sábado, 11 de abril de 2015

Mircea Eliade, tempo sagrado e História


                               O jovem Mircea Eliade em sua estada na Índia.

''É somente nas sociedades ocidentais modernas que o homem arreligioso floresceu plenamente. O homem moderno arreligioso assume uma nova situação existencial: ele se reconhece unicamente como sujeito e agente da História e recusa todo apelo à transcendência. Dito de outra maneira, ele não aceita nenhum modelo de humanidade de fora da condição humana, tal como ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. O homem se faz a si mesmo e somente se realiza plenamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência diante de sua liberdade. Ele não será ele mesmo a não ser no momento em que for radicalmente desmistificado. Não será verdadeiramente livre a não ser no momento em que tiver matado o último deus.''

MIRCEA ELIADE, Le Sacré et le Profane, p.172


Como visto no post anterior, o aspecto central da ontologia arcaica ou religiosa se encontra na abolição do tempo por meio da imitação dos arquétipos e da repetição de gestos paradigmáticos.

Um sacrifício, por exemplo, não somente repete com exatidão o sacrifício original que se deu ab origine e que foi revelado pelos deuses, mas também reatualiza aquele mesmo momento mítico primordial.

Eis o paradoxo do rito. É dado aqui e agora, mas abole o tempo na medida em que torna presente de novo o ''tempo intemporal'' do mundo sagrado. No sacrifício o homem se torna partícipe do sacrifício original, como o de Purusha, no Rig Veda. Ele está presente à formação do mundo.

A abolição do tempo pelos ritos paradigmáticos revela uma tensão fundamental entre o mito e a História. Se o mito é o relato do mundo sagrado e atemporal e sua recitação suspende o fluxo do tempo trazendo o recitador àquele mundo divino, então a oposto do mito é a história, a sequência indefinida de acontecimentos singulares e irrepetíveis que não aponta para nada além de si mesma.

O Mito do Eterno Retorno é uma das respostas a essa tensão fundamental. Na maioria das religiões antigas, o tempo se apresentava sob uma forma cíclica. O universo nasce, dura e por fim é tragado por uma conflagração que faz tudo retornar ao amorfo, ao caótico.

Contudo, o fim de um universo é o início de outro e, logo após o caos, nasce um novo universo que passará pelo mesmo processo que deu fim ao anterior. Tal ciclo já se deu incontáveis vezes antes e se dará outras incontáveis vezes ainda. Em suma, não há História, uma sucessão indefinida de momentos singulares e irrepetíveis.

O mais conhecido ciclo cósmico é aquele dos Yugas hindus. Cada Yuga é uma era dentro do contínuo processo de afastamento da fonte original. São admitidos quatro grandes Yugas: Satya-Yuga, Treta-Yuga, Dvapara-Yuga e, por fim, Kali-Yuga. Há uma razão decrescente no ciclo dos Yugas que possui um aspecto qualitativo e um aspecto quantitativo.

No aspecto quantitativo, os Yugas têm uma duração temporal decrescente na qual o primeiro Yuga seria o quatro, o segundo Yuga seria o três, o terceiro Yuga seria o dois e o último Yuga seria o um. O estágio anterior é uma unidade mais longo que o posterior.

Qualitativamente, cada Yuga é uma sucessão decrescente de graus de observância do Dharma. O Satya-Yuga é a completude, a inteireza, a perfeição. Nele o Dharma é plena e naturalmente seguido. É a era de ouro, a época beatífica onde reinam a justiça, a felicidade, a opulência. O homem do Satya-Yuga encarna a norma cósmica e, por conseguinte, a lei moral.

No Treta-Yuga, os homens não seguem mais que três quartos do Dharma. O trabalho, o sofrimento e a morte são agora o apanágio do homem. O dever não é mais espontâneo e natural, mas tem de ser ensinado. Os modos próprios das varnas (castas) começam a se alterar.

No Dvapara-Yuga, somente a metade do Dharma permanece sendo seguido. As maldades e os vícios aumentam e a própria vida humana sofre um decréscimo em seus limites.

O Kali-Yuga, a era negra, é a mais curta das eras e a mais degradada. Somente um quarto do Dharma é seguido. É a era da desintegração, da discórdia e da disputa. O mal e a desordem imperam. A posse torna-se o único critério para o status social, a riqueza é a fonte das virtudes, a luxúria, os prazeres e as paixões convertem-se nos únicos desejos dos casados, a mentira e a falsidade são os únicos meios de sucesso, etc.

O único consolo do Kali-Yuga é a certeza de que ele marca o fim do ciclo de um Mahayuga e, por isso, prefigura um novo ciclo. O Mahayuga é o conjunto dos quatro yugas e, segundo algumas fontes, dura em torno de 12 mil anos e termina na pralaya, a dissolução completa. Há uma Mahapralaya, ao fim do milésimo Mahayuga. Mil Mahayugas perfazem um Kalpa e quatorze kalpas perfazem um Manvantara.

Cumpre ressaltar o caráter cíclico do tempo. Diante de cifras tão acachapantes, o sentimento é, a um tempo, de insignificância e de desejo de libertação. É por essa razão que as doutrinas hindus terão sempre um forte componente soteriológico, de libertação completa dos ciclos infindos.

A visão do tempo infinito, do ciclo sem fim das criações e das destruições dos universos – o mito do Eterno Retorno – é um instrumento de conhecimento e meio de libertação. Vistos sob a perspectiva do Grande Tempo, toda existência é precária, evanescente, ilusória. E não somente a vida humana, mas a própria História - com seus impérios e dinastias, suas revoluções e guerras – tornam-se efêmeros e vazios de realidade.

A existência no Tempo é ontologicamente uma inexistência, uma irrealidade. O mundo é ilusório justamente porque sua duração é limitada e, sob a perspectiva do Eterno Retorno, é como se não fosse. O mundo histórico dura somente o espaço de um instante e logo desaparece.

A saída, portanto, é buscar aquilo que está fora do tempo, o sagrado, o eterno, o ilimitado. Há dois caminhos para isso. O primeiro é Moksha, a libertação total da temporalidade a qual é o apanágio do jivan-mukta, o liberto em vida. E o outro é o caminho do Karma-Yoga apresentado por Krishna no Bhagavad Gîta, o cumprimento do Dharma sem atenção aos frutos da ação.

O mito do Tempo cíclico e infinito, ao desfazer as ilusões urdidas pelos ritmos menores do Tempo, isto é, pelo tempo histórico, revela a precariedade e, no limite, a irrealidade ontológica do universo e aponta para a libertação espiritual.

O mito do Eterno Retorno está inserido no conjunto dos mitos de renovação cíclica do mundo, como aqueles que embasam os ritos do Ano Novo. O sentido de tais mitos é o de que o mundo nasce e desaparece em um ritmo acelerado e que a cosmogonia é atualizada em todo rito de renovação.

Há uma outra solução para a tensão entre o tempo divino e o tempo histórico. A novidade dos monoteísmos é a concepção da revelação divina na História, ou seja, Deus se revela em momentos específicos, para pessoas e povos específicos em situações que não se repetirão. A hierofania não será mais dada em um tempo mítico, a-histórico, mas em um lugar e em um tempo determinados, localizados.

Em outros termos, a História, antes o locus do amorfo, do profano, do imanente, torna-se o locus privilegiado do sagrado, do transcendente. O destino coletivo e individual depende então de atos de manifestação divina únicos e irrepetíveis. Como a sarça ardente, a revelação de Deus a Moisés no Sinai e – o cume da História – a Encarnação do Verbo de Deus, Jesus Cristo.



Por essa razão, os acontecimentos históricos não são mais simples acidentes, expressões de uma dimensão profana, caótica e irreal que se opõe ao mundo sacro, ordenado e real da repetição ritualizada dos acontecimentos divinos dados no princípio. Ao contrário, os acontecimentos históricos podem ser hierofanias, manifestações da vontade divina, da aprovação ou desaprovação do comportamento do povo escolhido ou do fiel individual.

No cristianismo, é na História concreta que se dá a teofania perfeita que recapitula, fornece o sentido definitivo e justifica todas as hierofanias anteriores. O cristianismo esforça-se em salvar a História. Contudo, a História não é divinizada, pois ela será encerrada pelo eterno na escatologia final.

Embora sacralizem a História, os monoteísmos apresentam aspectos cíclicos, como o calendário litúrgico, as festas anuais, os ritos e cerimônias sempre repetidos. No cristianismo, essa repetição cíclica é explicitada no rito eucarístico que é um sacrifício onde o ser divino morre e assim renova e recria o mundo. "Eis que faço novas todas as coisas".

Seria possível então afirmar que o mundo dessacralizado é o mundo da História, o mundo no qual os dias não oferecem nenhuma porta ou saída para uma dimensão atemporal e transcendente. E, por conseguinte, o homem arreligioso é o homem da História.

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