quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Guénon, inversão, quantidade e qualidade


"O homem 'mecanizou' todas as coisas e, por fim, acabou por 'mecanizar-se' a si mesmo, alcançando o estado de falsas 'unidades' numéricas perdidas na uniformidade e na indistinção da 'massa', ou seja, definitivamente na multiplicidade; é isso, certamente, o triunfo mais completo que se pode imaginar da quantidade sobre a qualidade." (tradução minha do original em francês)

RENÉ GUÉNON, Le Régne de la Quantité et les Signes des Temps, p.259


Para René Guénon, a opção moderna pelo aspecto quantitativo da manifestação marca um dos eventos mais importantes da inversão valorativa que caracteriza o abandono da sabedoria tradicional no ocidente. Ao reduzir as coisas ao quantitativo, a despeito de todas as aplicações de ordem prática possibilitadas por esse movimento, o homem moderno abre as portas para o materialismo mais grosseiro.

Descartes identificava a matéria à extensão e afirmava que o mundo físico se limitava àquilo que podia ser tratado por meios matemático-geométricos: figura, largura, altura, profundidade e movimento. Não há cores, sabores, cheiro ou finalidades.Tudo o que é físico obedece a leis mecânicas rígidas cujo fundamento se encontra na geometria.

É claro que essa visão criou e cria enormes problemas, uma vez que o real não se curva a tais pretensões reducionistas. Os sucessores de Descartes nem sempre tinham o mesmo conceito de mecanismo do mestre e as divergências não tardaram a aparecer. No entanto, a confiança da realidade de uma ciência baseada no caráter ontologicamente matemático do mundo físico pareceu não ter sido abalada por essas contendas.

As teorias científicas tornaram-se cada vez mais matemáticas em seus métodos e fundamentos e difundiram sub-repticiamente na mentalidade geral o materialismo prático, um comportamento que independe de afirmações teóricas. E a própria sociedade é concebida segundo tais moldes, nos quais cada homem não é mais do que uma mera repetição numérica e a "massa" nada mais do que a soma dos indivíduos.

Na ausência de um princípio superior que ordene as coisas numa síntese que não nega, mas abarca o particular dando-lhe um sentido que o ultrapassa, o mundo moderno se esforça por criar sociedades nas quais os homens são peças numericamente determinadas numa maquinaria que a tudo nivela pelo infra-humano.

Os grandes sistemas políticos coletivistas, nacionalistas ou internacionalistas, são expressões evidentes dessa tendência moderna. Neles, os homens são unidades meramente numéricas, niveladas pelo igualitarismo raso e pela militarização da sociedade. Toda e qualquer diferença e aristocracia são veementemente condenadas em nome de um paraíso de igualdade absoluta onde mesmo o talento será igualmente repartido entre os membros da coletividade.

Outra coisa não é isso senão uma revolta contra a Natureza e sua distribuição "injusta" de bens e capacidades. "Há que se reformar a Natureza!", é o mote do moderno. E essa "reforma" é propiciada por uma ciência que entende o mundo como matemática, onde céus, terra e homem são submetidos ao igualitarismo dos cálculos.

Guénon aponta também para um fenômeno digno de nota: o materialismo grosseiro, atingido seu grau mais alto de solidificação e expansão, tende agora a ser substituído por um movimento de dissolução. As próprias ciências naturais apontam para uma pulverização do conceito de matéria, sem no entanto abandonar o modo eminentemente matemático de tratamento do real. Na verdade, elas o aprofundam, pois essas mesmas teorias tornam-se mais e mais afastadas de qualquer base palpável no real mais imediato.

Dessa forma, segundo Guénon, o materialismo, enquanto doutrina filosófico-científica, parece estar ultrapassado pela própria ciência. Entretanto, ele sobrevive a si mesmo no seio da sociedade ocidental como um modo de vida caracterizado pela ausência de valores espirituais legítimos.

Como dito acima, o real resiste a essas empreitadas reducionistas e a tendência para a quantificação nunca chegará a um termo no qual a redução ao quantitativo seja completa, pois, como assevera Guénon, a quantidade pura e a qualidade pura não se manifestam, mas são condições da manifestação.

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sábado, 14 de agosto de 2010

William Blake e a geometria divina





As gravuras acima apresentadas, obras do gênio visionário do artista inglês do século XVIII William Blake, representam duas imagens bem diversas da constituição do mundo em suas relações com a geometria.

Na primeira delas, um ancião curvado sobre si mesmo, usa com os dedos um compasso de cujas extremidades emanam raios de luz. O ancião, evidentemente, é Deus e o ato ali representado é o da Criação do mundo. "Deus como um arquiteto". Mas o que isso significa simbolicamente?

Em primeiro lugar, é preciso que se diga que Blake, um místico de grande profundidade, se dedicou a criticar a nascente tradição científica de seu tempo. E suas críticas se concentravam na tentativa de submissão do real a um ideal racional e abstrato. De certa forma, Blake transpôs a oposição clássica entre Jerusalém e Atenas para os seus dias, só que dessa vez opondo Jerusalém a Newton.

A segunda gravura, sugestivamente intitulada "Newton", apresenta um homem, também curvado sobre si mesmo, concentrado na resolução de um problema geométrico numa folha de papel. Em suas mãos, um compasso.

Ora, dada sua notória resistência a Newton e toda concepção de mundo postulada pela ciência nascente, se impõe a conclusão de que , embora Deus e Newton usem a geometria, ela não tem o mesmo significado em ambas as gravuras.

Deus usando um compasso, no início dos tempos, significa o poder criador se exercendo. "Deus dispôs todas as coisas em medida, número e peso", diz Sabedoria 11,20. A medida vem em primeiro lugar porque é a forma primordial implicada no número e no peso. Criar é impor medida, "o mesmo outra vez", padrão, ordem, logos, proporção, Eidos.

Todas as coisas têm uma medida, a qual se repete em cada exemplar, sempre de novo, sem no entanto haver mera repetição numérica. Duas coisas, embora aparentemente iguais, realmente se distinguem.

Medir é escolher um padrão arbitrário e impô-lo a algo. Por isso, medidas diversas podem ser equivalentes, no sentido em que, por meio delas, se descobre uma mesma proporção entre as partes e o todo daquilo que se mede. Nesse caso, a coisa é sempre anterior à medida. Ela já é uma proporção dada.

Deus, por sua vez, não impõe um padrão arbitrário às coisas. Ele cria o padrão. E essa "medida" não pode ser entendida como mera geometria. Não se trata aqui de um Deus que cria um mundo com aspectos exclusivamente quantitativos. A "medida" é um Logos, uma "proporcionalidade intrínseca", como diria Mário Ferreira dos Santos, e engloba todos os aspectos da coisa considerada, sejam eles quantitativos ou qualitativos.

Deus, na gravura de Blake, está agachado sobre si mesmo, o que significa simbolicamente que Ele tira tudo o que há de seu próprio poder infinito. Ele é único, dotado de onipotência e a ninguém recorre para realizar sua obra. A unicidade divina é sugerida na gravura pelo círculo no qual a figura divina parece estar contida.

O braço de Deus está saindo desse círculo, quebrando, de certa forma, essa unidade primordial. É o símbolo do início da manifestação/criação, da saída do mundo do indiferenciado, do "não-ser". Por sua vez, o símbolo do círculo remete ao simbolismo solar. Nele se representa o princípio formador, limitador e criador que concede forma ao princípio de potencialidade passiva, representado pelo negror que envolve a cena. E as nuvens, localizadas em torno de Deus, mostram a transcendência divina, bem como aquilo da obra que ainda não se manifestou.

Do compasso, dois raios de luz se projetam formando um triângulo que representa a emanação das coisas a partir do centro divino. Pode-se ver aí também uma representação do gradual afastamento da fonte. O compasso serve para descrever círculos e estes representam as naturezas das coisas, tomadas como unidades que refletem a unidade primordial.

Em "Newton" se vê um homem agachado sobre si mesmo, fixando atentamente o olhar sobre o papel. Ele parece imitar Deus, seja na postura, seja no uso do compasso. O homem parece querer entender o mundo por suas próprias forças, por seu próprio entendimento, aplicando sua própria medida.

E ele assim o faz concentrando toda sua atenção naquilo que é geométrico e eminentemente abstrato. Ele aponta para o papel e parece dizer "isto é o real". Ele está sentado sobre uma espécie de pedra cujo aspecto se confunde com o chão. O homem pretende estar assentado no real.

Mas Blake faz com que o olhar e a atenção do geômetra estejam numa posição oposta a esse chão colorido. Ele ignora o real mais imediato, a cor e a vida. Sua mente se concentra na folha onde se inscreve um triângulo. Não foi a ciência moderna que declarou a subjetividade das qualidades e uma realidade física absolutamente governada pelo quantitativo?

Ao contrário do triângulo verticalizado da gravura do criador, o triângulo de "Newton" se encontra na horizontal. Ele aponta somente para aquilo que está na esfera imanente, aquilo que está ao alcance de nosso horizonte humano.

O dedo do geômetra aponta justamente para a base do triângulo, denotando o completo afastamento da fonte primordial de todas as coisas e a natureza da era que ali se inaugurava. O papel enrolado indica que, para ele, muito ainda há para ser descoberto segundo os métodos nos quais agora se concentra tão detidamente. Mas a escuridão parece crescer ao seu redor.

Não há dúvida quanto à opção de Blake pela geometria divina.