sexta-feira, 24 de abril de 2015

Julien Sorel, Raskolnikov e o drama da pretensão



"Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê pares de quarenta anos com 100.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que o percebiam os famosos generais de divisão de Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles. Vejam esse juiz de paz, tão sensato, tão honesto até agora, tão velho, desonrando-se por temor de desagradar a um jovem vigário de trinta anos! Preciso ser padre."

JULIEN SOREL, em O Vermelho e o Negro, de STENDHAL


Há diversas semelhanças entre Julien Sorel e Rodion Raskolnikov: a consciência de sua superioridade sobre os demais, o orgulho ferido pelas condições adversas a que foram submetidos pelo destino, a ambição de galgar os degraus da elevação social, a disposição de utilizar de meios imorais para alcançar seus objetivos, a coragem e uma certa nobreza de caráter e a adoração pela figura de Napoleão.

O quadro que se apresenta é o de jovens angustiados e aflitos pelas limitações de seu meio e que percebem a um tempo a mediocridade daqueles que se encontram nas altas posições sociais e a evidente superioridade de suas almas e de seus intelectos. 

Quão grande é o drama de ver-se repleto de capacidades e talentos e constatar, ao mesmo tempo, que estes poderão muito bem jamais florescer como deveriam graças à precariedade do meio e à mediocridade daqueles que dominam o teatro do mundo! Talvez seja a consciência desse drama que pode facilmente ser divisado por todos que tornam quase inevitáveis ao leitor a simpatia e, porque não?, uma certa admiração pelas figuras de Sorel e de Raskolnikov.

Sim, eles são criminosos e seus objetivos não são afinal os mais nobres na escala qualitativa dos bens da vida humana. Mas um olhar mais profundo e mais complacente consegue perceber que seus atos são um protesto menos contra a estrutura de desigualdade social do que uma tentativa desesperada de resguardar e de realizar a justiça de uma ordenação hierárquica dos talentos.

O escândalo não é exatamente que haja diferenças sociais, mas que estas estejam baseadas não no mérito e no talento e sim no mero nascimento ou no dinheiro. É contra a preeminência dos medíocres que ambos se erguem.

Napoleão surge justamente como a figura simbólica do talento que vence a despeito das resistências das condições concretas da vida e da sociedade. Nele o valor se afirma e vence, fazendo curvarem-se as veneráveis mediocridades que até então dominavam e governavam o mundo.

Ele sonha com batalhas e com a rápida ascensão na hierarquia militar que, segundo pensa, reconheceria e premiaria o seu valor e a sua bravura. Não obstante, o caminho de Sorel, ainda que iluminado por Napoleão, não se encontra nas fileiras dos filhos de Ares. O que não o impede de enxergar a si mesmo como um brilhante comandante militar demonstrando sua inteligência tática nas batalhas em que se envolve. Só que seu front não é Austerlitz e sim os enfadonhos salões da dita "sociedade".

Por conseguinte, tampouco seu caminho é o da ação violenta direta contra o explorador, como o de Raskolnikov. A dissimulação e a ascensão dentro das brechas da própria estrutura social constituem seu método. Em uma época - a Restauração que se seguiu ao fim do império napoleônico - na qual um rei curva-se piedosamente diante de um simples bispo, o modo mais certo de triunfar socialmente é tornar-se membro dessa confraria que dobra os joelhos até de monarcas.

Então é necessário a Sorel a dissimulação de seus verdadeiros sentimentos e convicções. Ele esconde sua admiração por Napoleão, Rousseau e Voltaire, exibe Joseph de Maistre e aprende de cor as Escrituras em Latim. Em suma, finge a cândida piedade de um camponês devoto que aspira às ordens sacerdotais. 

Sua prodigiosa memória e sua aguda inteligência lhe servem para ganhar as graças de um velho cura que, contudo, é experimentado o suficiente para entrever a falsidade e a ambição daquele talentoso rapaz filho de carpinteiro. Com o hábito religioso, consegue adentrar no seio da pequena nobreza provinciana de sua cidade na qualidade de um piedoso seminarista feito tutor dos filhos do prefeito, Monsieur De Rênal.

Sorel engana, ilude, decerto. É um radical em meio às frivolidades e provincianismos que imperam na casa de seu empregador, mas sua beleza e seu fascínio acabam ganhando o amor sincero da esposa ingênua e inexperiente deste, Mme. De Rênal. Mas ele a ama? 

O traço dominante de seu caráter é o orgulho. Teme somente ser humilhado pelos que estão acima dele, odeia-os e despreza-os interiormente. Sua intrepidez e inexperiência quase o lançam na desgraça pública de um escândalo de adultério. A conquista do amor de Mme. De Rênal é encarada por ele como uma grande vitória militar.

As desconfianças de Monsieur De Rênal crescem e, por um golpe do destino, após um curto período no seminário, Sorel é enviado à casa da grande nobreza parisiense. Enfim, ele se encontra no centro do mundo. Torna-se secretário do velho aristocrata Monsieur Marquis De La Mole que, ironicamente, perdera tudo e fora exilado durante a Revolução e os anos napoleônicos.

O marquês afeiçoa-se por Julien, encarrega-o do cuidado de sua biblioteca e de boa parte de seus negócios e até mesmo confia-lhe uma missão secreta em meio à uma conspiração anti-jacobina. O jovem, apesar de seus esforços, não brilha no salão dos De La Mole e chega mesmo a angariar a antipatia de muitos dos aristocratas que ali frequentam.

Curiosamente, aos poucos Sorel desperta a atenção de Mathilde, filha do bom marquês. Inteligente, ácida e de caráter volúvel, a Mlle. De La Mole entedia-se até a morte com os salões elegantes e, principalmente, com seus insossos pretendentes aristocráticos. Superando seu desprezo inicial, ela percebe o vigor e a natureza orgulhosa de Julien. Isso a agrada e a faz conceder ao empregado deferências que contrariam as práticas e os costumes de sua classe.

O encontro dessas almas é um dos pontos mais interessantes da obra de Stendhal. Sedenta como Sorel por aventuras e por heroísmos, mas com uma imaginação alimentada por histórias românticas de grandes amantes de tempos passados, Mathilde sentia-se especialmente ligada ao destino de um seu ancestral do século XVI, Boniface De La Mole, que fora decapitado, sendo sua cabeça reivindicada e enterrada por sua amante, a rainha Margarida de Navarra.

De certo modo, ambos são insatisfeitos com o mundo que se lhes apresentava. Sorel por se achar melhor do que a posição social a que o destino e a sociedade lhe concederam. Mathilde por considerar aquele mundo destituído do heroísmo e do valor dos gloriosos tempos passados. Para ele o herói é Napoleão, aquele que, vindo das classes baixas, se eleva pelo mérito e pela força às alturas do poder. Para ela, a heroína é uma rainha que não se furta a prestar as últimas homenagens a seu bravo amante.

Não leva muito tempo para tornarem-se íntimos. Porém, o orgulho de ambos torna sua relação amorosa uma experiência dolorosa e repleta de crueldades. Julien, por um lado, orgulhoso, encara o amor de Mathilde inicialmente como uma vitória do plebeu revoltado que é sobre a aristocracia que ele odeia e despreza. Ao mesmo tempo, desconfia que está sendo vítima de uma conspiração para desmoralizá-lo e humilhá-lo. Por fim, convence-se da sinceridade da bela jovem aristocrata e de que também a ama.

Mathilde, por seu turno, ama Julien, mas ressente-se desse sentimento que a seus olhos a rebaixa frente a um subalterno e maltrata e despreza seu amante toda vez que este demonstra alguma fraqueza. Convence-se de que não o ama e dele se afasta, fazendo-o amargar dias de extremos desespero e infelicidade. Em seguida, enche-o de promessas de sacrifício amoroso somente para depois arrepender-se de suas palavras e desprezar o amante com palavras ferinas e humilhantes.

Afinal, Julien não é um Boniface De La Mole e sim o reles secretário plebeu de seu pai. Em desespero, o inexperiente Julien procura a ajuda de um nobre russo que o aconselha a cortejar por meio de cartas amorosas uma dama da alta sociedade que frequenta o salão da mãe de Mathilde.

Nada mais fácil para fazer nascer ou reascender o amor do que o ciúme e a perspectiva da perda do(a) pretendente para um(a) rival. Tema que irá se repetir no ciclo de Em Busca do Tempo Perdido, de  Marcel Proust, o amor que nasce do ciúme e do medo da perda sela de vez o destino do amante. A jovem Mathilde entrega-se a Julien e engravida.

O escândalo parece inevitável. Movida pelo senso do dever - ou pelo desejo de criar de vez um desfecho dramático como os das histórias que habitam sua imaginação? -, Mathilde conta a seu pai sobre seu romance com Julien e informa-o de seu estado interessante. Pede-lhe modesta pensão para viver com o marido, afastada da azáfama da sociedade.

Surpreendentemente, o marquês concede a ambos uma pensão substancial, faz de Julien tenente de um regimento de hussardos, doa-lhe terras e ainda consegue que um outro nobre reconheça o marido de sua filha como seu "filho ilegítimo". Com um só golpe, o "general" Sorel logrou as mais impressionantes vitórias: dobrara pelo amor uma jovem e linda aristocrata, tinha um herdeiro, tornara-se finalmente militar e um nobre senhor de terras.

"A arrogância precede a ruína e a altivez, a queda" sentencia o livro dos Provérbios de Salomão.  O passado do jovem ambicioso retorna para cobrar-lhe seu preço. A felicidade de Julien e de Mathilde é desfeita quando o marquês recebe uma carta de Mme. De Rênal - instigada por um clérigo que era seu confessor e ambicionava ser seu amante - na qual dizia explicitamente que Julien era somente um maquiavélico alpinista social que se introduzia nos bons lares da sociedade como um jovem devoto somente para depois seduzir a dona da casa a fim de tomar para si o que era dela e dos seus.

Transtornado, o impulsivo Sorel abandona Mathilde e atira na Mme. De Rênal durante a missa celebrada por seu confessor e diretor espiritual. Fizera aquilo por vingança contra quem destruíra seu sonhos de grandeza ou por ciúme de um possível amante de Mme. De Rênal? Aqui a ambiguidade dos motivos de Julien torna-se mais explícita.

E essa ambiguidade cresce quando o leitor questiona-se sobre a verdadeira natureza da relação do jovem com Mathilde. Não será seu romance com a volúvel aristocrata não era uma repetição do amor que sentiu pela Mme. De Rênal, inclusive nos detalhes marcantes dos passeios nos jardins e da subida de escada ao quarto da dama na calada da noite?

Seja como for, uma vez preso, Julian convence-se de que ama realmente Mme. De Rênal e não Mathilde. Alegra-se quando descobre que a primeira não morreu e aborrece-se com as visitas e os esforços da última para salvá-lo da pena capital. Não busca safar-se, assume sua culpa e a premeditação de seu crime.

Durante o julgamento que mais parece um evento social ou um espetáculo, Julien reafirma sua admissão da culpa e da premeditação do crime discursando diante da multidão que acompanha o julgamento. Afirma que muitos de seus juízes cometeram torpezas tão ou mais graves que a sua para chegar onde estão e que seu crime foi querer abandonar sua condição precária e ascender ao mundo da "sociedade".

É condenado e guilhotinado. Mathilde, dando curso à sua fantasia romântica, reivindica sua cabeça e enterra seu corpo, tal qual Margarida de Navarra fez com seu ancestral Boniface De La Mole. Impactada pela morte de Julien, Mme. De Rênal morre de amor pouco tempo depois do jovem.

Julien Sorel e Rodion Raskolnikov representam personagens de revolta contra as condições materiais que impedem a realização plena de suas capacidades e talentos. Mas também são personagens de ambição, de orgulho e de pretensão. Dotados de evidentes qualidades, ambos, contudo, têm de si mesmos uma imagem exaltada, pretendidamente à altura de seu ídolo comum, Napoleão. Resta saber se suas qualidades de fato ombreiam-se com as suas pretensões.

Cumpre notar que tais personagens de Stendhal e de Dostoievski, embora separados temporalmente, partilham uma hierarquia de valores comum na qual o sucesso no mundo, a fama, a riqueza, o reconhecimento são os fins últimos que os movem. Em uma palavra, são mundanos. Suas almas são consumidas pelo desejo e pelo conflito entre este e os obstáculos que se antepõem à sua realização.

Seria possível questionar, inclusive, se a ambição que os corrói nasce da consciência de sua superioridade ou se esta está, ao contrário, a serviço daquela. "Queremos e ambicionamos, logo temos direito à posse", pensam. E o fundamento dessa pretensão se apresentaria ad hoc como um direito natural do homem superior: "porque somos como Napoleão".

Se é certo que as condições materiais adversas podem podar o florescimento de um homem de gênio, não é certo que todos os submetidos a essas condições seriam homens de gênio se as condições fossem modificadas a seu favor. Sorel e Raskolnikov pensam que se encontram na situação de um gênio impedido de desenvolver-se por obra de uma conspiração das circunstancias.

Não é possível ser gênio antes de efetivamente sê-lo. Obviamente, a grandeza exige certo "capital", certa potência, por assim dizer, natural. No entanto, o homem grande só o é porque torna-se grande, constrói-se na imposição voluntária da unidade de uma regra ditada pela razão à multiplicidade dos atos concretos. A pretensão é justamente a segurança da posse de algo anterior à tensão que irá constituí-la concretamente.

Em suma, esses jovens não têm efetivamente nada, mas crêem-se desde já merecedores de condições que não obstaculizem a manifestação de seus talentos. No fundo, são presas de um idealismo das condições."Mostraríamos a grandeza que possuímos se as condições fossem ideais". O problema é que elas nunca são. Aliás, a grandeza jamais é abstrata.

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