sexta-feira, 10 de abril de 2015

Mircea Eliade, sagrado, tempo, espaço e ontologia



''Um historiador das religiões, quaisquer que sejam suas opiniões, considera, com efeito, que seu dever primordial é capturar o significado original de um fenômeno sagrado e interpretar a sua história.''

MIRCEA ELIADE, L'Épreuve du Labyrinthe, p.163

''O objetivo último de um historiador das religiões é compreender, e esclarecer para os outros, o comportamento do homo religiosus e seu universo mental.''

MIRCEA ELIADE, Le Sacré et le Profane, p.137

"O símbolo revela certos aspectos da realidade - os mais profundos - que desafiam qualquer outro meio de conhecimento"

MIRCEA ELIADE, Images et Symboles, p.


O fato primordial da História das Religiões, segundo o grande estudioso das religiões Mircea Eliade, é a existência universal daquilo que ele usou denominar de hierofania, isto é, a manifestação do sagrado. As hierofanias podem estar relacionadas a realidades tão comuns como uma pedra ou uma árvore ou a acontecimentos grandiosos, como a Encarnação e descida de Deus no mundo.

Seja qual for o objeto em que a hierofania acontece, ele torna-se outro sem jamais deixar de ser ele mesmo. Uma pedra sagrada ainda é pedra, embora manifeste algo para muito além dela mesma. Para o homem religioso - ao qual Eliade também chama de homem arcaico -, o Cosmos inteiro pode ser ocasião de hierofanias.

Contudo, o que é o sagrado? Segundo Eliade, a hierofania é a manifestação do poder, do Ser, em uma palavra, da realidade. O sagrado é a manifestação da realidade na sua forma mais própria, é uma saturação de Ser.

Por conseguinte, o profano, o não-sagrado, é aquilo que não é o real em si mesmo, é o deficitário de Ser, é, de certa forma, o não-Ser. Assim, para o homem religioso, viver no sagrado é propriamente viver na realidade.

Por causa da hierofania, o espaço do homem religioso não é um espaço homogêneo, contínuo e linear. Ao contrário, no espaço do homem religioso há rupturas e desníveis. Nele há o lugar sagrado. O lugar sagrado marca a hierofania e esta marca a revelação do eixo do mundo, o ponto fixo, aquilo que é realíssimo e que a tudo sustenta.

O ponto fixo é o lugar a partir do qual serão marcadas as direções e que, portanto, funda o próprio mundo. O que não é o lugar sagrado é, literalmente, informe, caótico, destituído da presença e do poder divinos. Por outro lado, para o profano o espaço é homogêneo e neutro e nenhuma diferença qualitativa se encontra entre seus diversos pontos.

O desejo do homem religioso é viver o mais que pode no real e no eficiente, isto é, no sagrado. Por essa razão, o mundo – o Cosmos - está onde há o sagrado e tudo o que está para além do mundo é o caos, o estrangeiro,o larvar, o inimigo.

A consagração de um lugar não é mais do que uma nova criação, um renascimento no qual o que estava fora do mundo é trazido para dentro de suas fronteiras. O local ou a cidade onde se dá a hierofania é sempre o centro do mundo. Não em um sentido geográfico, mas em no sentido qualitativo de Axis Mundi.

Por conseguinte, todo ataque externo à cidade é um ataque das forças do caos, do mal, do amorfo e das trevas. A guerra torna-se um reflexo da batalha do divino ordenador contra a besta desagregadora.

A vitória arquetípica do deus solar contra a serpente marítima é ciclicamente atualizada em ritos no qual o mundo é como que refundado e reiniciado pela nova vitória da ordem sobre o caos e o indistinto.



O templo é uma imago mundi, uma imagem do cosmos em todos os seus níveis. Ele se encontra no centro do mundo, lá onde a hierofania se deu e reflete a desigualdade ontológica dos espaços para o homem religioso.

Se o espaço sagrado não é contínuo e homogêneo, tampouco o tempo sagrado o é. Há épocas e eras sagradas, tempos de festa, ciclos sagrados, etc. Fora do tempo sagrado há o tempo profano e ordinário, assim como há o espaço profano.

O tempo sagrado, contudo, é reversível. Ele é reatualizado a cada nova festa, a cada ritual que pretende retornar liturgicamente ao tempo sagrado do ''no princípio''. O tempo sagrado não é uma sucessão ou uma duração irreversível. Ele não se perde, é sempre reatualizável, reversível, sempre presente a cada festa, como se fora ab origine, no princípio, lá onde os deuses fundaram o mundo. O tempo sagrado abole o tempo.

O tempo profano, aquele do homem irreligioso, é uma sucessão irreversível de dias irrepetíveis onde nenhuma presença divina ou misteriosa pode ser divisada. O tempo recorda-lhe existencialmente do limite, da finitude, da morte.

O tempo sagrado é um tempo mítico, primordial, original, não-histórico, sem nada anterior a ele, pois é nele que se funda o mundo e, portanto, o tempo. Mesmo quando os fatos sagrados aconteceram em tempos históricos determinados, como na vida de Cristo, os serviços litúrgicos reatualizam esse tempo comum santificado pela presença encarnada do divino.

Para o homem religioso o mundo se renova a cada ano, a cada rito que repete e reatualiza os feitos dos deuses ou do divino realizados ''no princípio''.O mundo reencontra sua santidade original, é refundado como se tivesse saído naquele momento das mãos do divino.

Nessa renovação, o passado é tornado não-ser, como se jamais tivesse existido. As purificações rituais realizam uma aniquilação e uma anulação do passado e de suas mazelas para que possa
nascer o novo. O novo não é a repetição de um ciclo já decorrido, mas o nascimento do mundo totalmente puro, intocado, sem passado, pleno de possibilidades.

Para que tal renovação aconteça, o mundo deve desaparecer totalmente. Essa é a função das festas e ritos orgiásticos e do carnaval. A desordem, a licenciosidade, a inversão das figuras de poder representam o retorno do mundo às águas inferiores, ao caos primitivo e amorfo do qual ele foi retirado pelos deuses.

Nesse dia, a serpente marinha Tiamat vence o deus Marduk para que este possa, na reatualização do rito do ano novo, ''vencê-la mais uma vez'' e fundar o mundo. A cosmogonia é o ato divino supremo, a manifestação de sua superabundância e de sua criatividade. Segundo Eliade, todos os mitos não são mais que variações do mito cosmogônico.

Nas festas sagradas o homem religioso toma contato com a verdade fundamental de que o mundo não é mera natureza - no sentido de um todo ordenado governado leis impessoais e imutáveis - , mas uma manifestação do divino, uma hierofania.

A "nostalgia das origens'' é uma expressão da necessidade do homem religioso de retornar sempre ao Ser, de recolocar-se periódica e constantemente na fonte geradora última de tudo o que há. Só se é plenamente homem quando se imita os feitos dos deuses ou dos heróis. Os relatos míticos fornecem o repertório de ações e de realizações que serão os modelos de toda ação e de toda realização plenamente humanas.

O mundo arcaico, de acordo com Eliade, nada sabe a respeito de atividades profanas. Todos os atos possuem significado definido – a caça, a pesca, a agricultura – de algum modo participam do sagrado. 

Tudo o que é sagrado tem um modelo extra-humano. As únicas atividades profanas são aquelas que não possuem qualquer significado mítico, isto é, que carecem de modelos exemplares. No mundo religioso, quaquer atividade responsável em busca de um propósito definido é um ritual.

A cerimônia de consagração de um rei, por exemplo, não é mais do que uma reprodução terrena da consagração mítica do rei dos deuses. Todo o gestual empregado, em seus mínimos detalhes, corresponde ao gestual do deus ''no início dos tempos''. A legitimidade do rito encontra-se na imitação da ordem eterna (Rta).

Um objeto ou um ato somente torna-se real se serve para imitar ou repetir um arquétipo. A realidade é alcançada somente na repetição e na imitação. O que não tem arquétipo não é real. 

Para Eliade, a ontologia arcaica ou religiosa tem uma estrutura platônica. Platão poderia ser encarado como um filósofo da ''mentalidade primitiva'', um pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos modos de vida e de comportamento da humanidade arcaica.

E ele concedia essa legitimidade não só por meios filosóficos, através da dialética e de sua doutrina das Idéias, mas também pelo uso constante de mitos criados por ele mesmo localizados em pontos centrais de seus diálogos.

A busca pelo modelo divino se manifesta também nos ritos iniciáticos. Os ritos de passagem e as iniciações marcam uma mudança radical de regime ontológico e de status social. Nascimento, puberdade, casamento e morte são algumas das ocasiões marcadas por passagens iniciáticas.

A iniciação revela que o homem religioso não se considera pronto, algo dado de uma vez por todas, mas, ao contrário, como um ser que, para se tornar verdadeiramente homem, deve abandonar seu estado inicial e assumir uma elevação ontológica que o conduz para cada vez mais perto dos deuses.

Os ritos iniciáticos comportam provas, morte e ressurreição simbólicas que foram fundadas pelos deuses ou pelos heróis. O iniciado tem abolida a sua humanidade inicial para assumir, em um segundo nascimento, uma humanidade plena, posto que divina.

O iniciado não é somente um renascido, mas um homem que recebeu revelações de ordem metafísica. O homem que passou pela iniciação é aquele que sabe e acesso à espiritualidade se traduz pelos simbolismos da morte e do renascimento. 

O neófito é lançado ao monstro, ao caos primevo, para que seja dissolvido, retorne ao amorfo e, vencendo a serpente, renasça completamente transfigurado, novo e sapiente. O que morre é sempre o inessencial, o irreal, o profano. 






O que renasce é o homem sacralizado, isto é, o homem real, banhado na realidade última. Por essa razão, nos ritos de passagem, o jovem adentra na sociedade dos homens, da qual esteve excluído até então.