quinta-feira, 17 de agosto de 2023

George Berkeley, metafísica e ciência moderna

"Na física, sentidos e experiência dominam, os quais alcançam somente os efeitos aparentes. Na mecânica, as noções abstratas dos matemáticos são admitidas. Na filosofia primeira ou metafísica, estamos preocupados com os entes incorpóreos, com causas, verdade, e a existência das coisas."

GEORGE BERKELEY, De Motu, parágrafo 71

O filósofo e bispo anglicano George Berkeley publicou em 1710 o Treatise Concerning the Principles of Humean Knowledge, sua obra mais importante na qual expunha os princípios epistemológicos e metafísicos de sua filosofia imaterialista. O seu ponto de partida é o mesmo de praticamente toda a filosofia moderna desde o argumento do sonho em René Descartes, a saber, a tese segundo qual o espírito humano produz ou pode produzir, parcial ou totalmente, suas próprias ideias ou representações sem nenhum auxílio ou material do mundo externo. 

O que diferencia a metafísica de Berkeley é sua eliminação da matéria ou a redução ontológica da realidade ao imaterial. No título do Treatise, o bom bispo deixa claro seu intento de combater os ateus, os céticos e os irreligiosos, e a sua estratégia é exatamente retirar dos tradicionais inimigos da fé cristã a sua base comum: o materialismo. Evidentemente, Berkeley não acha que todos os que creem na existência da matéria sejam necessariamente materialistas (os que reduzem a realidade à matéria), não obstante o fato de seu alvo serem os materialistas.

As premissas sobre as quais toda a filosofia berkeleyana está assentada são simples. O que temos em nossa mente são ideias, algumas das quais são impressões dos sentidos, paixões ou operações do espírito, e outras são formadas pela memória ou por composições e recomposições da imaginação. As ideias geralmente vêm em conjunto e de modo constante e regular, de modo que atribuímos a esse feixe de sensações unificado um nome. Vejo a cor vermelha, sinto o cheiro adocicado, provo o gosto doce, toco e sinto a textura da superfície, e se todas essas sensações vêm sempre juntas, então o conjunto chamo de maçã.

Ora, tudo isso são ideias em nosso espírito e não a suposta maçã real e independente de mim. Em outros termos, só tenho acesso às minhas percepções, e, como dito acima, percepções sensoriais são ideias. Ninguém admite que ideias tenham existência fora da mente ou do espírito que as concebe ou sente. Sendo assim, seria absurdo sugerir que haja algo que subsista na realidade fora da minha percepção ou da percepção de algum outro espírito. Existir, propriamente dito, é ser objeto de uma consciência.

Esse est percipi. Ser é ser percebido. Isto é, não há o menor sentido em pensar que haja algo que não seja percebido por alguma mente. Montanhas, rios, casas, animais, plantas existem não de forma independente de nossa percepção, mas somente e tão somente na medida em que são percebidos. O realista crê que permaneça na existência uma montanha mesmo que não seja percebida por ninguém. Berkeley argumenta que isso não faz sentido, pois o que seria uma montanha não percebida por ninguém? Um nada.

Só conhecemos o que percebemos, só percebemos nossas ideias, e nossas ideias só existem em nossa mente ou espírito. A conclusão é a de que só há na realidade espíritos e ideias. A existência do espírito ou da mente é indiscutível dado o fato inegável de que pensamos, percebemos, sentimos, e temos outros muitos estados mentais. A existência das ideias é igualmente evidente, afinal elas são o conteúdo sobre o qual a mente se debruça. Mas a matéria, os seres corporais fora de mim, não são também reais?

Berkeley responde negativamente. Descartes defendera que havia dois tipos de qualidades, as qualidades primárias e as qualidades secundárias. As primeiras seriam extensão, comprimento, largura, altura, movimento, figura, etc. As secundárias seria cor, cheiro, sabor, valor, etc. As características primárias constituiriam as propriedades da matéria e, por isso, teriam existência substancial, real e independente de nossas percepções. Já as características secundárias teriam valor meramente subjetivo, residindo na mente do sujeito.

O que Berkeley faz notar, com razão, é que as propriedades materiais como extensão, comprimento, largura, figura, etc, só aparecem para nós pelos sentidos e, portanto, são ideias tanto quanto as cores, sabores, etc. Esse é o argumento que coloca todo idealista em vantagem quando confrontado com o materialista. Em outros termos, se o materialista quer reduzir toda a realidade à matéria, qualquer que seja o seu conceito de matéria, ele tem que admitir que só tem acesso a ela por meio do espírito ou da consciência. 

O movimento de Berkeley é simples. Quando o leitor aceita a premissa de que só temos acesso às nossas percepções, todo o resto se segue naturalmente. Sendo as percepções ideias, então só conhecemos nossas ideias. Não havendo nada mais de evidente na realidade a não ser as ideias e as mentes que as concebem, a conclusão é a de que somente existe um tipo de substância no mundo: espíritos. Por sua vez, o espírito (ou a mente) não é material, não tem aquelas características extensivas da matéria.

Realiza-se assim a redução imaterialista da realidade. Berkeley é geralmente encarado como um empirista, embora seu empirismo não seja realista. O princípio do conhecimento está nos sentidos, sem dúvida. Contudo, as percepções sensoriais não nos informam de uma suposta realidade exterior e independente de nós. As percepções sensoriais são os únicos dados a que temos acesso. Segue-se daí que o empirismo de Berkeley desemboca em um idealismo, ou em um imaterialismo, ou ainda, de um modo jocoso, em um espiritismo.

A metafísica imaterialista de Berkeley terá interessantes consequências para a sua concepção das Leis da Natureza e para a sua interpretação da ciência moderna, principalmente a física de Isaac Newton. Quando inspecionamos as nossas ideias, percebemos que controlamos algumas delas (nossos movimentos, alguns de nossos pensamentos, sentimentos, etc.), mas que estamos totalmente a mercê de outras tantas, algumas até desagradáveis. Percebemos também que essas ideias sobre as quais não exercemos nenhum controle são mais vivazes e têm um curso regular, ordenado e coerente.

Essas cadeias regulares de ideias, tão sabiamente ordenadas, atestam a sabedoria e a bondade de seu Autor. Nada sabemos sobre elas a priori, temos que aprender a reconhecer seu sentido no curso da experiência. A elas damos o nome de Leis da Natureza. Tudo o que percebemos que não seja fruto de nosso arbítrio ou do arbítrio de outro espírito, e que apresente um curso uniforme no tempo é uma Lei da Natureza. O que  faz o filósofo natural, como Isaac Newton em seu Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de 1687, é descrever acuradamente essas mesmas Leis.

Ora, Newton acreditava na existência do mundo externo, e, mais ainda, na existência da matéria, tanto que na sua obra de 1704, Opticks, na Query 31, o sábio inglês especula uma teoria corpuscular da luz. Não parece que Berkeley esteja tratando das mesmas Leis que Newton. Em certo sentido, não está, e está aqui uma consequência da sua metafísica imaterialista. As Leis da Natureza são cadeias ordenadas, constantes e regulares de ideias que se apresentam ao nosso espírito de forma tão imperiosa que não as podemos controlar ou as modificar segundo nosso arbítrio.

Sabemos, entretanto, que ideias não são entes independentes das mentes que as concebem. Sabemos também que ideias são inertes, ou seja, nenhuma ideia tem o poder de mudar ou causar uma outra ideia. O único agente causal real das ideias e nas ideias é o espírito, seja ele humano ou divino. É o espírito que cria, modifica, une, compõe, recompõe, separa as suas ideias. As Leis da Natureza são cadeias regulares de ideias impostas por Deus diretamente aos espíritos humanos. 

A conclusão óbvia é a de que não há nas ideias nenhum poder causal real, de modo que o que chamamos de Natureza não se refere a nenhuma dimensão da realidade que tenha em si mesma a sua regra de desenvolvimento, que contenha poderes causais, e que opere de modo independente. A Natureza não é mais do que um conjunto de sequências regulares e ordenadas de ideias que não possuem nenhuma realidade independente dos espíritos que as concebem mentalmente.

Natura sive Deus. A Natureza é a sequência de ideias ordenadas por Deus. Note-se que, como as ideias são inertes, sem poder causal, nenhuma ideia implica naturalmente uma outra ideia. A consequência é que as Leis da Natureza são fruto única e exclusivamente da vontade de Deus. Nenhuma ideia gera ou causa outra ideia. Toda uniformidade que observamos na Natureza é meramente uma hipótese, pois nada, absolutamente nada, obriga Deus a ordenar as ideias sempre da mesma forma.

O "fundamento" da Natureza é o ocasionalismo divino. Toda e qualquer situação do mundo natural é ocasião da ação direta de Deus. A pergunta é se Berkeley pode realmente ainda falar de Natureza depois de a reduzir à vontade absolutamente livre de Deus. Tradicionalmente, concebia-se que o mundo natural havia sido criado por Deus com uma série de ordenações ou de naturezas intrínsecas às coisas que, por sua vez, se desenvolviam e operavam a partir daí de modo relativamente independente de Deus. 

O cachorro foi criado com uma determinada estrutura essencial que não varia no tempo. Talvez o cachorro pudesse ter sido criado um tanto maior ou um tanto menor, pois Deus é absolutamente livre. Ocorre que, uma vez criado, ou seja, possuindo uma natureza própria, o cachorro não precisa de Deus para atuar e operar como um cachorro. A independência na operação é um dos traços distintivos do que usamos chamar de natureza. Berkeley elimina completamente a independência operativa dos entes naturais quando os identifica a ideias inertes nos espíritos.

O bispo afirma ao final do Treatise que, para ele, a concepção da Natureza como algo distinto de Deus e das coisas percebidas pelos sentidos não passa de um som vazio e sem qualquer sentido inteligível. E acrescenta que Natureza nessa acepção é uma vã quimera introduzida por aqueles pagãos que não possuíam noções justas da onipresença e da infinita perfeição de Deus. Porém, é mais inexplicável que isso seja acolhido entre Cristãos professando fé nas Sagradas Escrituras, as quais constantemente atribuem tais efeitos à imediata mão de Deus, do que entre filósofos pagãos que costumam imputar à Natureza.

O filósofo natural, como Newton, pode identificar as Leis Naturais, usá-las para enquadrar outros fenômenos ainda não incluídos, e pode mesmo deduzir novas Leis, desde que recorde que se tratarão sempre de hipóteses sobre o comportamento costumeiro de Deus. No Scholium Generale, ao final do Principia, Isaac Newton confessa que não sabe apontar a causa da força gravitacional, e, prudente, prefere não criar hipóteses. Berkeley conhece a causa da força gravitacional. 

Au rigueur, as forças nem mesmo existem como entidades. São ideias insubstanciais produzidas constantemente pela vontade sábia e bondosa do Espírito Supremo. O imaterialismo afirma que só há na realidade um tipo de substância ou entes, o espírito ou a mente, seguindo-se disso que a única causalidade real será o poder de concepção mental. Resta explicar como a ciência moderna alcançou tantos êxitos teóricos e práticos utilizando princípios exclusivamente mecânicos se a verdadeira causalidade não reside nas coisas corporais. 

No ano de 1721, Berkeley publicou o curto tratado De Motu: Sive, de Motus Principio & Natura, et de Causa Communicationis Motuum. Seu objetivo, como indica o título, seria determinar a natureza do movimento e explicar a causa de sua comunicação nos corpos. A crítica de Berkeley se dirige imediatamente aos fundamentos das explicações mecânicas dos fenômenos observáveis. O filósofo questiona o que significariam termos como esforço, solicitação, força, gravidade na física moderna. 

Quando sentimos o peso de um corpo em nosso corpo, sentimos nosso esforço para sustentá-lo. Quando vemos um corpo caindo na direção do solo, percebemos uma aceleração. That's all. Nada na experiência concreta nos permite inferir a existência, por exemplo, de uma força gravitacional intrínseca aos corpos. Não se trata de uma qualidade sensível e observável. É uma qualidade oculta, justamente aquilo contra o qual os filósofos naturais se ergueram. 

Isaac Newton defende explicitamente em seu método que o filósofo natural deveria utilizar somente os dados que pudessem ser deduzidos dos fenômenos, denominando tudo aquilo que não pudesse ser deduzido dos fenômenos como hipóteses. Por essa razão, ele se recusava a especular no Principia sobre a causa da gravidade. Mais à frente, Newton é cuidadoso em enfatizar que considera "essas forças matematicamente, e não fisicamente, e que o leitor não deve imaginar que ele, por essas palavras, tome para si a tarefa de “definir o tipo, ou a maneira de qualquer ação, as causas ou a razão física."

Segundo Berkeley, as forças não explicam nada, são meras abstrações, meros nomes, flatus voces. A razão disso é simples, e decorre dos princípios epistemológico-metafísicos de sua filosofia. Só temos acesso a nossas percepções e estados de consciência. Portanto, qualquer atribuição de existência independente fora desses dados é fruto de um uso abusivo de nossa razão. Não vemos nada a não ser uma sequência regular de ideias na nossa consciência quando presenciamos o fenômeno da queda dos corpos.

Aristóteles explicava a gravidade, o caráter de ser grave, por uma tendência intrínseca que os corpos formados predominantemente de terra têm de se dirigir em linha reta para o solo, o seu lugar natural. Os modernos chamaram essa tendência natural de qualidade oculta (termo que tem ligações com a magia medieval), e a rejeitaram como fantasia. No entanto, Berkeley aponta, o que são as forças se não qualidades ocultas intrínsecas aos corpos? Seis por meia dúzia.

No parágrafo 17 do De Motu, o bispo explica como devem ser interpretados esses conceitos científicos:

"Força, gravidade, atração, e termos desse tipo são úteis para raciocínios e cálculos sobre corpos e corpos em movimento, não para compreender a simples natureza do movimento enquanto tal ou para indicar tantas qualidades. Como no caso da atração, que foi claramente introduzida por Newton não como uma qualidade física, verdadeira, mas somente como uma hipótese matemática. De fato, Leibniz, quando distingue o esforço elementar ou solicitação do ímpeto, admite que tais entidades não são realmente encontradas na natureza, mas têm que ser formadas por abstração."

Em termos contemporâneos, Berkeley defende uma interpretação antirrealista da física moderna. As forças não são reais, são meras hipóteses matemáticas, ficções úteis aos cálculos e raciocínios e não afirmações ontológicas sobre o que há no mundo. O que importa ao filósofo natural não é saber se a gravidade existe como um propriedade dos corpos, mas tão somente identificar o comportamento constante e regular dos corpos, as leis mais gerais do movimento, e utilizá-las para trazer cada vez mais fenômenos à regra.

"Na filosofia mecânica, a verdade e o uso dos teoremas sobre a atração mútua dos corpos se mantêm firmes, fundados exclusivamente no movimento dos corpos, quer se suponha que esse movimento seja causado pela ação dos corpos atraindo uns aos outros, quer pela ação de algum agente diferente dos corpos, impelindo-os e controlando-os. De modo similar, as tradicionais formulações de regras e leis do movimento, junto com os teoremas daí deduzidos, permanecem inabaladas, desde que os efeitos sensíveis e os raciocínios fundados sobre eles sejam garantidos, não importa se supomos que a ação em si ou a força que causa esses efeitos estejam no corpo ou em um agente incorpóreo."

A passagem acima do De Motu, resume perfeitamente a concepção antirrealista em geral. Não é necessário pensar que o mundo seja um mecanismo para empregar explicações mecânicas nos fenômenos do movimento dos corpos. Basta que os princípios mecânicos sejam encarados como hipóteses matemáticas, ou conceitos operativos, das quais se serve o físico na qualidade de auxiliares para o cálculo e para o raciocínio. Tudo se passa como se o mundo fosse mecânico.

O conceito de explicação também sofre mudanças, pois não é mais dever do filósofo natural, do físico moderno, determinar as reais causas agentes dos fenômenos. A explicação mecânica se limita a, identificadas pela experiência as leis do movimento,  solucionar com elas fenômenos particulares. Ou seja, demonstrar que o comportamento de um determinado fenômeno pode ser deduzido das leis gerais do movimento obtidas pela experiência.  

"39. E tal qual os geômetras que, por conta de sua arte, fazem uso de muitos artifícios os quais eles mesmos não podem descrever e nem encontrar na natureza das coisas, o mecânico também faz uso de certos termos gerais e abstratos, imaginando nos corpos força, ação, atração, solicitação, etc, os quais são de primeira utilidade para teorias e formulações, assim como para computações sobre movimento, mesmo se na verdade das coisas, e nos corpos realmente existentes, seriam buscados em vão, tal como as ficções dos geômetras feitas por abstração matemática."

Conceitos como espaço absoluto e tempo absoluto não podem possuir um significado realista. Um espaço sem nenhum corpo é um nada. Tempo sem as coisas que mudam é um nada. Nenhum movimento absoluto é perceptível pelos sentidos, então não há utilidade alguma em manter um referencial que pode ser substituído, for all practical purposes, pelo céu das estrelas fixas. Tomando como referência somente o movimento relativo, que é observável, todos os cálculos se mantém tão válidos quanto antes.

A primeira regra metodológica que o filósofo natural deve seguir é distinguir a hipótese matemática da natureza das coisas. A segunda é cuidar-se contra as abstrações. A terceira é considerar sempre o movimento como um fenômeno sensível, e, portanto, restringir-se ao movimento relativo, que é a quarta regra. O ponto central é que a aceitação de uma hipótese matemática não implica em compromissos ontológicos realistas. Utilizar o conceito força não significa afirmar a existência real de alguma entidade ou propriedade entre as coisas que há no mundo. A hipótese matemática é um modelo simplificado da realidade, e não a própria realidade. 

Embora Berkeley não use a expressão clássica, a sua tese está em consonância com a tradição astronômica grega segundo a qual os modelos matemáticos das órbitas inobserváveis dos planetas tinham somente que salvar os fenômenos, σῴζειν τὰ φαινόμενα. Isto é, a função do modelo era só e tão somente ser adequado empiricamente, estar de acordo com o que era observável e acurado nas suas predições. Não havia nenhum constrangimento no fato de dois modelos matemático-astronômicos incompatíveis um com o outro serem ambos adequados empiricamente. 

É exatamente o que Berkeley defende ao afirmar que "embora Newton e Torricelli pareçam estar em desacordo um com o outro, eles defendem visões consistentes, e a coisa é suficientemente explicada por ambos. Pois todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, exatamente como eram as forças atrativas nos planetas e no Sol. Entidades matemáticas, porém, não possuem uma essência estável na natureza das coisas, e dependem da noção do definidor. Consequentemente, a mesma coisa pode ser explicada de diferentes formas."

A física matemática só versa sobre aquilo que é quantitativo ou pode ser descrito em termos quantitativos. Ela não tem condições de definir uma ontologia, ou seja, é incapaz de distinguir qualitativamente um ente de um outro. Não há diferença quantitativa que distinga essencialmente um ovo de um prego. As forças, a atração e a repulsão não são coisas na realidade, mas somente quantidades mensuráveis de um je ne sais quoi que pode ser diferentemente definido. É perfeitamente possível medir e quantificar aquilo cuja natureza desconhecemos.

Resolvido o problema de como interpretar os princípios mecânicos utilizados na filosofia natural, resta saber qual a natureza do movimento e da sua comunicação nos corpos. A solução está dada desde o Treatise. Só há uma substância na realidade, o espírito ou a mente, sendo todo o resto ideias inertes produzidas por Deus ou pelos espíritos finitos. A filosofia natural encontra seu limite epistemológico naquilo que é observável, perceptível pelo espírito. Logo, seu âmbito é o das ideias ordenadas e regulares produzidas por Deus.

A fonte do conhecimento das causas eficientes reais reside em uma ciência superior, a filosofia primeira ou metafísica, cujo ofício é lidar com os entes incorpóreos, com as causas, com a verdade e com a existência das coisas. A metafísica imaterialista de Berkeley elimina a matéria enquanto um ente substancial e independente de nossas percepções, o que, consequentemente, elimina na raiz o materialismo e o mecanicismo. A filosofia natural não pode então ser o estudo da Natureza, considerada como um poder relativa ou completamente independente de Deus. 

O mecanicismo não pode ser nada além de uma hipótese matemática útil para os cálculos e os raciocínios, jamais uma ontologia do mundo sensível. No fundo, o filósofo natural é um estudioso do comportamento habitual do Autor da Natureza. O materialista, o mecanicista, o ateu e o irreligioso são refutados de uma só vez pela eliminação da substancialidade da matéria.

Cabe observar que a teoria antirrealista acerca da ciência moderna que Berkeley, embora se siga logicamente de sua metafísica imaterialista, não depende em si mesma dessa metafísica. Basta notar a sua origem na astronomia grega e a sua defesa historicamente por autores muitos diferentes entre si em termos de (ou rejeição da) metafísica. Apenas para efeito de ilustração, compare-se a posição de Berkeley sobre as hipóteses matemáticas com as teses antirrealistas de Pierre Duhem e de Bas van Frassen.

Na sua obra La Théorie Physique, o físico, matemático, historiador e filósofo francês Pierre Duhem defende que as teorias físicas são classificações naturais do comportamento observável das magnitudes físicas sem qualquer pretensão de determinar as suas reais naturezas. A física se limita a descrever matematicamente o que se observa, estando livre das disputas da metafísica que, essa sim, almeja determinar a natureza das coisas. A pedra de toque da aceitação de uma teoria física é a sua capacidade de salvar os fenômenos, a sua adequação empírica.

Em seu livro The Scientific Image, o filósofo da ciência holandês Bas Van Fraassen define o seu empiricismo construtivo como a tese segundo a qual o "objetivo da ciência é fornecer teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como crença somente que ela é empiricamente adequada". Fraassen enfatiza que, embora ela deva ser interpretada literalmente, não há nenhum compromisso de acreditar ipso facto nas entidades postuladas pela teoria. E a adequação empírica significa apenas que o que a teoria diz sobre as coisas e os eventos observáveis é verdadeiro, isto é, salva os fenômenos.

Tanto Pierre Duhem quanto Bas van Fraasen não esposam a metafísica imaterialista de Berkeley. Na realidade, o antirrealismo científico em geral não implica quaisquer comprometimentos metafísicos. No caso de Duhem, isso é ressaltado pelo próprio autor como uma das vantagens de sua teoria. A física e a metafísica estariam tão bem distintas, separadas e independentes que os resultados de uma dessas disciplinas nunca poderiam ser usados para refutar os resultados da outra.

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Para uma versão mais detalhada: 

Vista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Pierre Duhem (oleniski.blogspot.com)

2 comentários:

Anônimo disse...

Mauricio Santos

Mauricio Santos disse...

Muito bom o texto ha sempre algo bom p acompanhar aqui no Blog