quinta-feira, 12 de julho de 2012

Terra plana na Idade Média? II: os enciclopedistas cristãos



"Beda não só preservou a ciência e a filosofia natural de seu tempo, mas também fez contribuições. Como outros autores cristãos fizeram antes dele, Beda escreveu uma obra à qual ele deu o título comumennte utilizado de 'Sobre a Natureza das Coisas' (De Natura Rerum). Esta foi compilada largamente a partir das obras de Plínio e de Isidoro de Sevilha e era pensada como uma introdução aos conceitos básicos da astronomia. (...) Embora tenha feito uso de Plínio e de Isidoro, Bede tratava seu material de forma mais inteligente do que eles, mas ocasionalmente caía vítima de seus erros, como quando concordou com Plínio que a Lua era maior que a Terra. Beda seguiu Isidoro e aceitou um mundo esférico e uma Terra esférica. Beda também discutiu assuntos meteorológicos, tais como os mares, trovões e cometas."

EDWARD GRANT, Science and Religion, from 400BC to AD 1550, p. 144

Como visto num post anterior*, a esfericidade da Terra era fato estudado, ensinado, comentado e aceito na faculdade de Artes das universidades medievais. Isso se deve ao fato de que o currículo normal dos estudantes dessa faculdade incluíam o trivium (retórica, gramática e dialética), o quadrivium (astronomia, aritmética, geometria e música), além de longos e detalhados estudos sobre os tratados científicos de Aristóteles (Física,  De Anima, De Caelo, etc.).

Qualquer estudante universitário dos séculos XIII em diante estava bem familizarizado com a demonstração da esfericidade da Terra realizada por Aristóteles e extensamente comentada e aprovada por inúmeros mestres e preofessores como, por exemplo, Tomás de Aquino.

Antes das grandes traduções das obras de Aristóteles nos séculos XII e XIII, a Europa ocidental só tinha contado com algumas obras e fragmentos do estagirita e da herança grega em geral. A maior parte dessas obras permaneceu desconhecida desde a queda do Império Romano no século V devido à perda quase completa do contato com a cultura grega ocasionada pelo caos político e social do qual os europeus se recuperaram muito lentamente nos séculos seguintes.

Todavia, isso não significa que nenhum esforço foi feito para manter acesa a chama do conhecimento nos primeiros séculos da Idade Média. Para entender como isso se deu é preciso recuar alguns séculos antes do desastre da queda do Império.

As realizações científicas de Aristóteles, Teofrastus, Arquimedes, Hiparcus, Herófilus, Euclides e de outros sábios gregos foram coligidas, sumarizadas e tornadas palatáveis em manuais de autoria de divulgadores como Eratóstenes, Crates e Posidônius ainda na era helenística. Esses manuais eram fontes úteis e práticas de informação, mas como se limitavam a reunir e resumir aquilo que os sábios ensinaram, frequentemente as informações eram contraditórias e conflituosas entre si.

Os romanos, conquistadores da Grécia, limitaram-se a continuar a tradição dos manuais, traduzindo-os para o latim ou escrevendo seus próprios manuais nos moldes gregos. Os casos mais famosos são os de Varro, Sêneca e Plínio, o velho. Tais enciclopédias latinas não eram melhores que as antecessoras helenísticas e continham muitas inconsistências, informações errôneas e fabulosas e, no caso de Plínio, enfatizavam o curioso e o estranho nos fenômenos naturais.

Entre  os séculos IV e IX, muitos autores produziram manuais e enciclopédias que tiveram grande influência na Idade Média até os séculos XII e XIII. Entre eles estavam Calcidius, Macrobius, Martianus Capella, Boethius, Cassiodorus, Boécio, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda. O bispo Isidoro de Sevilha (560-636) e o monge Venerável Beda (673 - 735), já na Idade Média, foram os mais famosos desses enciclopedistas cristãos que seguiram a tradição enciclopédica latina. Ambos escreveram obras sobre a natureza das coisas e compilaram toda a informação científica disponível em seu tempo.

Apesar do caráter muitas vezes inexato e conflitivo das informações reunidas nesses manuais, ambos buscaram preservar e contribuir para o saber científico com observações e comentários próprios sobre as sete artes liberais (trivium et quadrivium), zoologia, medicina, cronologia, astronomia, matemática, geometria e meteorologia


Como afirma o professor de Filosofia e História da Ciência Edward Grant em sua obra Physical Science in the Middle Ages

"Tomadas em conjunto, essas obras continham virtualmente a soma total do fato e da compreensão científicas em geral por todo o início da Idade Média. Elas confrontaram os autores subsequentes com uma massa assistemática, caótica e conflituosa de informação, frequentemente irreconciliável e incompreensível, acima da qual poucos poderiam elevar-se até um novo ensinamento científico tornar-se disponível por meio de fontes árabes e gregas." (p.9)

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