quarta-feira, 22 de abril de 2015

"District 9", "Elysium", "Chappie", transhumanismo e a superação do homem



O espectador que assiste atentamente aos filmes District 9, Elysium e Chappie do sulafricano Neill Blomkamp facilmente percebe que há em todos as três obras dois temas recorrentes: a humanidade e a transformação. 

O primeiro deles é o clássico questionamento acerca do que nos faz humanos, afinal. Qual a diferença específica que nos distingue realmente de todo e qualquer outro ser e que, em tese, nos eleva ontologicamente acima deles por uma dignidade intrínseca. Nada mais antigo e nada mais explorado tanto nas artes quanto na filosofia. 

Ocorre que, se Blomkamp se limitasse a esse questionamento, seus filmes não teriam feito mais do que reencenar um questionamento filosófico que já foi trabalhado com maior profundidade em inúmeras obras cinematográficas clássicas.

Nesse ponto entra o segundo tema recorrente: a transformação. Se algo é evidente nas três películas é que ser humano não é suficiente. Ou melhor, a humanidade há de ser ultrapassada. Melhor ainda, ela tem que ser ultrapassada.

Em District 9, o tema é ventilado ainda de forma tímida. O protagonista, Wikus van der Merwe, já é um ser um tanto deslocado no meio social em que vive e reflete em si mesmo a exclusão em que vivem os alienígenas em uma Johanesburgo distópica. É casado com uma bela mulher, mas é hostilizado por seu sogro que o considerado inadequado para sua filha.

Ainda que relutante, ele toma parte da repressão que o sistema impõe aos alienígenas, sarcasticamente comparados a insetos. Sua transformação, que remete àquela de A Metamorfose de Kafka, é seguida de todas as consequências típicas do afastamento gradativo da norma vigente: exclusão, preconceito, perseguição, etc. 

Nada de muito novo em uma narrativa de "patinho feio". O ponto interessante encontra-se em uma leve sugestão que pode passar desapercebida no meio de um tradicional conto moral de percepção da realidade humana do outro: os alienígenas, os excluídos, não são simplesmente humanos, mas são mais que os humanos, pois possuem o segredo tecnológico superior de uma interação completa entre organismo e máquina.

Na verdade, mais que a transformação de Wikus em um "inseto", é sua transformação em um "homem-máquina" que é o centro do filme. Não é à toa que nesse momento ele se torna um herói que derrota as forças militares que pretendem usar o conhecimento alienígena para fins puramente bélicos.

Note-se que os militares - ou figuras de aparência e mentalidade militares - são os grandes vilões dos três filmes. E essas figuras sombrias estão sempre associadas ao poder, seja político ou econômico. 

O tema que é apenas sugerido em District 9 é claramente enunciado em Elysium, a propaganda de uma revolução. A estrutura clássica está toda lá: divisão de classes, injustiça, insensibilidade das classes privilegiadas, sublevação das classes oprimidas e uma esperança messiânica.

Em um futuro triste, vivem na Terra todos aqueles que não têm condições de morar em Elysium, uma estação espacial onde os ricos vivem nababesca e tranquilamente, a salvo de todos os perigos e carências que assolam os moradores do planeta azul. 

Na perspectiva do filme, qual o maior problema da Terra? A falta de cuidados e técnicas médicas. Em outros termos, tudo o que os terrestres fazem e pensam se dirige a um único objetivo: sair da Terra com o fim de alcançar o paraíso médico. A saúde corporal e a longevidade são os valores imperantes. Da garotinha com câncer até o protagonista/messias doente por exposição à radiação, tudo se passa em torno da busca pela saúde.

O protagonista é Max, o tradicional encrenqueiro incompreendido, de bom coração e com coragem de empreendedor que caracteriza o herói norte-americano. É encrenqueiro porque vê mais longe que todos os outros e tem disposição para realizar seus sonhos.

Max (máximo) tem um sonho impossível: chegar a Elysium. Quando ele fica doente por culpa da ganância e insensibilidade dos homens da Terra, a sua ida deixa de ser um mero sonho e transforma-se em um imperativo. Ele morrerá se não chegar lá para usufruir das benesses médicas da estação que, como o nome mitológico sugere, é para poucos.

Como ele alcançará tal feito? Tornando-se mais que um homem. Um quase-robô. Em uma palavra: transhumano. Eis a promessa: o herói só pode sobreviver se se tornar um transhumano. Max tem acoplado a seu corpo um exoesqueleto robótico que lhe dá força e resistência extrahumanas.

Por uma série de reviravoltas políticas protagonizadas pela cruel chefe da estação, Max se torna o portador da possibilidade de que todos se tornem cidadãos de Elysium. Em outros termos, o transhumano tem a chave do paraíso médico da saúde e da longevidade.

E mais, sua vida tem esse propósito, já que uma freira prevê seu futuro grandioso. O messias é anunciado por uma religiosa cristã, como João Batista anunciou aquele que viria para salvar o mundo e que, ao mesmo tempo, aboliria a lei antiga.

A estrutura é clara: ele é o messias prometido, uma imagem do Cristo. Ele vem de uma região pobre, sem perspectivas e ninguém vê nenhum valor nele - "pode vir algo de bom de Nazaré?". Vive entre os necessitados e os bandidos. 

Como o Cristo, Max instaurará uma nova economia, uma nova aliança, o Reino dos Céus. Será pedra de tropeço para muitos. Mas, ao mesmo tempo, pretende-se que ele seja a realização de tudo aquilo que a ordem anterior tinha de verdadeiro.

O transhumanismo é o novo messias. Tornado meio-máquina, Max pode derrotar seus inimigos, mesmo aqueles que tentarão usurpar esse novo mundo, como Kruger, agente da velha ordem que toma para si um exoesqueleto como o de Max.

Kruger representa os perigos da má utilização dessas novas tecnologias. Mas ele é indigno, é alguém que já é pervertido e louco mesmo antes de se apossar da armadura metálica. Ou seja, o perigo não é vem do transhumanismo, vem daqueles que dele podem se utilizar seguindo idéias da velha ordem. 

Mais uma vez, os militares e seus aliados nos poderes constituídos são a ameaça imediata ao paraíso prometido. Felizmente, Max elimina Kruger - que, antes, havia matado a fria diretora da estação - e assim afasta o perigo. 

Como o messias cristão, ele dá sua vida livremente em holocausto para que todos possam ser cidadãos de Elysium. O Reino dos Céus é tornado acessível a todos. Ele cumpre seu destino e a revolução está completa. A velha ordem caiu e a era de harmonia, saúde e longevidade se inicia.

O transhumanismo vence o homem antigo. Novos céus e nova terra, literalmente. O Reino é instalado aqui mesmo, no imanente. O único detalhe é que Elysium, pairando sobre a Terra, tem a forma de um pentagrama. Simbólico.

Não há como não notar que o tema da transformação reaparece em Elysium muito mais forte e explícito do que em District 9. O homem-máquina tem ali um papel messiânico evidente. É a tecnologia que trará ao homem a realização das promessas que a teologia e a religião não parecem capazes de cumprir: um novo corpo "ressuscitado" e o retorno ao paraíso perdido por Adão.

As consequências funestas da Queda são reparadas não pela Encarnação do Verbo de Deus no mundo, mas pela ação da tecnologia. Algo que é nossa criação pode no final nos salvar de nossa própria fragilidade humana. Eis o cerne de Chappie. No filme estão presentes de novo os mesmos elementos tradicionais do conto do "patinho feio": a inocência do simpático robô, a exclusão, o preconceito, etc. 

Está presente também o militar que se aproveita da tecnologia para fazer o mal. A diferença é que, dessa vez, ele é um cristão fanático. Se antes o cristianismo anunciava a vinda do messias cibernético de Elysium na figura de uma freira, desta feita ele se encontra já entre os inimigos da promessa transhumanista.

Max fôra criado por uma freira, isto é, era como o filho de uma virgem. Chappie tem um Criador, o cientista nerd idealista, mas tem pais "adotivos", o casal de excluídos/bandidos. Ambos são atrapalhados e, no fundo, simpáticos e ingênuos. O messias nasce entre os excluídos e marginalizados.

Chappie, assim como os outros robôs de sua espécie, foi criado para auxiliar ou substituir os humanos nas atividades policiais. O emprego desses autômatos tem como consequência feliz um decréscimo significativo dos crimes em Johanesburgo. Tudo indica que o uso de robôs seja o caminho para a garantia da segurança dos cidadãos.

Acontece que Vincent Moore, o militar cristão fanático - que trabalha na mesma empresa que Deon, o criador dos robôs-policiais - acha que o uso de robôs deve ser substituído pelo emprego de robôs controlados por humanos. Em outros termos, ele é ainda apegado à velha humanidade, embora aceite a interação homem-máquina até certo ponto.

O Criador, como Chappie denomina Deon, é como um demiurgo gnóstico. É um ser limitado que insere a consciência em um ente material já defeituoso e fadado à morte. A carcaça da qual Chappie é feito é defeituosa, acabará por conduzí-lo à morte e precisa ser urgentemente substituída.

O tema da transformação é aqui elevado a um novo patamar. Não só o homem deve se tornar um homem-máquina, mas a chave para a mais radical transformação da natureza humana, a superação da mortalidade, está nas mãos da tecnologia. Especificamente, nas mãos de uma criação humana, Chappie.

É ele que, tendo uma inteligência muito maior que a humana, pode descobrir o segredo de como transferir uma consciência à uma máquina e assim conceder aos homens o dom da imortalidade prometido pelas religiões. Não há segredo que uma máquina não possa decifrar. Tudo está a seu alcance, mesmo a imortalidade. 

Chappie derrota o mostro tecnológico controlado por Moore em um confronto que remete o combate entre Robocop e ED-209, mas que curiosamente inverte os papéis. Ao invés do homem na máquina vencer o robô é este que vence aquele. E, ainda mais curioso, Chappie perdoa Moore, mostrando que a máquina consegue entender melhor que o cristão o conceito mais característico do cristianismo.

O final do filme anuncia a redenção do Criador pelas mãos da criatura. Chappie transfere a consciência de Deon para um robô. A mensagem, de novo, é clara: a tecnologia, produto do homem limitado, pode remir seu mestre de suas limitações e alçá-lo à imortalidade. Realiza-se desse modo a mais alta promessa transhumanista.

Conscientemente ou não, os três filmes de Neill Blomkamp apresentam-se como uma narrativa da gradual aceitação de um suposto destino transhumanista do homem. De início, poucos são os que ouvem e acreditam na mensagem e, por isso, há incompreensão, exclusão, resistências e preconceitos de diversas ordens. 

Há os que negam esse destino por apego a filosofias ou religiões caducas e há os que só pensam nas vantagens bélicas ou econômicas.Todavia, existem os heróis que aceitam e buscam esse futuro promissor e fascinante no qual o homem é superado pelo homem-máquina, pelo transhumano imortal e onipotente. 

A questão do que é o homem serve nos filmes como gancho para a questão realmente central da transformação do homem em algo que o supera completamente. Blomkamp aparentemente está menos preocupado em dizer o que é o homem do que em transformá-lo. 


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