BODHIDHARMA, Sermão da Corrente Sanguínea
O método de iluminação espiritual é um dos temas principais dos ensinamentos e discursos do mestre Ch'an (Zen, no Japão) Huang Po. O que causa certa estranheza a seus ouvintes é a sua aparente negação da importância dos métodos espirituais transmitidos pela tradição. É preciso, no entanto, entender que essas negações aparentes adquirem seu sentido pleno quando compreendidas a partir de Sunyatta, a "vacuidade".
Na rica tradição budista Mahayana, não é raro encontrar ordens paradoxais como "se encontrar o Buddha, mate o Buddha!" dadas por mestres aos seus discípulos. A mentalidade ocidental só consegue enxergar contradição nessas declarações porque não compreende de onde elas estão sendo proferidas. Assim como o ditado Zen que diz que o mestre aponta para a Lua e o tolo olha para o dedo, o discípulo só vê o instrumento, o método, sem se atentar para o fato de que o método ele mesmo faz parte do mundo fenomênico a que se quer ultrapassar.
O grande mestre indiano Bodhidharma, considerado como o introdutor do budismo na China e como mestre das artes marciais, dizia que "seu espírito é o Buddha. Não use o Buddha para venerar o Buddha". A advertência é dirigida aos discípulos que absolutizam o método, ou mesmo hipostaziam o Buddha, transformando a natureza búdica informe em um fenômeno entre outros fenômenos. No fundo, o método e o Buddha são, tais como se apresentam a nós nessa realidade fenomênica, são ainda fenomênicos.
Não obstante, aquilo para o qual eles apontam, não é o fenomênico. Em certo sentido, o Buddha é fenômeno na medida em que se mostra a nós como algo entre outras as coisas deste mundo. Em outro sentido, o Buddha, na sua verdade última, é a realidade que ultrapassa tudo aquilo que é fenomênico. Analogamente, o método de iluminação é um fenômeno que aponta para o que ultrapassa todo fenômeno. Na sua verdade última, o método é o espírito puro sem distinções do qual fala Huang Po. Não há outro método.
Huang Po ensina que se os discípulos querem uma fórmula essencial, basta a eles nada fixar no espírito. O corpo absoluto do Buddha é comparado metaforicamente ao céu. Não significa que o corpo do Buddha seja contido pelo céu, e sim que o corpo e o céu são uma e só realidade. Não há diferença entre um e outro, como não há diferença entre Samsara e Nirvana. O espírito do Buddha reside onde não há caracteres particulares. O mundo fenomênico não se distingue do espírito búdico como algo separado.
O método não é mais do que esquecer os objetos e o espírito, diz Huang Po. Nesse caso, o mestre chinês se refere ao espírito individual e aos objetos que nos cercam. Mas as pessoas comuns têm receio de esquecer deles porque temem tombar no vazio sem ter onde se agarrar. A nossa natureza búdica, porém, não é um simples vazio, ela não possui início e nem fim, nem acima e nem abaixo, nem silenciosa e nem sonora, nem número e nem quantidade, , jamais se sujou ou se purificou, não possui voz, silhueta ou voz, não é antiga e nem nova, não possui lugar e nem direção.
O Buddha é o espírito puro, e o Buddha é o método. O método, portanto, não é esta sequência de práticas que supostamente conduz a alguma coisa. Mesmo o método e as práticas espirituais ainda são fenômenos. O sentido profundo do método é a negação da substancialidade do próprio método e de sua importância. Em outros termos, o método, visto a partir do espírito absoluto do Buddha onde todas as distinções desaparecem, também ele é uma entidade distinta que desaparece e deve desaparecer. Seu valor não reside nele mesmo, reside na sua negação na real Iluminação.
Como já afirmamos em outros momentos, aqui estamos usando a linguagem para ultrapassar a linguagem a fim de falar daquilo que é o fundamento das coisas e da própria linguagem. Não à toa, o budismo, e Huang Po, não preconizam o pensamento conceitual para compreender a Iluminação. Não há compreensão conceitual daquilo que ultrapassa o conceito. O que dizemos, inclusive o que Huang Po ensina verbalmente a seus discípulos, é um vestígio, uma imitação imperfeitíssima dessa realidade búdica que só é "compreendida" quando "experimentada".
Quando os mestres falam do espelho claro, por exemplo, eles usam um símile para esclarecer as pessoas de faculdades medianas e inferiores. O espírito puro é como o espelho completamente limpo que reflete tudo o que se lhe coloca à frente sem nada distorcer e sem nada acrescentar ou subtrair, mantendo sempre sua pureza original intocada. Aqueles que desejam fazer a real experiência, por assim dizer, não devem mais pensar usando esses símiles, dado que causam apego aos objetos.
"No ser se afunda a realidade. Então, não crer em ser ou não-ser é suficiente para enxergar", arremata Huang Po. Na primeira sentença, o mestre sintetiza uma verdade metafísica profunda: nas coisas que são, isto é, nas coisas que existem ou podem existir, a realidade última que funda a existência de todas as coisas submerge ou é "escondida" por esses mesmos seres aos quais dá origem. O mundo fenomênico (ou o mundo dos entes, o mundo da limitação e das oposições), "submerge" a realidade búdica por causa de nossos apegos ou de nossas rejeições a este ou àquele ser em particular.
Toda a nossa percepção é dirigida para a distinção e separação dos entes como se eles fossem absolutamente independentes uns dos outros e como se algum deles ou alguns deles tivessem o condão de, ainda que sendo limitados como são, satisfazer completamente os nossos desejos. Então, a realidade do Buddha, que sempre está lá onde estão as coisas (sem que nenhuma delas ou a sua totalidade se constitua em real obstáculo para a Iluminação), desaparece como a Lua desaparece para o tolo que olha para o dedo que aponta.
A segunda sentença pode dar a impressão aos ouvidos ocidentais de que se trata de uma negação pura e simples da distinção entre ser e não-ser. Se fosse esse o caso, ser e não-ser seriam igualmente inexistentes, o que equivaleria a uma afirmação do nada puro. Huang Po não afirma que a cadeira não é um ser, isto é, não é um ente existente, e nem nega a existência de tudo aquilo que é não-cadeira, nem mesmo a simples inexistência de alguns entes. Mais uma vez, é mister ter em mente a partir "de onde" o mestre fala.
O seu objetivo é evitar o apego aos métodos como se fossem fins em si mesmos ou como se conduzissem a algo a ser descoberto fora das coisas. Não crer em ser ou não-ser é enxergar a realidade na sua totalidade, na sua talidade (caráter de ser tal), como o enxerga o Buddha Tataghata, aquele que conhece a realidade tal como ela é. Não há nada a excluir ou a separar, nada que seja substancialmente separado de todo o resto, de modo que todas as oposições, como ser e não-ser, são reunidas e transcendidas no espírito puro do Buddha.
Aquilo que transcende, não nega. Só há negação onde há entes de uma mesma natureza a serem contrapostos. O espírito puro transcende e, portanto, reúne em si, as oposições e as negações. Ser e não-ser é a oposição mais básica do mundo fenomênico, isto é, do nosso mundo limitado. Não crer em ser ou não-ser é não absolutizar as diferenças, é reuni-las naquilo que as transcende e as fundamenta. No caso do mestre Huang Po, significa reunir e transcender as dualidades e oposições na sua fonte última, o espírito puro do Buddha. Nada é perdido, tudo é remetido à sua realidade última.
Essa é a simplicidade de que fala o mestre chinês. O método consiste em tão somente não absolutizar as oposições e dualidades. É não se afundar nos entes a ponto de tomá-los como a única realidade. O método não conduz à nenhuma novidade, à nada fora daquilo mesmo que as coisas sempre foram. Não é o método, mas a transcendência do método que é a Iluminação. Vistas todas as coisas a partir de sua raiz no espírito puro, todas as oposições se esvaem, são reconduzidas a seu fundamento, transcendidas sem serem negadas ou destruídas.
Perseguir as coisas exteriores, confundir os objetos com o espírito puro, é como reconhecer como teus filhos aqueles que te saqueiam, ensina Huang Po. É exatamente por causa da existência do desejo, do ódio e da ilusão (as fontes básicas do sofrimento humano) que existe a Iluminação. O problema não reside na realidade enquanto tal, mas em nossa tendência de nos afundarmos nas coisas, buscarmos isso e rejeitarmos aquilo, absolutizarmos as dualidades e as oposições. Nada deve ser acrescentado à nossa natureza búdica original.
O espírito puro é como céu. Se quiséssemos orná-lo de pedras preciosas, nenhuma delas se fixaria nele nem por um momento. Embora se enfeite com méritos e sabedoria, nada se fixa no espírito búdico original. Basta se desviar de sua natureza fundamental para não mais a enxergar. Isto é, basta se fixar nos entes para não mais enxergar o espírito puro. Todavia, como todas as grandes religiões afirmam, o que há de mais fundamental nas coisas e nos homens jamais é afetado, manchado, diminuído ou acrescentado em sua pureza transcendente.
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Sem este, quem as notaria?
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Um comentário:
Mente é a base
A dualidade Consciência e Objeto são Fenômenos que surgem na mente
E por fim o Numeno que estaria na base de tudo..
Assim teríamos Mente + Numeno =Fenômeno
O interessante nesse pensamento seria que a mente seria algo transcendente ao fenomeno logo não poderia ser explicada apenas pela observação dos fenômenos
Pode se vira o cérebro do avesso que não vão encontrar a mente lá ...Ela a mente está para além do mundo dos fenômenos
Acho esse um pensamento bem interessante e fica ate uma ideia legal para um texto futuro a falha do materialismo em explicar a mente...
De qualquer forma sempre bom os textos aqui e sempre tem algo para aprender
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