"Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo, a saber: o papel redentor do justo (o 'eleito', o 'ungido', o 'inocente', o 'mensageiro'; em nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e o consequente desaparecimento das tensões históricas encontram seu mais exato precedente no mito da Era de Ouro que, segundo diversas tradições, caracteriza o começo e o fim da História."
MIRCEA ELIADE, Le Sacré et le Profane, p. 175 (tradução própria)
A presença do mito na consciência humana moderna e secularizada pode manifestar-se de modos diversos, todos camuflados sob capas as mais diversas. Uma delas é a política. Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, os movimentos políticos milenaristas e totalitários do século XX revelavam estruturas tradicionais de ordem mítica que, no entanto, apresentavam-se ali de forma deturpada ou mesmo caricatural.
Em sua obra Aspects du Mythe, Eliade afirma que, no momento em que a Igreja cristã torna-se a religião oficial do Império Romano, ela adota uma postura de combate e de condenação ao milenarismo, isto é, a doutrina de que haveria um reino terrestre milenar paradisíaco onde todos os conflitos desapareceriam. Não obstante, a heresia milenarista retorna no século XI pela boca de visionários que proclamavam a doutrina comum de que o Éden seria em breve restaurado na Terra após um período de grandes e variadas tribulações.
A partir de então, a esperança escatológica do Fim do Mundo e da destruição próxima da História e de suas mazelas e sofrimentos foi acalentada e repetida sob diversas formas. Este mundo logo seria destruído e substituído por um outro no qual os bons finalmente seriam recompensados e os maus punidos. O otimismo da proximidade do fim da História finca raízes na consciência européia, muito embora as próprias igrejas cristãs há muito não vivessem essa tensão escatológica ou não aprovassem suas formas mais recentes.
Eliade afirma que esse milenarismo faz sua nova aparição no século XX nos movimentos políticos totalitários como o nazismo e o comunismo. Ambos têm os mesmos elementos escatológicos, já secularizados: anunciam o fim do mundo e o aparecimento próximo de um paraíso terrestre, a vitória dos eleitos (arianos, proletários) sobre as forças do mal (judeus, burgueses), a realização final da justiça decretada pela Providência e o fim da História e de seus sofrimentos.
Descolados de sua fonte original e já muito secularizados, esses mitos manifestam-se em doutrinas políticas como aquelas professadas por Marx. Eliade expõe brevemente a estrutura mitológico-escatológica do comunismo em Le Sacré et le Profane. O proletariado é o justo eleito cujos sofrimentos darão fim ao mundo tal como o conhecemos e que inaugurará um reino perpétuo de justiça. Da mesma forma, ele é o profeta e o salvador que trará o Apocalipse onde as forças do Bem e do Mal, do Cristo e do Anti-Cristo, digladiar-se-ão, com a vitória final do Messias.
"É mesmo significativo que Marx retome, por sua conta, a esperança escatológica judaico-cristã de um fim absoluto da História. Ele se distingue nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo, Croce e Ortega y Gasset), para os quais as tensões da História são consubstanciais á condição humana e não podem jamais ser completamente abolidas"(Le Sacré et le Profane, p.175).
A mesma análise da mitologia presente no marxismo encontra-se ipsis litteris em Mythes, Rêves et Mystères. Adiciona-se ali, contudo, uma análise da mitologia nazista. Comparado ao otimismo do mito escatológico marxista, o mito nazista parece a Eliade estranhamente mal-ajambrado. Mesmo deixando-se de lado as limitações próprias do racismo que compõe o mito nazista, permanece o pessimismo fundamental da mitologia germânica. O aspecto escatológico do mito germânico é o Ragnarök, o combate final entre deuses e monstros que trará o mundo ao seu fim, regredindo-o ao caos primevo, do qual renascerá segundo o tradicional mito do eterno retorno.
Eliade considera que a substituição do eschaton cristão pelo germânico equivalia à substituição de um fim pleno de promessas, de um fim da História na inauguração do Reino de Deus perpétuo, por uma escatologia profundamente pessimista. Em termos políticos, essa substituição traduzir-se-ia no abandono das velhas esperanças judaicas em nome de uma suposta alma germânica e, principalmente, na preparação para a grande batalha entre os deuses e os monstros na qual todos, deuses, heróis e homens, perderão suas vidas para que um novo mundo ressurja no futuro. É o suicídio coletivo de toda uma nação.
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