdadeiro, pois nada há n'Ele que não seja Ele. Ao contrário, cada criatura, porque é necessariamente um ente especial diferente dos outros, possui, além do ser comum a todos, outra coisa que penetra na natureza do ente como a determinação no determinado e que o especifica e o distingue dos outros. Com efeito, uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo fundar uma conveniência e uma diferença. Eis porque a criatura é um falso ser."

ULRICH DE STRASBURG, De Summo Bono, II, 2, 4.1

A tradição platônica (ou neoplatônica) esteve presente por toda a Idade Média principalmente pelas obras de Agostinho de Hipona e de Dionísio Areopagita. Porém, as obras de Platão, assim como as de Aristóteles e de outros pensadores gregos, em sua maioria não eram mais acessíveis aos europeus após a queda do Império Romano do Ocidente no século V. Partes do Órganon aristotélico e do Timeu platônico foram basicamente as únicas fontes da filosofia e da ciência medievais até o influxo extraordinário das traduções ao Latim das obras de Aristóteles no século XII em diante.

Junto a essas traduções de Aristóteles, e atribuídas a ele, vieram muitas obras de procedência diversa, como o Liber de Causis, que na verdade se tratava de parte dos Elementos de Teologia de Proclo, o filósofo neoplatônico do século V D.C.. Vê-se o quão errônea é a tese segundo a qual Aristóteles reinou absoluto pelos mil anos da Idade Média. Na realidade, antes de sua chegada, por assim dizer, havia uma tradição platônica muito bem assentada, e da qual se pode traçar a continuidade até Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino, Pico Della Mirandolla, e mesmo, no caso do agostinianismo, René Descartes e outros modernos.

Em seu excelente livro La Mystique Rhénane, o filósofo e historiador da filosofia medieval Alain de Libera estuda a tradição platônica que alemã da região do Reno que, sob a influência de Alberto Magno, desenvolve uma metafísica que deságua na mística de Meister Eckhart e seus discípulos. Nessa linha de desenvolvimento, há a tentativa de união e de síntese do neoplatonismo latino de Agostinho, do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita, da teologia henológica de Proclo e, logicamente, da fé cristã católica.

O frade dominicano alemão Ulrich de Strasburg (1220/1277) é um dos filósofos e teólogos dessa corrente renana, e como seu contemporâneo Tomás de Aquino, um discípulo de Alberto Magno. Apesar de compartilharem o mestre, Ulrich e Tomás seguem caminhos muito diferentes na filosofia. O neoplatonismo renano de Ulrich possui bases bem diferentes das do aristotelismo tomista.

A obra mais importante de Ulrich é De Summo Bono (Sobre o Bem Supremo), que,  segundo Alain de Libera, foi eclipsada pela Summa Theologica de Tomás de Aquino. A metafísica exposta no livro parte do Bem supremo até o bem participado, os entes, e destes sobe ao Bem supremo, como é típico do neoplatonismo. 

Segundo Ulrich, o homem pode conhecer algo de Deus pela razão natural, isto é, somente pelo uso do raciocínio filosófico sem auxílio da fé. Entretanto, é mister distinguir entre conhecer e compreender. Deus é a um só tempo cognoscível e incognoscível. Aqui Ulrich introduz algumas distinções interessantes. 

Deus é incognoscível porque o intelecto humano só apreende aquilo que é um ente ou um ser. Isto é, o ser humano só pode conhecer aquilo que é limitado, o que é isto ou aquilo. Ulrich chama os entes de primeiras emanações da divina Bondade. Essa afirmação não é estranha a quem conhece as Enéadas de Plotino, onde a incognoscibilidade do Uno se deve justamente à incapacidade do intelecto de captar aquilo que não seja delimitado.

Deus, portanto, não é um ente. É incognoscível por conta da incapacidade intelectual humana de captar aquilo que não seja um ente. Por outro lado, Deus é cognoscível, pois sendo um intelecto, alguma semelhança há entre Ele e os seres humanos, possibilitando que O conheçamos pelos Seus efeitos. Mesmo assim, não conhecemos o que Deus é (quidditas) e nem como Ele é em si mesmo.

Ulrich entende haver cinco vias de conhecimento de Deus, sendo a primeira um conhecimento confuso que é ativado pela experiência da causalidade. Todos os homens possuem naturalmente uma noção confusa, vaga, da existência de Deus. Esse instinto ou sentimento não é uma prova da existência de Deus, mas uma predisposição para a prova. Quando o ser humano tem a experiência empírica da causalidade, ele forma a noção clara de uma Causa Primeira.

A segunda via é a da negação, onde, no âmbito da teologia simbólica, afirmamos e negamos, ao mesmo tempo, um certo nome ou atributo. Por exemplo, se as Escrituras dizem que o Senhor é como um leão, negamos que Ele seja literalmente um leão ao mesmo tempo em que afirmamos que há no leão algo que recorda uma perfeição que está infinitamente em Deus. 

A terceira via é a da causalidade, segundo a qual toda perfeição que está no efeito, está também na causa. O que significa que, remontando dos efeitos às causas, chegamos ao conhecimento de que a Causa Primeira possui em Si mesma todas as perfeições que estão em todos os Seus efeitos.

A quarta via é a da eminência ou teologia mística. Tudo o que sabemos de Deus, sabemos por meio das coisas que são Seus efeitos. Contudo, quando atribuímos perfeições a Deus, nós as atribuímos segundo a medida das coisas que conhecemos, ou seja, de modo sempre limitado. Por exemplo, se dizemos que Deus é bom, a bondade que a Ele atribuímos é só a bondade limitada que conhecemos, e não a Bondade tal como é essencialmente em Deus.

Todos os termos e conceitos atribuídos a Deus, portanto, são sempre inadequados. A única forma de designar Deus é a negação por superabundância, como defendia Dionísio Areopagita. Se dissermos que Deus não é uma substância (um ente), não estamos dizendo que Ele é menos que uma substância (menos que um passarinho, por exemplo), mas, ao contrário, que Ele é suprassubstancial, acima de qualquer limitação de qualquer ente real ou possível. O termo que Dionísio Areopagita utiliza frequentemente na Teologia Mística e no Os Nomes Divinos é supraessencial (ὑπερούσιος, além do ser).

A quinta via é a perfectibilidade do intelecto. Na medida em que o intelecto humano pode sempre se elevar a realidades cada vez mais altas, mais imateriais, ele alcança as substâncias separadas, se assimila a elas, e, assim, conhece e se torna o intelecto divino. É pelo fato de o homem ser um ente intelectual que ele pode ter como fim último a perfeição de seu intelecto no conhecimento puro do intelecto divino. Não significa que haverá como conhecer Deus tal como Ele é. O intelecto humano é finito, limitado, mas, por isso mesmo, é perfectível.

Deus tem no Ser a Sua emanação primeira ou ainda a primeira forma em que todas as formas se resolvem. O que Ulrich quer dizer é que o Ser é a única criação divina, isto é, tudo o que há na realidade, tudo o que foi e tudo o que pode haver na realidade é, foi e será sempre ente, um isto ou um aquilo. Em outros termos, Ulrich está afirmando que a criação primária de Deus é a limitação, o ser isto ou o ser aquilo. E o filósofo alemão identifica o Ser com o Intelecto divino.

Nisso ele está novamente de acordo com a tradição neoplatônica do Uno e da Díada Indeterminada que é afirmada também nas Enéadas. O Uno é a origem do Nous (o Intelecto ou o Ser), o cosmos noético onde residem as Ideias ou Formas, os modelos eternos de todas as coisas deste mundo. É no Intelecto que nasce a multiplicidade e, portanto, a limitação, pois uma Ideia não pode ser idêntica formalmente à outra Ideia. Na Enéada V, 4.2, o divino Plotino afirma que: 

"A intelecção vê o inteligível e se volta para ele, sendo dessa forma tornado perfeito. Ele é, de si mesmo, indefinido como a visão, e tornado definido pelo inteligível. Por essa razão é dito que 'da Díada Indeterminada e do Uno' vêm as Formas ou Números. Pois isso é o Intelecto."

Então, o Intelecto divino de Ulrich é o Ser indeterminado, o Ser enquanto Ser, que só se determina e se manifesta nos seres, nisto e naquilo, da mesma forma em que são as Ideias que manifestam de modo determinado o poder indeterminado do Intelecto de inteligir algo. Não será errôneo, creio, afirmar que o Intelecto ou o Ser de Ulrich, a primeira emanação, possa ser entendido como o princípio de determinação dos seres, e, por isso mesmo, o princípio da criação dos seres. 

Todo ente, qualquer que seja, para entrar na realidade, deve já estar determinado, limitado, definido dentro de certas categorias, espécies, gêneros, classes, etc. O Ser de Ulrich é o princípio determinante que "coloca" cada ente na realidade por meio de sua determinação dentro de algumas dessas categorias, espécies, gêneros, etc. O Ser é a determinação primeira e fundamental de todo e qualquer ente.

Contudo, o frade dominicano alemão, enquanto católico, reconhece que o nome de Deus proclamado nas Escrituras, Eu Sou Aquele que Sou (Êxodo 3,14), se refere à essência divina. A questão é como conciliar essa afirmação com a distinção neoplatônica realizada acima entre Deus e o Ser. Ulrich admite que biblicamente Deus é o Quid Est, Aquele que é, mas uma distinção capital deve ser feita entre o que significa Ser em Deus e nas coisas.

Ora, obviamente, por tudo o que foi dito anteriormente, não há comparação entre Deus e os entes finitos. Logo, ao afirmar que Ele é Aquele que é, as Escrituras se referiam não ao modo de ser dos entes deste mundo, mas sim a um Ser Absoluto. O que equivale, segundo Ulrich, a dizer que Deus é suprasser ou supraessencial. Em certo sentido, em analogia com os entes, Deus não é um ente como um passarinho é um ente. Em outro, enquanto fonte eterna de tudo, só Ele merece realmente o nome de Ser. Só Deus existe no sentido pleno da palavra, as coisas existem somente em sentido análogo.

Ulrich repete aqui a distinção neoplatônica entre o Uno e o Ser ou Intelecto, aplicando-a ao texto bíblico de modo a afirmar que, assim como o Uno, Deus não é o Ser considerado como um princípio de delimitação e de multiplicidade que une todos os entes, mas, por outro lado, Deus é o Ser quando este é considerado como uma afirmação da Sua absoluta existência como fonte última de tudo aquilo que há e pode haver. É enquanto Causa Primeira dos entes que pode se afirmar alguma analogia, alguma comparação, entre Deus e as criaturas.

Creio que é possível afirmar que distinção entre Deus e os entes (ou criaturas) reside exatamente na distinção. Assim como o tempo só existe para os entes do mundo temporal, a distinção só existe para os entes distintos. Apesar de não ser uma afirmação explícita de Ulrich, o que vai acima parece se encaixar bem na tese do dominicano alemão segundo a qual "o Ser divino é um ser verdadeiro, porque nada há n'Ele que não seja Ele." 

Como disse anteriormente, todo ente para entrar na realidade já entra determinado, limitado, definido por alguma espécie, classe, tipo, etc. Todos os entes possuem em comum a característica de que eles só existem sendo algo, sendo instância ou exemplar de um tipo de ser. Essa é a primeira e fundamental determinação a partir da qual todas as outras se seguirão, como as potencialidades próprias do  tipo de ser que o ente é, as possibilidades e as impossibilidades daquele tipo de ente, etc. 

Todavia, o que a coisa é distingue-se da sua existência. O livro existe tanto quanto o computador no qual escrevo, mas ninguém diria que um livro é um computador. No simples ato de existir, o livro e o computador não se distinguem. No ato de existir como um livro ou como um computador eles se distinguem absolutamente. Isto é, o modo de ser de um livro é diferente do modo de ser de um computador. A distinção nasce no modo de ser do ente.

Em Deus nada há de distinto, portanto nada há de limitado. Por essa razão Ele existe no pleno sentido da palavra, simpliciter. Os entes só existem em um sentido análogo, não possuem seu ser, mas o recebem de um outro. Cada um dos entes deste mundo, individualmente, passou a existir, teve uma causa. Isso significa que receberam a existência de outro. Não possuem a existência como algo que lhes seja próprio. Os entes, diz Ulrich de Strasburg, possuem um falso ser (falsum ens).*

Os entes não possuem o ser por si mesmos, só existem porque uma causa já existente as trouxe à existência. O ente é um nada em potência. Diz Ulrich sobre o ente que "...o ser não se encontra nele absolutamente, não possui existência a não ser por conta de sua causa, é um não-ser em potência; 'em potência', no sentido da potência condicionada, isto é, na previsão do caso onde onde a influência de sua causa seria retirada. Essa potência a não-ser é aquela de um nada."

O que o frade dominicano alemão quer dizer não é de difícil compreensão. Os entes deste mundo só existem na medida em que são trazidos à existência por outros já existentes, e são mantidos na existência por uma série de condições. Retiradas as causas e as condições, os entes retornariam à não existência, ao nada. Por isso, aos entes não cabe plenamente os termos ser existir. Existindo, as coisas tendem ao nada, porque por si mesmas elas são nada. 

Não houvesse Deus, a Causa Primeira, o verdadeiro existente, não haveria nenhum ente na realidade. A existência divina, no entanto, não é a de um ente, de um isto ou de um aquilo. O Ser de Deus é a pura existência sem determinação. Ausentes as determinações, estarão ausentes as limitações ontológicas que caracterizam os entes. O que é ilimitado não necessita de causa, é Ele mesmo a Causa de tudo.

Como assinala Alain de Libera, em Ulrich de Strasburg, acontece uma síntese do neoplatonismo latino de Agostinho centrado na metafísica do Ser e do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita centrado na henologia do Uno. Por conta do texto bíblico, o frade alemão reinterpreta o Eu Sou Aquele que Sou do Gênesis em termos neoplatônicos. O Ser ou Intelecto, que na teologia natural de Ulrich era a primeira emanação de Deus, correspondia perfeitamente ao esquema neoplatônico do Uno e do Ser ou Intelecto.

Logicamente decorria daí o apofatismo da teologia mística, dado que tudo o que o ser humano poderia captar com seu intelecto limitado estava contido de forma principial no Ser ou Intelecto, para além do qual havia somente a realidade indizível e incognoscível de Deus assimilado ao Uno livre de toda multiplicidade e de toda delimitação. O mundo do Ser, ou seja, o mundo dos entes, era a emanação primordial de Deus, o supraessencial, o Uno indizível para além do Ser.

A partir desse ponto de vista, não haveria nenhum problema em dizer que Deus não é um ente, ou, mais ousadamente, que Deus é Não-Ser, ou pior, que Deus não existe. A negação da teologia mística, da teologia apofática, não é uma simples privação, como dizer "João não é rico". A negação é uma medida de preservação da absoluta transcendência do Princípio de todas as coisas. Afirmar que Deus é bom é correto, mas somente na medida em que temos em mente que a bondade é um termo limitado, relativo, e, portanto, inadequado para se referir ao Princípio.

A distinção só existe para o distinto, então o que para nós aparece como perfeições distintas ou separadas (bondade, razão, amor, etc.), em Deus são uma só e mesma coisa infinitamente. A definição do discurso apofático que formulei e utilizo é a de que o apofatismo afirma a perfeição para negar a imperfeição, e nega a perfeição para negar imperfeição. Isto é, toda perfeição é justamente atribuída a Deus para que nenhuma imperfeição seja pensada em relação a Ele, porém, ao mesmo tempo, é necessário negar até mesmo essas perfeições que atribuímos a Deus, não porque Ele não as possua, mas porque elas são imperfeitas quando comparadas à infinitude divina.

Afirmar apofaticamente que Deus é Não-Ser, ou mesmo que Ele é Nada, não significa privar Deus da existência. Significa enfatizar o fato de que os termos e os conceitos humanos, ainda que sejam os mais elevados possíveis, não podem definir o que Deus é. Quando um místico afirma que Deus é Nada, não se refere à absoluta ausência de qualquer coisa, ou à simples inexistência de algo. O místico se refere justamente àquele fundo sem determinações, o Uno, ou Deus, que ultrapassa o Ser, o mundo dos seres determinados. 

Se a nossa linguagem, os nossos conceitos e o nosso intelecto só podem lidar com o que é delimitado, então que outro nome dar à essa realidade divina que está para além das determinações senão Não-Ser ou, mais diretamente, Nada? Não à toa, na sequência da mística renana, Meister Eckhart chamará Deus, entre outros termos, de Uno, de Fundo e, finalmente, de Nada. 

A linguagem bíblica, no entanto, denominava Deus como Aquele que É, uma afirmação da perfeição do Ser divino. Ulrich de Strasburg efetua uma apofatização da metafísica do Ser na medida em que considera que o ser dos entes, o ser das criaturas, é sempre derivativo, proveniente de um outro, justamente porque cada ente têm, além de sua existência, uma determinação essencial que o torna um isto ou um aquilo. Nenhuma determinação se encontra em Deus. Ele não é um isto ou um aquilo.

Por isso mesmo, a existência divina não é limitada como a dos entes. Comparados a Deus, as criaturas são falsos seres. Se retirarmos tudo o que é falso, permanecerá somente o que é verdadeiro. Retirando os falsos seres, permanecerá o verdadeiro Ser. Os entes são caracterizados por suas determinações. Eliminando as determinações, vão-se os falsos seres. O que resta é o Ser puro, a existência sem determinação. O que o homem pode dizer do puro Ser destituído de todas as determinações possíveis? 

Que Deus é Nada.

...

* Alain de Libera, em uma nota, cita o comentário de Alberto Magno ao Os Nomes Divinos de Dionísio Areopagita onde o mestre de Ulrich faz declarações semelhantes, embora não idênticas, sobre o ser dos entes: "Creatura non habet verum esse, quia habet esse ab alio. (...) Ens creatum non habet verum esse, quia in comparatione Dei, qui vere est, alia nihil sunt." A criatura não tem ser verdadeiro por receber o ser de outro. O ente criado não possui verdadeiro ser, pois em comparação com Deus, que verdadeiramente é, nenhuma das outras coisas são.

Um comentário:

Mauricio santos disse...

Interessante como a base do pensamento da Não Dualidade se manifesta em diversas culturas...sempre muito bom os textos aqui