"É quase axiomático que a distinção entre uma sociedade livre e uma sociedade totalitária resta exatamente sobre este ponto: uma sociedade livre é vista como aquela que não tenta, por princípio, controlar o que as pessoas consideram como significativo, enquanto que a sociedade totalitária é vista como aquela que, por princípio, busca semelhante controle. O que aconteceu no campo dos significados nos dois mais fortes Estados totalitários de nosso século - os de Hitler e de Stalin - é evidência da justiça dessa distinção."
MICHAEL POLANYI, Meaning, p. 182 (itálicos no original)
Na primavera de 1969, o químico e filósofo húngaro Michael Polanyi realizou uma série de lectures públicas na Universidade do Texas e na Universidade de Chicago intituladas Meaning: A Project by Michael Polanyi. Alguns desses textos apresentados foram posteriormente publicados em revistas especializadas e em 1975 as palestras foram reunidas e organizadas em um volume único com o título Meaning. No capítulo 12, Mutual Authority, Polanyi discute as relações entre seu conceito de sociedade livre e a autoridade exercida dentro do campo da ciência.
A princípio, o que distingue uma sociedade livre de uma sociedade totalitária é que na primeira não há tentativa de controlar o que os indivíduos consideram como significativo, ao passo que na segunda há tentativa de controlar aquilo que os indivíduos consideram como significativo. A experiência do século XX mostrou, no nazismo e no comunismo, como um sistema de governo pode ampliar indefinidamente seu poder a fim de controlar todos os aspectos da vida de seus cidadãos em nome do bem do todo.
A defesa da liberdade foi feita por pensadores liberais como Karl Popper em nome da Sociedade Aberta, contrastando-a com as sociedades "fechadas" como os totalitarismos nazi-fascistas e comunistas. Não obstante, muitos apontam que mesmo nas sociedades ditas abertas muitas tradições colocam severas restrições à liberdade humana, inclusive com o aval governamental. Tais limites, provenientes de valores morais, são vistos pelos defensores da liberdade como imperfeições temporariamente necessárias que serão progressivamente purgadas.
Polanyi, contudo, aponta que essa defesa da liberdade falha em compreender que uma sociedade livre repousa sobre uma estrutura tradicional de algum tipo. Uma sociedade completamente aberta só poderia ser uma sociedade completamente vazia, o que jamais pode acontecer. Para mostrar como essa estrutura tradicional é necessária a uma sociedade verdadeiramente livre, Polanyi utilizará como paradigma a organização descentralizada da ciência.
Todo cientista depende de seus colegas para a avaliação de suas próprias teorias. O controle exercido pelos cientistas é o de avaliar pessoalmente a plausibilidade das teses que são apresentadas à comunidade científica. Essas decisões estão baseadas nas convicções fundamentais dos cientistas acerca da natureza das coisas e dos métodos utilizados nas pesquisas. Mas essas convicções não são totalmente explícitas ou explicitáveis na forma de leis e de regulações e nem são aplicadas de um modo legalístico. Elas são aprendidas e aplicadas de modo tácito na formação pessoal do juízo de cada cientista acerca daquilo que ele avalia.
Obviamente, esses julgamentos podem eventualmente errar ao considerar como implausíveis certas teses ou afirmações. Absoluta segurança contra erros exigiria a completa ausência de julgamento, o que significaria, por exemplo, a publicação de todo tipo de nonsense em revistas cientificas. Os princípios usados para julgar a publicação de artigos científicos são largamente tradicionais, adquiridos individualmente por cada avaliador na sua experiência de pesquisa, na literatura de seu campo ou transmitidos a ele por seus mentores intelectuais.
De todo modo, esse cabedal de princípios é em grande parte tácito, isto é, não são conhecimentos transmitidos em termos de regras lógicas, metodológicas ou epistemológicas explícitas. E mesmo quando há o esforço de explicitar e vocalizar essas regras, o seu significado só pode ser plenamente entendido por aqueles que militam naquele campo específico de pesquisa. Há muito que não pode ser explicitado, diz Polanyi, porque encontra-se no nível dos sentimentos acerca daquilo que é adequado ou são modos de trabalho que demonstram uma captação imaginativa de como as coisas são ou devem ser naquele campo de pesquisa.
Os princípios muito gerais do julgamento científico, como a exatidão, embora possam ser explicitados, têm sua aplicação determinada tacitamente. Afinal, o que conta como exatidão em um campo de pesquisa não conta como exatidão em outro. Princípios como importância sistemática e interesse intrínseco do objeto de estudo também entram na avaliação dos cientistas e podem, inclusive, relativizar a importância da exatidão dos resultados. Como resultados absolutamente exatos são raros, não é infrequente que os cientistas aceitem uma teoria menos exata por causa de sua adequação perfeita a um sistema de teorias já amplamente aceito.
A ciência é feita por esses juízos e avaliações delicadas realizadas por cientistas. Os seus parâmetros de julgamento são valores como acurácia, interesse, importância sistemática, simplicidade, etc., e seus juízos são emitidos tendo em vista um ideal de excelência que ambos, julgadores e julgados, aceitam tacitamente. A aplicação desse ideal, entretanto, não é especificável ou explicitável, pois o peso dos valores no julgamento é determinado no processo do julgamento. Tais juízos são tácitos, pessoais, mas não caprichosos. A percepção pessoal de cada cientista depende grandemente de uma percepção tradicional adquirida na sua aculturação dentro da comunidade dos cientistas.
A posição de Polanyi não é a de que esses juízos pessoais exercidos pelos cientistas sejam subjetivos, isto é, valham somente para o cientista que os emitiu. Polanyi está chamando a atenção para o fato de que a ciência, tanto quanto outros campos da existência humana, faz uso necessariamente de valores e de regras. A aplicação de juízos de valor não se dá por meio de um conjunto de regras lógicas explícitas como aquelas de um silogismo (A é B/B é C/logo, A é C), mas pela consideração do quão o caso concreto e singular aproxima-se do ideal que temos daquele valor. É uma aplicação qualitativa e não quantitativa. E mesmo no caso de regras explícitas, como uma lei jurídica, a sua aplicação aos casos particulares depende de interpretação e nunca está isenta de ambiguidades.
É certo que este cientista fará uma avaliação diferente da avaliação realizada por um outro cientista, mas todos esposam os mesmos princípios e valores, e a variação entre os juízos é ineliminável. Mas o significado concreto desses valores é aprendido pelo cientista tanto na sua experiência de trabalho quanto pela convivência com outros cientistas, inclusive seus orientadores e mentores. O que é aceitável e o que não é aceitável é mostrado tacitamente no modo como seus colegas e seus tutores se comportam diante das diversas situações de pesquisa. Obviamente, tudo isso é absorvido e filtrado pelo prisma pessoal de cada cientista, constituindo assim o seu conhecimento pessoal. A variação na aplicação desses valores compartilhados pela comunidade científica não é um problema a ser eliminado e sim a condição de existência de uma comunidade formada por pessoas humanas reais.
Retornando à palestra de Polanyi, os cientistas exercem controle sobre o que é publicado em revistas acadêmicas e sobre o que é considerado conhecimento assentado como também admitem a discordância e o dissenso. Todo o conhecimento do mundo externo só é possível na medida em que aceitamos tacitamente certas bases metafisicas. O cientista tem como sua base o corpo do conhecimento científico aceito e considera-o como um reflexo de como a natureza é realmente. E a natureza é uma fonte inesgotável de descobertas tanto quanto uma fonte de surpresas insuspeitadas.
Cada cientista recebe essa crença fundamental de seus professores e isso garante às novas gerações a liberdade de propor soluções diferentes de seus mentores e antecessores. Mas é mister ter em mente que esse corpo de conhecimentos assentados é tomado como a estrutura fundamental da natureza e que, por conseguinte, constitui o contexto de fundo sob o qual todas as descobertas novas serão avaliadas. Isso significa que qualquer teoria que ameace esse conhecimento assentado terá dificuldades de ser tomado em consideração seriamente. A não ser no caso em que a nova teoria abra perspectivas muito mais amplas para o conhecimento do que a base aceita até então.
Novas descobertas podem mudar o interesse dos cientistas em certos fatos estabelecidos e mesmo mudar os padrões intelectuais. Essas mudanças, porém, vêm sempre acompanhadas e são justificadas pela crença de que elas fornecem uma compreensão mais profunda da realidade. Assim, a um só tempo, o cientista é ensinado a respeitar a tradição herdada e incentivado a buscar novas descobertas, mesmo que elas impliquem na rejeição do conhecimento estabelecido. A liberdade de pesquisa está baseada na aceitação desses valores tradicionais que são passados aos novos cientistas.
A questão agora é saber como efetivamente se organiza a comunidade científica. Cada cientista busca conhecer o trabalho de seus pares e estar inteirado dos pontos onde há oportunidade de desenvolvimentos e de descobertas. É um processo descentralizado e livre de mútuo ajuste, pois cada cientista submeterá a seus pares as teorias que defende ou as descobertas que pretendidamente realizou sem que haja qualquer governo central que dirija os rumos da pesquisa.
As instituições científicas têm sua razão de ser justamente na suposição de que sempre há a possibilidade de progresso e que este só acontece pela iniciativa independente de cientistas individuais. Prédios, equipamentos caros, revistas acadêmicas, etc., só podem ser mantidas por conta dessa convicção tradicional que todo novato aceita quando ingressa nas fileiras da comunidade científica. Toda a confiabilidade do conhecimento científico depende do princípio de controle mútuo. Os pesquisadores vigiam-se mutuamente no sentido de que cada um deles é ao mesmo tempo avaliador e avaliado.
A ciência se organiza pelo compartilhamento de ponta a ponta de padrões de plausibilidade e de excelência. O controle mútuo forma um consenso mediado entre os cientistas. Os novatos são introduzidos nessa tradição desde seus primeiros trabalhos, acreditam na verdade e na adequação desses parâmetros e submetem seus esforços ao crivo crítico de seus colegas e de seus mentores na esperança de um dia contribuir para o progresso do conhecimento, ainda que pelo questionamento do saber estabelecido. Ainda que haja uma hierarquia com altas posições (cientistas de reputação mundial, editores de revistas acadêmicas, membros seniors de faculdades), ela é estabelecida pela competência manifestada na pesquisa.
O ato da descoberta científica inicia com pistas e pedaços aqui e acolá que excitam a mente do cientista com a promessa de descoberta de algo ainda oculto. O pesquisador fica obcecado por descobrir qual é o todo coerente que une as peças e os dados dispersos que ele tem diante de si. O processo de intuição dessa estrutura subjacente não é regido e nem determinado por nenhum conjunto explícito de regras, mas por um salto imaginativo do cientistas concreto. mas essas tentativas não são randômicas, não são hipóteses lançadas sem nenhum lastro.
O cientista investe tempo, dinheiro, prestígio e autoconfiança nas suas tentativas de solução dos problemas que o interessam intelectualmente. Portanto, as suas escolhas são responsáveis, são guiadas pela convicção de que elas o aproximam da descoberta da realidade subjacente aos fenômenos. Seus atos são pessoais sempre, porém submetidos às exigências impessoais e externas da realidade que pretende descortinar.
O cientista pensa haver encontrado a resposta de um problema científico quando submete seu trabalho a seus pares. Obviamente, os pares podem considerar a solução verdadeira ou falsa, após a examinarem utilizando os mesmos critérios esposados pelo cientista em julgamento. A aceitação por parte da comunidade científica não significa verdade, somente que a solução deve ser aceita por todos os membros.
Polanyi assevera que a busca pelo conhecimento manifestada na ciência pode servir de paradigma para associações livres de pessoas em busca de outros bens que, como a verdade, são considerados bens em si mesmos. Isto é, bens que têm valor intrínseco e comandam respeito. A liberdade pode ser reivindicada por esses dedicados indivíduos por causa daquilo mesmo que buscam. No caso dos cientistas, não há outra justificativa para a liberdade de pesquisa a não ser a busca pela verdade, algo valioso em si mesmo. Mas o cientista só terá essa liberdade se a sociedade em que se encontra também esposar o ideal da verdade cientifica.
A sociedade livre não é é simplesmente uma sociedade aberta onde tudo vale. É uma sociedade na qual homens dedicados a atividades cujos fins são considerados dignos de respeito têm a liberdade de perseguir tais bens. A sociedade livre é aquela na qual os cidadãos estão empenhados na busca de vários fins ideais (como a verdade) e que sabe repeitar as atividades livres de seus cidadãos na persecução desses bens. Uma sociedade assim não pode ser neutra com relação à verdade ou à falsidade, à justiça ou à injustiça, etc.. A organização descentralizada da ciência mostra a possibilidade de uma associação atada tradicionalmente a certos padrões e valores, mas ainda assim livre e criativa.
Leia também:
https://oleniski.blogspot.com/2016/06/michael-polanyi-totalitarismo-nihilismo.html
A princípio, o que distingue uma sociedade livre de uma sociedade totalitária é que na primeira não há tentativa de controlar o que os indivíduos consideram como significativo, ao passo que na segunda há tentativa de controlar aquilo que os indivíduos consideram como significativo. A experiência do século XX mostrou, no nazismo e no comunismo, como um sistema de governo pode ampliar indefinidamente seu poder a fim de controlar todos os aspectos da vida de seus cidadãos em nome do bem do todo.
A defesa da liberdade foi feita por pensadores liberais como Karl Popper em nome da Sociedade Aberta, contrastando-a com as sociedades "fechadas" como os totalitarismos nazi-fascistas e comunistas. Não obstante, muitos apontam que mesmo nas sociedades ditas abertas muitas tradições colocam severas restrições à liberdade humana, inclusive com o aval governamental. Tais limites, provenientes de valores morais, são vistos pelos defensores da liberdade como imperfeições temporariamente necessárias que serão progressivamente purgadas.
Polanyi, contudo, aponta que essa defesa da liberdade falha em compreender que uma sociedade livre repousa sobre uma estrutura tradicional de algum tipo. Uma sociedade completamente aberta só poderia ser uma sociedade completamente vazia, o que jamais pode acontecer. Para mostrar como essa estrutura tradicional é necessária a uma sociedade verdadeiramente livre, Polanyi utilizará como paradigma a organização descentralizada da ciência.
Todo cientista depende de seus colegas para a avaliação de suas próprias teorias. O controle exercido pelos cientistas é o de avaliar pessoalmente a plausibilidade das teses que são apresentadas à comunidade científica. Essas decisões estão baseadas nas convicções fundamentais dos cientistas acerca da natureza das coisas e dos métodos utilizados nas pesquisas. Mas essas convicções não são totalmente explícitas ou explicitáveis na forma de leis e de regulações e nem são aplicadas de um modo legalístico. Elas são aprendidas e aplicadas de modo tácito na formação pessoal do juízo de cada cientista acerca daquilo que ele avalia.
Obviamente, esses julgamentos podem eventualmente errar ao considerar como implausíveis certas teses ou afirmações. Absoluta segurança contra erros exigiria a completa ausência de julgamento, o que significaria, por exemplo, a publicação de todo tipo de nonsense em revistas cientificas. Os princípios usados para julgar a publicação de artigos científicos são largamente tradicionais, adquiridos individualmente por cada avaliador na sua experiência de pesquisa, na literatura de seu campo ou transmitidos a ele por seus mentores intelectuais.
De todo modo, esse cabedal de princípios é em grande parte tácito, isto é, não são conhecimentos transmitidos em termos de regras lógicas, metodológicas ou epistemológicas explícitas. E mesmo quando há o esforço de explicitar e vocalizar essas regras, o seu significado só pode ser plenamente entendido por aqueles que militam naquele campo específico de pesquisa. Há muito que não pode ser explicitado, diz Polanyi, porque encontra-se no nível dos sentimentos acerca daquilo que é adequado ou são modos de trabalho que demonstram uma captação imaginativa de como as coisas são ou devem ser naquele campo de pesquisa.
Os princípios muito gerais do julgamento científico, como a exatidão, embora possam ser explicitados, têm sua aplicação determinada tacitamente. Afinal, o que conta como exatidão em um campo de pesquisa não conta como exatidão em outro. Princípios como importância sistemática e interesse intrínseco do objeto de estudo também entram na avaliação dos cientistas e podem, inclusive, relativizar a importância da exatidão dos resultados. Como resultados absolutamente exatos são raros, não é infrequente que os cientistas aceitem uma teoria menos exata por causa de sua adequação perfeita a um sistema de teorias já amplamente aceito.
A ciência é feita por esses juízos e avaliações delicadas realizadas por cientistas. Os seus parâmetros de julgamento são valores como acurácia, interesse, importância sistemática, simplicidade, etc., e seus juízos são emitidos tendo em vista um ideal de excelência que ambos, julgadores e julgados, aceitam tacitamente. A aplicação desse ideal, entretanto, não é especificável ou explicitável, pois o peso dos valores no julgamento é determinado no processo do julgamento. Tais juízos são tácitos, pessoais, mas não caprichosos. A percepção pessoal de cada cientista depende grandemente de uma percepção tradicional adquirida na sua aculturação dentro da comunidade dos cientistas.
A posição de Polanyi não é a de que esses juízos pessoais exercidos pelos cientistas sejam subjetivos, isto é, valham somente para o cientista que os emitiu. Polanyi está chamando a atenção para o fato de que a ciência, tanto quanto outros campos da existência humana, faz uso necessariamente de valores e de regras. A aplicação de juízos de valor não se dá por meio de um conjunto de regras lógicas explícitas como aquelas de um silogismo (A é B/B é C/logo, A é C), mas pela consideração do quão o caso concreto e singular aproxima-se do ideal que temos daquele valor. É uma aplicação qualitativa e não quantitativa. E mesmo no caso de regras explícitas, como uma lei jurídica, a sua aplicação aos casos particulares depende de interpretação e nunca está isenta de ambiguidades.
É certo que este cientista fará uma avaliação diferente da avaliação realizada por um outro cientista, mas todos esposam os mesmos princípios e valores, e a variação entre os juízos é ineliminável. Mas o significado concreto desses valores é aprendido pelo cientista tanto na sua experiência de trabalho quanto pela convivência com outros cientistas, inclusive seus orientadores e mentores. O que é aceitável e o que não é aceitável é mostrado tacitamente no modo como seus colegas e seus tutores se comportam diante das diversas situações de pesquisa. Obviamente, tudo isso é absorvido e filtrado pelo prisma pessoal de cada cientista, constituindo assim o seu conhecimento pessoal. A variação na aplicação desses valores compartilhados pela comunidade científica não é um problema a ser eliminado e sim a condição de existência de uma comunidade formada por pessoas humanas reais.
Retornando à palestra de Polanyi, os cientistas exercem controle sobre o que é publicado em revistas acadêmicas e sobre o que é considerado conhecimento assentado como também admitem a discordância e o dissenso. Todo o conhecimento do mundo externo só é possível na medida em que aceitamos tacitamente certas bases metafisicas. O cientista tem como sua base o corpo do conhecimento científico aceito e considera-o como um reflexo de como a natureza é realmente. E a natureza é uma fonte inesgotável de descobertas tanto quanto uma fonte de surpresas insuspeitadas.
Cada cientista recebe essa crença fundamental de seus professores e isso garante às novas gerações a liberdade de propor soluções diferentes de seus mentores e antecessores. Mas é mister ter em mente que esse corpo de conhecimentos assentados é tomado como a estrutura fundamental da natureza e que, por conseguinte, constitui o contexto de fundo sob o qual todas as descobertas novas serão avaliadas. Isso significa que qualquer teoria que ameace esse conhecimento assentado terá dificuldades de ser tomado em consideração seriamente. A não ser no caso em que a nova teoria abra perspectivas muito mais amplas para o conhecimento do que a base aceita até então.
Novas descobertas podem mudar o interesse dos cientistas em certos fatos estabelecidos e mesmo mudar os padrões intelectuais. Essas mudanças, porém, vêm sempre acompanhadas e são justificadas pela crença de que elas fornecem uma compreensão mais profunda da realidade. Assim, a um só tempo, o cientista é ensinado a respeitar a tradição herdada e incentivado a buscar novas descobertas, mesmo que elas impliquem na rejeição do conhecimento estabelecido. A liberdade de pesquisa está baseada na aceitação desses valores tradicionais que são passados aos novos cientistas.
A questão agora é saber como efetivamente se organiza a comunidade científica. Cada cientista busca conhecer o trabalho de seus pares e estar inteirado dos pontos onde há oportunidade de desenvolvimentos e de descobertas. É um processo descentralizado e livre de mútuo ajuste, pois cada cientista submeterá a seus pares as teorias que defende ou as descobertas que pretendidamente realizou sem que haja qualquer governo central que dirija os rumos da pesquisa.
As instituições científicas têm sua razão de ser justamente na suposição de que sempre há a possibilidade de progresso e que este só acontece pela iniciativa independente de cientistas individuais. Prédios, equipamentos caros, revistas acadêmicas, etc., só podem ser mantidas por conta dessa convicção tradicional que todo novato aceita quando ingressa nas fileiras da comunidade científica. Toda a confiabilidade do conhecimento científico depende do princípio de controle mútuo. Os pesquisadores vigiam-se mutuamente no sentido de que cada um deles é ao mesmo tempo avaliador e avaliado.
A ciência se organiza pelo compartilhamento de ponta a ponta de padrões de plausibilidade e de excelência. O controle mútuo forma um consenso mediado entre os cientistas. Os novatos são introduzidos nessa tradição desde seus primeiros trabalhos, acreditam na verdade e na adequação desses parâmetros e submetem seus esforços ao crivo crítico de seus colegas e de seus mentores na esperança de um dia contribuir para o progresso do conhecimento, ainda que pelo questionamento do saber estabelecido. Ainda que haja uma hierarquia com altas posições (cientistas de reputação mundial, editores de revistas acadêmicas, membros seniors de faculdades), ela é estabelecida pela competência manifestada na pesquisa.
O ato da descoberta científica inicia com pistas e pedaços aqui e acolá que excitam a mente do cientista com a promessa de descoberta de algo ainda oculto. O pesquisador fica obcecado por descobrir qual é o todo coerente que une as peças e os dados dispersos que ele tem diante de si. O processo de intuição dessa estrutura subjacente não é regido e nem determinado por nenhum conjunto explícito de regras, mas por um salto imaginativo do cientistas concreto. mas essas tentativas não são randômicas, não são hipóteses lançadas sem nenhum lastro.
O cientista investe tempo, dinheiro, prestígio e autoconfiança nas suas tentativas de solução dos problemas que o interessam intelectualmente. Portanto, as suas escolhas são responsáveis, são guiadas pela convicção de que elas o aproximam da descoberta da realidade subjacente aos fenômenos. Seus atos são pessoais sempre, porém submetidos às exigências impessoais e externas da realidade que pretende descortinar.
O cientista pensa haver encontrado a resposta de um problema científico quando submete seu trabalho a seus pares. Obviamente, os pares podem considerar a solução verdadeira ou falsa, após a examinarem utilizando os mesmos critérios esposados pelo cientista em julgamento. A aceitação por parte da comunidade científica não significa verdade, somente que a solução deve ser aceita por todos os membros.
Polanyi assevera que a busca pelo conhecimento manifestada na ciência pode servir de paradigma para associações livres de pessoas em busca de outros bens que, como a verdade, são considerados bens em si mesmos. Isto é, bens que têm valor intrínseco e comandam respeito. A liberdade pode ser reivindicada por esses dedicados indivíduos por causa daquilo mesmo que buscam. No caso dos cientistas, não há outra justificativa para a liberdade de pesquisa a não ser a busca pela verdade, algo valioso em si mesmo. Mas o cientista só terá essa liberdade se a sociedade em que se encontra também esposar o ideal da verdade cientifica.
A sociedade livre não é é simplesmente uma sociedade aberta onde tudo vale. É uma sociedade na qual homens dedicados a atividades cujos fins são considerados dignos de respeito têm a liberdade de perseguir tais bens. A sociedade livre é aquela na qual os cidadãos estão empenhados na busca de vários fins ideais (como a verdade) e que sabe repeitar as atividades livres de seus cidadãos na persecução desses bens. Uma sociedade assim não pode ser neutra com relação à verdade ou à falsidade, à justiça ou à injustiça, etc.. A organização descentralizada da ciência mostra a possibilidade de uma associação atada tradicionalmente a certos padrões e valores, mas ainda assim livre e criativa.
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