domingo, 10 de setembro de 2023

Mestre Eckhart, o vazio e a liberdade de Deus

"Com efeito, Deus não busca Seu próprio bem. Em todas as Suas operações, Ele é vazio e livre, e opera por verdadeiro amor."

MEISTER ECKHART, Sermão 1

No seu Sermão 1, o místico medieval renano Meister Eckhart, interpreta simbolicamente a passagem evangélica (Mateus 21, 12) na qual Cristo expulsa os vendilhões do Templo. A interpretação óbvia, à primeira vista, é a de que o Senhor simplesmente desaprova o comércio dentro das dependências do espaço consagrado ao culto espiritual de Deus. Eckhart, sem negar o sentido literal do texto, transporta a dinâmica dos acontecimentos para a interioridade da alma humana.

A razão pela qual aqueles que vendiam e compravam dentro do Templo é que este simboliza a alma humana cujo centro deve ser ocupado por Cristo, o próprio Deus. A alma do homem é o que o diferencia de todos os outros entes da realidade criada por sua semelhança com o próprio Princípio de todas as coisas, como explicitado pelo texto bíblico do Gênesis (1,26): "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". Essa similaridade entre a alma e Deus é o que fundamentará metafisicamente a possibilidade do total esvaziamento do cristão no Vazio divino.

Sendo a alma o Templo, os vendilhões só podem ser simbolicamente conteúdos ou atos da própria alma. No caso, só podem ser obstáculos à entrada de Cristo. Os comerciantes não são exatamente más pessoas, diz Eckhart, mas representam aqueles cristãos que na vida se abstém de todos os pecados grosseiros, e que realizam boas obras como jejuns, vigílias e orações. O seu erro, o que constitui o seu comércio, sua venda e compra, é o fato de que todas essas boas ações serem ditadas pelo desejo de receber de Deus algum outro dom que não Ele mesmo.

Eckhart ultrapassa uma interpretação moralista óbvia a fim de enunciar verdades metafísicas fundamentais. Sim, de fato, o cristão peca quando só faz o bem motivado pelo interesse por bens que não o próprio Senhor. Deus se torna um meio e não um fim em si mesmo. A questão, porém, tem dimensões mais profundas. O homem que faz esse comércio com Deus se esquece que qualquer bem que ele deseje é infinitamente menor que o próprio provedor desse bem. Não basta fazer o bem, embora seja um passo necessário. É preciso fazer o bem com a correta disposição de espírito, por assim dizer.

Novamente, não se trata aqui de mero discurso moral. Eckhart está ensinando como o homem pode ser verdadeiramente bom, no seu grau mais alto de perfeição que sua semelhança ontológica com Deus lhe concede. Em certo sentido, o que o místico renano quer expressar é que só se age bem quando se manifesta através de nós o Bem, e não as nossas preferências. 

Embora o próprio Eckhart não a cite, creio que a passagem evangélica seguinte fornece a chave desse mistério: "Replicou-lhe Jesus: 'Por que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus!'" Isto é, rigorosamente, o Bem reside somente em Deus, ou melhor, o Bem é Deus, e mais nenhum ente que não seja Ele pode reivindicar esse título. Comerciar com Deus em troca de qualquer bem é não compreender quem é Ele, in the first place. 

Tudo o que esses comerciantes são, eles recebem de Deus, e tudo o que possuem, também o recebem de Deus. Nada pertence a eles. Portanto, o Senhor nada deve a eles por seus supostos atos de bondade. Se Ele concede bens aos homens, não é por recompensa ou por troca de favores. "Sem mim, nada podeis fazer" (Jo 15,5). O mestre renano chama a atenção aqui para um tema comum da metafísica neoplatônica medieval, a indigência ontológica. 

O fato mais patente de nossa realidade humana é que a nossa existência foi precedida por nossa inexistência e será sucedida novamente por nossa inexistência. Só existimos porque fomos trazidos à existência por entes que já existiam, pai e mãe, nossas causas próximas, e, subindo a cadeia, todas as nossas causas remotas, como nossos ancestrais. Sequer o fato de existir é algo que nos pertença como uma propriedade intrínseca. Nós recebemos a existência, não a possuímos absolutamente, dado que ela cessará, em algum momento do futuro, na morte, queiramos ou não.

Metafisicamente, sequer nossa realidade pertence a nós. Toda posse se torna ilusória diante do fato de que os bens também são transitórios em si mesmos ou, pelo menos, só podem ser fruídos transitoriamente, dado que nosso tempo de existência é limitado. Todo o bem que nos atrai no mundo só é um bem participado, e não o Bem imparticipável. A condição das coisas deste mundo é tão fugidia e precária que alguns neoplatônicos medievais, como Ulrich de Strasburg, afirmavam sem peias que as criaturas são falsos entes. 

Agostinho de Hipona, outro neoplatônico (da antiguidade tardia), no início do Livro XI de sua obra magna Confissões, já afirmava a relativa inexistência das coisas cambiantes deste mundo:

"Portanto, Senhor, Tu as criastes, Tu que és belo, pois elas são belas; Tu que és bom, pois elas são boas; Tu que existes, já que elas existem. No entanto, nem são tão belas, nem tão boas, nem existem tal como existes, Tu que és o Criador delas. Comparadas contigo, nem são belas, nem boas, nem mesmo existem". 

O bispo africano expressa perfeitamente o circuito da realidade. Conhecemos o belo limitado nas coisas, subimos na direção de sua Fonte última, e ali, já fora de todas as limitações e particularidades, compreendemos que, comparadas com a Fonte última, nenhuma das coisas belas é realmente bela. Do mesmo modo, a existência contingente das coisas deste mundo eleva o intelecto na direção de uma existência necessária, ou seja, sem limites, de tal modo que, quando atingimos esse ápice, compreendemos que nenhum dos entes daqui merece o título de existente.

Entendidos corretamente, os argumentos cosmológicos tradicionais de demonstração da existência de Deus buscam responder justamente à seguinte pergunta: de onde vem o poder de existir que as coisas evidentemente exibem, mas que, ao mesmo tempo, evidentemente não reside em nenhuma delas como uma propriedade que lhes seja intrínseca? A instabilidade ontológica dos entes, sua impermanência radical, nivela todos na mesma relativa inexistência. É óbvio que as coisas existem, mas somente de forma derivativa e fugidia.

Mestre Eckhart prossegue o sermão afirmando que aqueles que tentam comprar e vender em suas relações com Deus não entendem a verdade. Quando Cristo entra no Templo, como a luz que expulsa as trevas, a ignorância é expulsa da alma e a Verdade se revela inteiramente. Deus não age por nenhum bem externo a Ele mesmo. Deus é vazio e livre, age por verdadeiro amor. Assim também age o homem unido perfeitamente ao Senhor, não a partir de si mesmo, vazio e livre, sem jamais buscar seus próprios interesses, tudo realizando pela glória de Deus.

O que Eckhart afirma nessa curta, porém metafisicamente densa, passagem sobre a entrada de Cristo se segue do que foi dito sobre a indigência ontológica dos entes. O que significa a entrada de Deus na alma senão a completa desaparição de todo e qualquer ente? Deus não aparece na alma como algo em meio a outros algos. Enquanto Ele aparecer na alma como algo, Ele não estará plenamente na alma. Será um ídolo, uma imagem, um pensamento, um conceito, ou um bem que compete com tantos outros bens o coração do homem.

Note-se que Eckhart não está sugerindo que Deus deva ocupar a alma como um objeto de obsessão pode ocupar a mente do obcecado. Um homem pode ser obcecado por dinheiro a tal ponto que nada mais tem lugar em sua mente. Todavia, esse é o caso extremo oposto do que Eckhart está tratando. A obsessão significa conceder a um ente determinado o estatuto de única realidade, expulsando simultaneamente toda a multiplicidade de bens que há no mundo. É o caso de um objeto inflado à condição de fundamento.

A despeito de fato de que todo e qualquer outro bem seja expulso da alma do obcecado, ainda se trata de um ente, de algo determinado. Deus não aparece na alma como algo, repito. Se é possível expressar dessa maneira imperfeita, o modo de aparição de Deus é o desaparecimento dos entes. Enquanto houver entes, não há Deus na Sua plenitude. Óbvio, admito, Ele se manifesta (pradurbhava) nos entes, e os entes não se constituem necessariamente em obstáculo para o homem santo contemplá-Lo.

A questão aqui não é rejeitar os entes, desprezá-los, negá-los ou julgar a sua existência um mal. Isso seria absurdo. O ponto é que Eckhart se refere a um grau de perfeição espiritual supremo no qual a alma não tem mais olhos para nada que não seja o próprio Deus, posto que compreende a verdade de que todas as coisas que há no mundo devem sua existência a Ele, sendo, portanto, sempre e necessariamente, bens de segunda ordem. Amar os bens acima do Criador dos bens seria como amar os frutos e desprezar a árvore que os gera. Quem possui a árvore, possui os frutos, mas o contrário não é verdadeiro.

Deus aparece na alma, como Cristo entra no Templo, esvaziando suas dependências de qualquer outra coisa que não seja Ele mesmo. Se a luz penetra completamente, sem limitações, não há como haver sombras. O Ser, para usar um termo caro à filosofia ocidental, só se revela na sua plenitude quando os entes desaparecem, e resta somente o vazio. Deus é vazio, afirma Eckhart. Deus é Nada, mas não é o Nada no sentido da ausência completa, absoluta e total de qualquer realidade efetivamente existente ou meramente possível. 

Deus é vazio justamente porque Ele não é nenhuma das coisas limitadas. Não sendo nenhuma das coisas, não aparece como uma coisa entre outras coisas, um ente entre outros entes. A entrada de Cristo no Templo tem que necessariamente ser acompanhada da expulsão dos vendilhões que ainda confundem Deus com algum ente, e que, por isso, têm o coração dividido. Aquele que é o fundamento último e a fonte de todos os entes não pode sofrer das limitações dos entes que Ele fundamenta.

Deus é vazio porque não cabe em nenhuma das categorias do pensamento humano e não está sob o jugo de nenhuma limitação. Por isso, é vazio e livre. Se ser livre é não estar sob algum tipo de limitação ou constrangimento interno ou externo, então não há liberdade real a não ser em Deus. Nele estão ausentes todos os tipos de obrigação ou de constrangimento. O que poderia ser a Realidade, no seu grau último e fundamental, senão absoluta liberdade e vazio?*Nesse sentido, buscar a Realidade é buscar o Vazio.

Perguntas sobre se Deus segue a lógica ou sobre se o certo moralmente é certo somente porque Deus assim o quis e não por ser certo em si mesmo, são questões próprias de quem não compreendeu o que Deus é, e O confunde com algum ente, por mais poderoso que esse ente seja. Não há sentido em se perguntar à Realidade por qual razão ela é do jeito que ela é. Se houvesse alguma razão anterior à Realidade, essa razão seria a Realidade. E a pergunta poderia ser refeita sempre com o mesmo resultado ad infinitum.

A absoluta liberdade divina não pode ser compreendida em termos de arbítrio humano. Não há diferença entre as leis racionais e a liberdade na unicidade infinita de Deus. Ele não obedece a leis das quais Ele mesmo é o fundamento. Nem tem outro bem ao qual se inclinar. Não age por interesse próprio, pois só possui interesse aquilo que sente a falta de algo. Age por puro amor, por pura doação. Entretanto, a ação divina não deve ser entendida como a ação humana, que é limitada e temporal.

Só pode receber Deus na alma, como Cristo entra no Templo, quem não possui nada ali além do próprio Deus. O cristão unido plenamente ao Senhor, afirma Eckhart, deve ser como o Senhor, vazio e livre. Quem é vazio não possui interesses próprios e nem age movido pelo desejo de algum bem útil para si mesmo. O seu vazio não é o vazio de quem está morto para a vida, daquele que não enxerga valor em nada. Não se trata de nihilismo, nem de uma impotência ou de uma incapacidade.

Ao contrário, é o vazio de quem se encontra no âmago da coincidentia oppositorum**, lá mesmo onde todas as coisas têm a sua origem "antes" de serem originadas. Poderíamos afirmar que só se conhece Deus não conhecendo mais nada. O Senhor entra no Templo, necessariamente todo o resto é desaparece. Os entes desaparecem não porque são ofuscados por um outro ente muito maior que eles, mas sim porque são reabsorvidos na sua Fonte última. 

Solve et coagula. O que antes se solidificou agora se dissolve. O que foi expirado é inspirado. O interesse por qualquer ente desaparece quando se está no centro emanador de toda e qualquer possibilidade. Nesse sentido, é correto afirmar que aquele não possui nada, possui tudo. O que é mais valioso, o produto de uma capacidade ou a capacidade que o produz? A onipotência não é mais do que a liberdade e o vazio de Deus, ou seja, a capacidade inesgotável da Realidade de tornar real o que quer que ela determine que se torne real. 

A perfeição espiritual do cristão consiste em ser completamente vazio como Deus é vazio. A alma não busca mais seu interesse quando age. Situada no mais íntimo do Princípio, a alma não deseja mais nada, não age por interesse próprio, e nem em troca de algum bem. "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim", diz o apóstolo (Gálatas 2:20). A alma deve permanecer tão vazia como se ela ainda não existisse. A alma também desaparece quando Deus aparece.

Dito de outra forma, enquanto ainda há algo, ou, principalmente, enquanto ainda há alguém, a presença do Senhor não é perfeita. O Absoluto não nega o relativo, mas o engloba precisamente porque o transcende. Tudo desaparece diante de Deus porque todas as coisas são reunidas sem antinomia em seu Princípio. É somente quando o cristão se esvazia de si mesmo que ele pode agir exclusivamente por Deus e como Deus.

Retornando ao texto evangélico, Eckhart nota que Jesus, mansamente, exorta aqueles que ofereciam pombos no Templo que libertassem os pequenos animais. Simbolicamente, os pombos são as boas obras dos bons cristãos que tudo realizam por amor a Deus, e não por interesse próprio, mas que permanecem ligados à propriedade, ao tempo e ao número, ao antes e ao depois. Falta-lhes ultrapassar até mesmo essas boas ações realizadas por amor a Deus no âmbito do tempo e da propriedade.

Esses bons cristãos deveriam ser como Jesus, o Verbo, que tudo recebe eternamente no seio do Pai, sem nenhum obstáculo de propriedade, de antes ou depois, vazio e livre. Não é necessário entrar aqui em todas as sutilezas da teologia trinitária católica, embora alguns comentários sejam oportunos. O Catolicismo afirma que Deus é uma trindade consubstancial, isto é, há uma só e mesma natureza divina (monoteísmo), que preserva sua unicidade a despeito da presença de três Pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo.

"Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", assim o Credo Niceno-Constantinopolitano se refere a Cristo. O Filho é gerado, não criado, pelo Pai desde toda a eternidade, em um evento atemporal, onde não há antes ou depois, mas que, por assim dizer, ocorre sempre e desde sempre. O Filho tudo recebe do Pai e O reflete perfeitamente. É por isso que o mestre renano afirma que Cristo é vazio e livre. Ele não guarda nada para si mesmo, não possui outra vontade que a do Pai desde toda a eternidade.

Gelassenheit, termo que Eckhart utiliza para descrever esse nível de perfeição a que o cristão pode alcançar, admite várias traduções como desapego, serenidade, calma, repouso, equanimidade, declinação, entre outros. Em um de seus tratados, o mestre define Gelassenheit como um estado de absoluta imperturbabilidade e imobilidade com relação a qualquer acontecimento, bom ou ruim, alegre ou triste. Mais profundamente, esse é o modo de ser de Deus, pois nada O move em qualquer direção. No caso do ser humano, Eckhart explica que "estar vazio de todas as coisas criadas é estar cheio de Deus, e estar cheio das coisas criadas é estar vazio de Deus."

A alma desapegada, tendo abandonado a si mesma, mergulha na Luz eterna, incriada e sem mescla de Deus. Ali ela encontra o seu nada, e nesse nada ela está tão completamente afastada de qualquer coisa criada que, por seu poder próprio, não pode retornar à nada daquilo que é criado. A alma ousou se aniquilar, não possui mais nada de si mesma para retornar ela mesma a si mesma. Nesse estado de perfeição, quando só Deus aparece, todo o resto necessariamente desaparece. Todos os entes são reduzidos a nada, dado que sempre foram nada.

As coisas não são literalmente destruídas ou aniquiladas por Deus. Ocorre que a alma, quando perfeitamente unida a seu Senhor, percebe com insofismável clareza a sua absoluta indigência ontológica (assim como a de todas as outras coisas). Nada há nela que lhe pertença realmente, nada que se deva exclusivamente à ela. Não possuímos em nós mesmos o poder de existir. No fundo, somos nadas provisoriamente interrompidos. A nossa inexistência foi interrompida durante um curtíssimo espaço de tempo.

A entrada de Cristo no Templo acompanhada da expulsão dos vendilhões corresponde à compreensão do que realmente somos na escala da realidade. Nada é nosso, nada possui substancialidade. Do pecador mais grosseiro ao homem bom que ainda não se desapegou inclusive de suas boas obras, todos, em graus diversos, trocam Deus pelos entes. As almas se apegam ao nada dos entes em vez de receber tudo no Nada divino.

Em Cristo, a alma cresce incessantemente em todas as virtudes e potências, e se identifica com o Senhor de tal modo que nenhuma das coisas criadas no tempo e no espaço podem ter sobre ela qualquer efeito. Além disso, unida à Cristo, a alma se une à própria sabedoria divina, o que faz desaparecer de si toda a dúvida, todo o erro e toda a obscuridade. "Eu e o Pai somos um". Só se conhece Deus em Deus, a luz na luz. 

A alma retorna ao seu Primeiro Princípio, lá mesmo onde Cristo recebe e partilha com o Pai a mesma essencialidade simples, isto é, a natureza divina comum à Trindade. Ekhart usa a expressão einweiltigen weselicheit, que o medievalista Alain de Libera traduz como l'essentialité ou étantité simple, referindo-se à unidade da essência de Deus. Eckhart não está afirmando que exista uma causa essencial da Trindade, como se o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem criaturas ou efeitos de uma causa externa à eles. 

O que existe é uma única e indivisa natureza divina presente nas três Pessoas. Essa essencialidade simples é tanto a uniformitas, a consubstancialidade divina da Trindade, quanto o princípio primeiro criador de todas as criaturas. Poderíamos dizer, creio, que é a divinitas de Deus, aquilo que propriamente torna Deus o que Ele é: Deus. Obviamente, na Trindade, essa divinitas é a essencialidade simples que há em comum nas três Pessoas desde toda a eternidade. 

No caso das criaturas (nós e todas as outras coisas), a mesma essencialidade divina é seu princípio criador, ou seja, os entes são criados por Deus, trazidos à existência. Acontece que, quando está unida à Cristo perfeitamente, a alma se encontra no fundo dessa essencialidade, tendo retornado à fonte infinita de onde saiu. Eckhart assevera que a alma está nela mesma, fora dela mesma, acima dela mesma e acima de todas as coisas.

A perfeição espiritual é o retorno ainda em vida ao vazio divino, lá onde todas as coisas estão presentes antinomicamente como possibilidades eternas no seio da essencialidade simples de Deus. Que não esqueçamos que quando falamos da natureza ou da essência divina não nos utilizamos desses termos de modo unívoco. Sem dúvida Deus não possui uma essência no sentido de um conjunto limitado de características necessárias e suficientes para que um ente pertença a uma certa classe ou espécie. 

Deus não é um ente, e nesse sentido Ele não possui uma essência que O distingue de outros entes. A essencialidade simples é um termo imperfeito (como são todos os termos) para expressar a diferença absoluta de Deus. Na realidade, a divinitas, a essencialidade simples, é completamente indizível, inexprimível, incognoscível, incompreensível e inefável. Não é por capricho que Meister Eckhart fala de Vazio ou de Nada a fim de referir-se ao Senhor.

A alma, unida a Cristo no fundo insondável da essencialidade divina, realiza o grau máximo do desapego, Gelassenheit, ainda nesta vida. Sem negar as criaturas, mas transcendendo-as em seu Princípio, o cristão se instala imóvel e equânime no centro da Realidade. Nada o abala, e nada o move ou o interessa a não ser o próprio Deus. Cristo entrou no Templo, os vendilhões se foram e as pombas alçaram voo. Não há sequer eu e Tu. Só o Tu.

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*Sunya, Sunyata, (vazio, vacuidade) na linguagem budista Mahayana

** O termo não é originalmente utilizado por Eckhart no texto.

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Leia mais:

Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)

Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Negando o niilismo do materialismo e negando dogma estático religioso no caminho do meio nós seguimos ...Texto muito bom como nas outras vezes parabéns