sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Mircea Eliade, iniciação, Mistérios gregos e Cristianismo


"Amiúde afirma-se que uma das características do mundo moderno é o desaparecimento da iniciação. (...) A originalidade do 'homem moderno', sua novidade com relação às sociedades tradicionais, é precisamente sua vontade de se considerar um ser unicamente histórico, seu desejo de viver em um Cosmos radicalmente dessacralizado. (...) A maioria das provas iniciáticas implicam, de um modo mais ou menos transparente, uma morte ritual seguida de uma ressurreição ou de um novo nascimento. (...)Todos os ritos de renascimento ou de ressurreição, e os símbolos que eles implicam, indicam que o noviço alcançou um outro modo de existência, inassecível àqueles que não enfrentaram as provas iniciáticas e que não conheceram a morte."

MIRCEA ELIADE, Initiation, Rites, Sociétés Secrètes, Introduction


O historiador das religiões romeno Mircea Eliade, em seu Initiation, Rites, Sociétés Secrètes, analisa a natureza do fenômeno religioso da iniciação. Logo na introdução do livro, Eliade coloca a questão do desaparecimento das iniciações no mundo moderno. Em que pese o fato de que o batismo é um rito iniciático, o homem moderno buscou abandonar todas as formas de iniciação a fim justamente de viver em um mundo puramente histórico. 

A História é o mundo da sequência indefinida e irrepetível dos dias sem que nenhum deles aponte para qualquer transcendência ou diferença ontológica.  Isto é, o mundo não comporta dias santos, tempos sagrados ou lugares sagrados. Não há nenhuma hierarquia ontológica no tempo e no espaço, tudo é sempre o mesmo. A iniciação, no entanto, como todo rito religioso, instaura a diferença ontológica, dessa vez no nível individual. O iniciado não é o mesmo antes e depois da iniciação. Ele foi ontologicamente elevado e partilha agora de uma vida exaltada. 

A iniciação é compreendida como um conjunto de ritos e de ensinamentos orais que têm como objetivo a modificação radical do estatuto religioso e social daquele que será iniciado. é uma mutação ontológica do regime existencial. Ele se torna outro. Obviamente, há diversos tipos de iniciação em inúmeros povos, mas é possível distinguir três grandes tipos: ritos comunitários de puberdade, ritos de sociedade secreta e ritos de vocação mística.

O primeiro tipo, o rito é comunitário, obrigatório para todos os jovens, e marca a passagem da infância à vida adulta. A iniciação introduz o jovem na comunidade dos adultos,  pois ele aprende os comportamentos, as técnicas e as instituições, bem como os mitos e tradições sagradas de sua comunidade. Os dois últimos tipos de iniciação distinguem-se do primeiro por serem individuais e não obrigatórios. Os ritos de entrada em sociedades secretas, Männerbünde, são individuais e geralmente reservados aos homens e representam o ingresso em uma confraria fechada com funções e cerimônias específicas. O terceiro tipo de iniciação é o da vocação mística, a iniciação do xamã ou do curandeiro. Esta é ainda mais específica, individual e pessoal. 

Eliade considera que os dois últimos tipos são muito próximos e que, na verdade, poder-se-ia considerar que ambos sejam variedades de uma mesma classe. No caso do xamanismo, a distinção encontra-se na importância do transe extático. De todo modo, há uma solidariedade estrutural em todos os tipos de iniciação. O iniciado passa por uma morte ritual e renasce em um outro estatuto ontológico. Assim como as festas sagradas de Ano Novo reatualizam os feitos dos deuses ou dos ancestrais e renovam todas as coisas como em uma nova cosmogonia, o iniciado também é lançado ao Caos primevo, é morto para a sua existência anterior, e renasce como um outro ser.

É preciso encerrar adequadamente o estado anterior para poder ingressar no novo estado. Assim, a vida humana é composta por uma série de iniciações ou por uma série de mortes rituais. Em outra obra, Mythes, Rêves et Mystères, Eliade recorda que para o homem religioso a morte é passagem e que os ritos iniciáticos fazem parte desse contínuo renascimento. A angústia que sente o homem moderno dessacralizado diante da morte é a angústia diante do Nada. Para o homem religioso, a morte é a Grande Iniciação que foi antecedida por outras mortes iniciáticas:

"A morte iniciática é, então, um recomeço, jamais um fim. Em nenhum rito ou mito encontramos a morte iniciática unicamente como fim, mas como condição sine qua non de uma passagem a um outro modo de ser, prova indispensável para se regenerar, isto é, para começar uma nova vida." (p.275)

Eliade encontra as iniciações em comunidades australianas, africanas, siberianas e européias. No caso da Grécia, o historiador romeno encontra traços dos ritos iniciáticos de puberdade na mitologia de Teseu, por exemplo. A entrada no labirinto do Minotauro reflete a ideia central do combate com o monstro, típico das iniciações heróicas. O treinamento dos jovens espartanos na agogé e sua posterior entrada na crypteia também indicam ritos de iniciação.

O cenário mais evidentemente iniciático é, como seria fácil supor, é composto pelos cultos de Mistério gregos (Elêusis, Orfeismo, Ísis, Mitra, etc.). Os Mistérios de Elêusis, por exemplo, estão fundados em um mito, o rapto de Perséfone por Hades e a busca de Deméter pela filha desaparecida, como descrito no hino homérico a Deméter. A iniciação de Elêusis, diz Eliade, descende diretamente de um ritual agrário da morte e da ressurreição de uma divindade que preside a fertilidade dos campos. O iniciado sofria uma mutação ontológica que tinha como promessa uma vida após a morte mais feliz.

A importância dos mistérios é a de evidenciar a persistência do rito iniciático e a sua capacidade de enriquecimento com novos valores. Os Mistérios, embora mantendo sua estrutura agrícola, há muito havia se revestido de valores religiosos novos. Não se tratava mais de garantir da colheita, mas sim de garantir o destino espiritual individual do iniciado. De modo análogo, algo dos Mistérios encontra-se no Cristianismo, mas assumindo outros valores. Mas não é necessário supor que o Cristianismo tenha tomado algo dos Mistérios, pois a presença do rito iniciático coexiste com toda revalorização da vida espiritual.

O batismo, por exemplo, seria um rito iniciático por meio do qual o convertido era introduzido em uma nova comunidade espiritual e tornava-se digno da vida eterna. Sua origem, todavia, não remonta a qualquer culto de Mistério, mas à ordem expressa do próprio Cristo. A eucaristia, igualmente instituída por Cristo, tem uma estrutura iniciática. Os fiéis partilham do corpo e do sangue de Jesus em um banquete sagrado. Os banquetes rituais faziam parte dos Mistérios. O batismo e a eucaristia santificam o fiel mudando seu regime existencial, fazendo-o sair da massa dos profanos e entrar na grei dos eleitos.

Eliade ressalta que, apesar desses elementos iniciáticos, há diferenças capitais entre os mistérios e o Cristianismo.  É mister notar que a ressurreição de Cristo não é igual à ressurreição periódica dos deuses dos mistérios. Cristo ressuscitou uma única vez, sendo esta a novidade histórica. A ressurreição é irreversível e irrepetível, e anuncia o início do eschaton. Uma nova era história havia se iniciado com a ressurreição de Cristo, uma transmutação total do homem e uma renovação completa do mundo.

O mistério da fé é o segredo de Deus e não algum culto iniciático greco-romano. E o mistério da fé deve ser pregado a todos os povos, sobre os tetos das casas. Embora o Cristianismo exiba certas estruturas iniciáticas, isso se deve ao fato, segundo Eliade, de que a iniciação faz parte de toda a renovação espiritual. Mas isso não evidencia que o Cristianismo tenha sido influenciado pelos Mistérios.

Não obstante, para que o mistério da fé fosse anunciado para além da Palestina e do contexto judaico original, foi necessário adotar uma linguagem universal, isto é, uma linguagem não confinada às fronteiras de uma cultura local. E, assevera Eliade, a linguagem religiosa universal é o símbolo. A filosofia era o outro movimento espiritual universalista no mundo do Império Romano. Então, o Cristianismo enriqueceu-se por meio dos símbolos arcaicos, redescobertos e revalorizados de acordo com a doutrina cristã, pelas imagens e temas iniciáticos dos Mistérios e pela assimilação da filosofia grega.

Os santos Padres, afirma Eliade, comparam a cruz de Cristo à Àrvore Cósmica, Axis Mundi, o Centro do Mundo. A cruz toma o lugar dos antigos símbolos de elevação ao Céu. O batismo também toma de empréstimo temas iniciáticos. A pia batismal é comparada ao sepulcro, referência à morte e ressurreição iniciáticas. Toda a linguagem de Dionísio, o Areopagita, é de fundo iniciático, com seu uso de mystagogos, mística e iniciações. 

Eliade considera que, em suam, tudo isso seja uma sublimação dos temas iniciáticos dos Mistérios. O Cristianismo, em seu projeto de cristianização do mundo antigo, apropriou-se de toda a herança imemorial dos deuses e dos heróis, dos ritos e dos costumes populares, dos cultos dos mortos e dos ritos de fertilidade. Todo o "provincianismo" religioso foi renovado em termos da necessidade de universalização da mensagem cristã. Por isso, o Cristianismo traduziu em termos cristãos todas as formas, as figuras e os valores que desejava homologar. Mas os mistérios cristãos não eram e não podiam ser os Mistérios. Estes desapareceram e foram substituídos pelos cultos cristãos.
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Sobre a religião grega antiga:

"The Nature of Greek Myths" de G.S. Kirk;
"Greek Folk Religion", "A History of Greek Religion" de Martin Nilsson;
"Greek Religion", "Ancient Mystery Cults" de Walter Burkert;
"Teofania", "Os Deuses Gregos" de Walter Otto;
"The Festivals of the Athenians" de W.H. Parke;
"The Ancient Oracles" de Richard Stoneman


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