domingo, 28 de junho de 2015

Hume, ceticismo, mundo externo e vida comum




Na Seção XII da Investigação Acerca do Entendimento Humano, intitulada Da Filosofia Acadêmica ou Cética, Hume leva a cabo uma reflexão acerca do ceticismo, encerrando seu livro. Nela o filósofo declara que ninguém jamais alguma vez encontrou alguém desprovido de opiniões e princípios sobre temas referentes à ação ou à especulação. Assim ele se refere ao cético pirrônico, numa interpretação segundo a qual o pirronismo propugnaria a suspensão universal do juízo.

Ora, segundo Hume, há um ceticismo antecedente, o qual afirma que se deve duvidar universalmente do conjunto de nossas opiniões e princípios anteriores para que se possa encontrar princípios evidentes por si mesmos, idéias claras e distintas, dos quais se possam deduzir verdades através do simples raciocínio. 

Embora o filósofo escocês duvide da possibilidade da dúvida universal, da existência e da utilidade de princípios evidentes por si mesmos (como se daria a passagem do intuitivo para o discursivo?), ele considera que a prescrição de um ceticismo como atitude prévia à investigação filosófica é salutar e útil.

Entretanto, há um ceticismo que é conseqüente à investigação filosófica, no qual se chega à conclusão de que todo o entendimento é falho e falso, derivando daí a doutrina de que não se pode alcançar princípios seguros e verdadeiros, devendo-se portanto suspender o juízo universalmente. Hume admite que a maioria dos argumentos desses céticos extremados é irrefutável e passa, a seguir, a examinar alguns deles.

O filósofo inicia seu exame com o argumento cético acerca da existência do mundo exterior que é considerado por muitos autores contemporâneos como o problema central e distintivo do ceticismo moderno. 

Segundo Hume, impelidos pelo instinto, os homens comuns e os animais tomam como certa a existência do mundo exterior que continuaria existindo ainda que eles não mais estivessem no mundo. Assim, uma cadeira permaneceria invariável na existência ainda que ninguém a tomasse como percebida. Contudo, como se pode garantir tal coisa se tudo o que temos são percepções na mente?

Mesmo que digamos filosoficamente que o que temos são percepções causadas por objetos externos, as dificuldades não são solucionadas. Como se pode provar tal relação causal? Poderia alguém objetar que o que causa as percepções não são objetos externos mas um espirito desconhecido ou uma causa ainda mais desconhecida. 

A suposta conexão entre as percepções e os objetos externos seria uma questão de fato e, portanto, objeto da experiência. Mas esta não tem presente a si nada além de percepções, sendo a presumida conexão totalmente desconhecida. Apelar para Deus seria tolice, pois se o mundo exterior está em questão, não se poderia encontrar argumentos para defender sua existência.

O resultado a que se chega com a exposição de tais argumentos é o de que a opinião fundada no instinto é irracional e que a opinião fundada na filosofia é inconclusiva e sem poder de convencimento. Encontramo-nos diante de uma diaphonia, ou seja, não há como decidir entre as duas posições. De um lado temos um instinto irracional que não resiste a um questionamento filosófico mínimo, e de outro temos uma resposta filosófica que não convence. 

Devemos então aplicar aqui a epoché (suspensão) cética? Mas aplicar a suspensão do juízo acerca da existência do mundo externo tornaria impossível a vida cotidiana. A certeza indiscutível da existência do mundo é uma das bases principais da conservação dos seres vivos em geral e do homem em particular.

Da mesma forma, as dúvidas céticas acerca do entendimento levam à uma diaphonia. De um lado se tem uma tendência mecânica injustificada racionalmente - o hábito - e do outro temos uma tentativa de inferência racional que não se sustenta. Se falhamos em justificar racionalmente a indução e o hábito se revela como um instinto irracional, então não deveríamos suspender o juízo acerca de nossos raciocínios baseados na experiência? Contudo, a epoché nesse caso não levaria à inação e à morte?

Hume responde asseverando que as ocupações e necessidades da vida diária dissipam as dúvidas céticas. Os princípios são vencidos pela natureza. Ninguém jamais cairá na inação por conta da validade irrefutável das críticas do ceticismo. As dúvidas partirão no momento mesmo em que se apresentar para o homem uma única necessidade básica para sua conservação.

“Mas, uma vez que os céticos abandonam as sombras e se defrontam com os mais poderosos princípios da nossa natureza – decorrentes da presença dos objetos reais – que movem nossas ações e sentimentos, seus princípios desvanecem como fumaça e equiparam o mais resoluto cético ao mesmo nível dos outros mortais.” 

Hume é um cético que reconhece que as dúvidas do ceticismo extremo, embora irrefutáveis, não conseguiriam sobrepor-se à natureza instintiva do homem. Em outros termos, o filósofo escocês é cético com relação ao próprio ceticismo. Assim, as dúvidas céticas revelariam os limites de nosso entendimento bem como os limites do próprio ceticismo. 

Dessa forma, Hume apresenta o que ele chama de ceticismo moderado ou acadêmico. O primeiro aspecto deste se revela na humildade e na consciência das limitações intrínsecas ao entendimento. Os homens em geral são dogmáticos e detestam a dúvida, aferrando-se às suas opiniões e sendo intolerantes com as alheias. 

A simples consciência da fragilidade de nosso entendimento quebraria em tais dogmáticos sua pretensiosa segurança e os faria hesitar na sua obstinação. Na verdade, o sábio é aquele que desconfia de seus próprios saberes e é consciente de que o que conquistou é pouco frente às complexidades da natureza.

O outro aspecto do cético moderado, que advém das críticas pirrônicas, é limitar as investigações aos objetos que mais se adaptam à capacidade limitada do entendimento humano. Embora a imaginação tenha a tendência a se perder naquilo que é remoto e extraordinário, deve-se trazê-la de volta à vida cotidiana através do ceticismo moderado. 

Devemos nos ater aos assuntos da prática e experiência cotidianas e para chegarmos a tal decisão,“nada pode ser mais útil do que nos convencer de vez da força da dúvida pirrônica e da impossibilidade de que algo pode libertar-nos dela, exceto o forte poder do instinto natural.”

Hume se coloca como o cético moderado e defende um conhecimento que se circunscreva aos limites estreitos de nosso entendimento, ao invés de voar nas alturas das especulações metafísicas. Circunscrevermo-nos aos limites de nosso entendimento nada mais é do que nos limitar à vida cotidiana.

O medo de que as dúvidas céticas pudessem levar à inação e o conseqüente problema de se insular a vida prática da vida filosófica, não nascem na filosofia de Hume. As dúvidas céticas mostram os limites e as incertezas de nossa racionalidade ao mesmo tempo em que revelam sua própria fragilidade diante dos instintos naturais.

Evidentemente a interpretação de Hume do pirronismo é controversa. Ele atribui aos pirrônicos um dogmatismo negativo na doutrina de que se deve suspender universalmente o juízo. De fato, os pirrônicos não pensavam assim. Como Jonathan Barnes apontou, o pirrônico podia ter crenças, desde que não fossem dogmáticas, ou seja, que não fossem afirmações categóricas com respeito ao mundo, mas simples impressões. 

Além disso, a epoché tem seu alcance determinado por questões que causem inquietação ao indivíduo em particular. Somente a estas questões, não à todas, se aplica a epoché cética. O alcance da suspensão, com o objetivo de levá-lo à ataraxia (imperturbabilidade) será determinado por aquilo que perturba o indivíduo.

Uma vez afastado o perigo da inação e do insulamento e demarcado os limites da investigação humana, quais serão, para Hume, os conhecimentos ao alcance do homem? Serão aqueles já citados anteriormente: as relações de idéias e as questões de fato

As primeiras tratam das relações de quantidade e número, sendo passíveis de prova e de demonstração. As últimas tratam de questões empíricas e se fundam na relação de causa e efeito e somente podem ser decididas pela experiência (o empirismo será uma metodização da vida cotidiana). Quaisquer pretensões ao conhecimento que não se encaixem nas duas categorias acima citadas serão rejeitadas como sofismas e ilusões.


sábado, 27 de junho de 2015

O Sol nascerá amanhã, sr. Hume?




“ O impasse humeano é o impasse humano.”

W. O. QUINE, Naturalized Epistemology

"Eu concordo plenamente com a paráfrase que faz Wittgenstein faz de Hume: 'A necessidade de uma coisa acontecer porque outra aconteceu não existe. Somente existe necessidade lógica.'"

KARL R. POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p. 438


David Hume assim intitula a seção IV da Investigação Acerca do Entendimento Humano: "Dúvidas Céticas sobre as Operações do Entendimento". Nesta seção, o filósofo irá expor suas famosas críticas acerca da noção de causalidade. Alguns comentadores (Jonathan Bennett e Barry Stroud, por exemplo) consideram esse momento da argumentação humeana como um momento negativo e crítico ao qual se seguirá um momento positivo e sintetizador. 

O filósofo divide os objetos da investigação humana em dois gêneros: relações de idéias e relações de fatos. As relações de idéias dizem respeito às matemáticas, à álgebra e à geometria, onde a certeza é alcançada de forma intuitiva, por simples operação do pensamento, não dependendo de fatos exteriores. As relações de idéias são regidas pela necessidade lógica, cuja negação implica em contradição.

De modo diverso, as relações de fato não são regidas por tal certeza intuitiva e a negação de qualquer fato é perfeitamente inteligível. O contrário de um fato é sempre possível , o contrário de algo necessário é contraditório, mas a necessidade strictu senso é somente lógico-matemática. Os fatos são contingentes, ou seja, sua negação não implica contradição ( P v ~ P ).

Hume prossegue e faz algumas declarações importantes. Primeiramente o filósofo nos revela o objetivo da investigação que se seguirá. O objetivo centra-se na questão de se saber qual a natureza da evidência que nos faz inferir o inobservado do observado. 

Uma vez que Hume já negou que questões de fato possam ter o mesmo caráter de necessidade lógica que têm as matemáticas, resta agora saber como fazemos inferências num domínio do conhecimento onde todo fato é contingente e não implica logicamente qualquer outro. 

Nas palavras de Barry Stroud:

“Ele quer saber porque e como fazemos as inferências particulares que fazemos de um evento ou estado de coisas a outro. Essa é a questão acerca da causalidade à qual Hume dedica a maior parte de seu tempo tentando responder" 

Hume assevera que os filósofos pouco têm cultivado essa questão e que é útil destruir a fé cega e a segurança que impedem o raciocínio e a investigação livre. Descobrir os defeitos da filosofia comum nos leva a buscar algo mais completo e mais satisfatório. 

O escocês pretende mostrar que o raciocínio lógico-dedutivo, certo e demonstrável, não é o raciocínio da investigação empírica. Ao mesmo tempo afirma que busca a natureza da inferência cotidiana e comum que fazemos do observado ao inobservado. Seu objetivo, segundo nos garante, enquanto questiona a filosofia comum e a fé cega, é tentar algo mais completo e satisfatório do que aquilo que é comumente apresentado.

O filósofo, tendo em mente o objetivo acima ressaltado, passa a investigar os raciocínios acerca de questões de fato e declara que estes se baseiam na noção de causa e efeito. É somente através de tal noção que podemos ultrapassar o estreito limite de nossa memória e de nossas percepções atuais, inferindo o não observado do observado. A evidência da ligação entre causa e efeito não poderá ser atingida a priori, pois como ficou estabelecido anteriormente, a demonstrabilidade e necessidade lógica são atributos somente do pensamento formal-matemático.

Ora, se a inferência estabelecida pela causalidade não se funda nos poderes de uma razão formal, qual seu fundamento ? Hume nos responde: a experiência. De fato, apenas fundados no conhecimento de um objeto não poderíamos jamais saber quais seriam seus efeitos:

“O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela.”

Neste momento se insinua na argumentação humeana um de seus aspectos céticos mais importantes: o filósofo limita o poder da razão no seu conhecimento do mundo. Não é o entendimento, mas a experiência que nos ensina sobre as constantes naturais. Por conseguinte, a busca das razões últimas dos fenômenos, a busca tradicional da filosofia, está vedada aos homens. 

Podemos encontrar pela experiência princípios gerais sob os quais subsumimos os fatos, mas não podemos encontrar as causas das causas mais gerais. Numa linguagem que lembra Newton, Hume limita o conhecimento humano aos fenômenos. Mais à frente esse tema se tornará mais claro, com o apoio de uma base naturalista.

Entretanto, se a base inferencial da causalidade é a experiência, e esta se refere somente a fatos do passado, pode-se estendê-la para o futuro? Será que há motivos fortes o bastante para, apoiados em instâncias observacionais limitadas do passado, inferir instâncias inobservadas do futuro potencialmente infinitas? Isso não supõe a tese de que o futuro se conformará ao passado? Mas a experiência não nos pode fornecer apoio para tal tese.

O problema proposto por Hume, largamente conhecido como o problema da indução, mostraria, em tese, os limites do entendimento humano. Mesmo a experiência mais cotidiana é atingida por essa dúvida cética. 

Não há uma solução racionalista nos moldes tradicionais, pois foram expostas as fraquezas da filosofia comum. Contudo, Hume oferecerá uma solução cética para o problema. Será aí que o ceticismo e o naturalismo humeano aparecerão com todas as suas cores.

No início da seção V intitulada Solução Cética destas Dúvidas, Hume faz um breve elogio aos céticos acadêmicos caracterizando-os como inimigos da arrogância, das elevadas pretensões e das especulações que transbordam os estreitos limites da vida e da prática cotidiana. O filósofo nos diz que não se deve temer que tal escola, inofensiva e inocente, possa solapar com suas dúvidas os raciocínios da vida diária. Isto porque a natureza manterá sempre seus direitos, impedindo a inação que seria fruto da descrença extrema.

Essa interessante passagem dá a impressão de ser uma autodefesa humeana e de uma identificação com o papel de cético. Entretanto, ele nos garante que esta vida cotidiana não será afetada pelas dúvidas levantadas pelos céticos e por sua própria conclusão de que nos raciocínios baseados na experiência não nos apoiamos em argumentos racionais. Há um princípio da natureza humana que sempre manterá seus direitos a despeito de toda e qualquer dúvida.

Tal princípio não é outro senão o costume ou o hábito. Toda vez que experimentamos uma repetição contínua e uniforme de algum evento, temos a propensão de esperar sua repetição futura. O hábito ou costume não é raciocínio ou processo do entendimento, mas um princípio da natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos, que produz uma propensão (racionalmente injustificada) de que o futuro se conformará ao passado.

Hume defende que o costume é reconhecido por todos e bem conhecido por seus efeitos. É algo que todo ser humano pode conhecer por experiência e o filósofo renuncia a dar a sua razão última, a causa dessa causa. Não é seu objetivo dizer por que é o hábito o grande guia da vida humana, mas apontar que é assim que as coisas acontecem, descrever um fato da natureza humana. Fato esse que pressupõe ele mesmo a invariabilidade dessa natureza e que, por conseguinte, se apoia numa inferência indutiva.

O filósofo escocês vai mais longe e declara que, uma vez não havendo justificativas racionais para as inferências indutivas, a certeza que acompanha nossos raciocínios sobre a experiência nada mais é que uma crença:

“Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.” 

A crença não é nada além de uma concepção mais vívida e forte. Hume admite a dificuldade de dar uma definição mais exata da crença e assevera que tal tarefa é como tentar definir a sensação de frio ou a paixão colérica. Não obstante, todo o nosso conhecimento das relações de fato são baseadas em tal sentimento vivaz e da experiência.

Ora, e não é esse mecanismo eficaz? Se não fosse o hábito nosso conhecimento do mundo exterior não se estenderia além de nossa experiência imediata. De nada serviria a um ser vivo um conhecimento de tão estreita amplitude. É imprescindível para a sobrevivência a capacidade de prever os acontecimentos futuros baseado em dados do passado.

É imprescindível também que haja concordância entre o que inferimos de experiências passadas e o curso natural das coisas. Certamente podemos fazer inferências indutivas incorretas, mas não todo o tempo. Cada vez que uma de nossas induções é confirmada, notadamente em aspectos cruciais de nossa existência, notamos que a natureza seguiu o curso que previmos e que há uma harmonia entre o que inferimos pelo hábito e o que vemos realizar-se na experiência cotidiana.

Se a inferência dada a nós pelo hábito fosse deixada à cargo dos lentos pensamentos e operações da razão humana, não teríamos sobrevivido. Aquilo que é conditio sine qua non para a conservação dos seres humanos, nos foi dado na forma de instinto e tendências mecânicas. É interessante a seguinte declaração de Hume:

“Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.” 

Há similaridade entre o funcionamento automático dos membros e o hábito que rege nossas inferências baseadas na experiência. Em ambos os casos, os usamos sem sabermos como os usamos. É algo de automático e instintivo. Nesses últimos parágrafos da Seção V da Investigação revelam-se as tendências naturalistas de Hume. 

Após mostrar que o fundamento para a indução e relações de causa e efeito não é racional-dedutivo, chega-se a conclusão que nossas inferências a partir da experiência devem-se a um princípio muito conhecido de todos, o hábito ou costume, que em nada tem a ver com o entendimento. Esse princípio da natureza humana é tão forte que age sem que saibamos como explicá-lo e que assim nos garante a sobrevivência.

Na Seção IX, Hume afirma que sua tese acerca do hábito e da indução terá mais autoridade se for comprovado que tal comportamento também é característico dos animais. Se algo é confirmado pertencer à anatomia de uma certa classe de organismos, forma-se daí uma propensão forte a pensar que esse algo é comum a outros seres vivos. Mais uma vez, provando sua tendência eminentemente empírica, Hume usa argumentos indutivos.

Ora, segundo o filósofo, claramente os animais aprendem por experiência, inferindo o inobservado do observado e também é evidente que tal inferência não é racional. Os animais não agem baseados em uma dedução lógica. E nem os homens em suas ações, nem os filósofos em sua vida ativa. A inferência indutiva, não-racional, parece nivelar todos os seres vivos.

“(...) o próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual depende toda a conduta da vida, nada mais é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico, agindo em nós de um modo desconhecido de nós mesmos; e que em suas principais operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparações de idéias, que são os objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é sem dúvida um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados educativos”

Assim, homens e animais têm o mesmo instinto de derivar o inobservado do observado. É algo de automático e irracional que acontece a despeito da consciência daquele que opera. Tal instinto é a garantia de sobrevivência do ser vivo, pois sem ele não se poderia conservar a vida e agir no mundo. 

Hume parece querer apontar para a pressão pela sobrevivência como a causa de um comportamento como o revelado no hábito. Este é independente da racionalidade dedutiva e exerce maior influência no ser vivo, mesmo naquele dotado de razão. A vida é o grande valor que é preservado por esse instinto. Pode-se é claro, aperfeiçoar este mecanismo, metodizando-o, como Hume mostrará à frente quando discutir os conhecimentos possíveis ao homem.

Contudo, tais conhecimentos deverão estar baseados na força do instinto revelado no raciocínio experimental. E este se circunscreve ao plano da vida cotidiana. Eis mais uma vez o motivo cético de permanecer nos estritos limites da vida comum. O instinto fornece as bases irracionais para a sobrevivência e conservação da vida e os argumentos céticos mostram que devemos permanecer em seus limites.

Entretanto, se é assim, sabemos se o Sol vai nascer amanhã?

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Hume, idéias, impressões e ceticismo



"A Natureza é sempre mais forte que os princípios."

DAVID HUME, Investigação Acerca do Entendimento Humano


Os comentadores da obra do filósofo escocês do século XVIII David Hume geralmente concordam em atribuir à Teoria da Origem das Idéias o ponto central e sustentador do ceticismo do filósofo escocês. É através dela que ele irá questionar as ambições fundacionistas do racionalismo de inspiração cartesiana e sobre ela apoiará suas dúvidas céticas acerca do conhecimento.

Na Investigação Acerca do Entendimento Humano, Hume inicia sua argumentação dizendo:

“Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado , e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação” 

Hume pretende partir aqui de um fato comum a todos os homens, fato conhecido e experimentado por qualquer um, a saber, a diferença entre a sensação de algo e sua simples recordação ou antecipação imaginativa. Isso é algo claro e evidente porque é sensível, empírico. 

A argumentação tem em sua base um enunciado acerca de algo empírico, manifesto a todos os homens. É a partir de um dado sensível que Hume construirá suas críticas céticas e determinará, ao final delas, a impossibilidade de um conhecimento não-empírico.

A diferença ressaltada por Hume pode ser ilustrada por exemplos empíricos diversos. Um homem encolerizado pode claramente sentir a distinção entre o que o estimula nesse momento e a simples recordação ou antecipação imaginativa de tal sentimento. Se nos é dito que alguém está amando é-nos fácil imaginar como é isso (se alguma vez já também amamos), porém impossível sentí-lo como aquele que ama. Entretanto, de que tipo é essa diferença? Hume responderá que é uma diferença não de natureza, mas de vivacidade.

É o grau ou a força da vivacidade que distinguem essas percepções do espírito. As mais fortes e vivazes são chamadas então de impressões e as mais fracas de idéias. As impressões são aquelas em que ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, queremos ou desejamos. As idéias são aquelas de que temos consciência quando refletimos sobre as impressões.

Desde já fica clara a dependência das idéias com relação às impressões. Aquelas são somente um grau menos vivaz destas. Contudo, aparentemente podemos criar pelo pensamento coisas que de fato jamais temos experiência no mundo, tal como um centauro. 

Hume assevera que se analisarmos uma idéia como a do centauro veremos se tratar somente de uma combinação das idéias de homem e de cavalo. Isso valeria para todos os pensamentos que parecem não ter origem em nenhuma impressão. O filósofo escocês postula então o que ficou conhecido como princípio da cópia segundo o qual todas as idéias são cópias mais fracas das impressões.

Para defender sua tese, Hume lança mão de dois argumentos. O primeiro deles defende que todas as idéias, complexas ou não, podem ser reduzidas à impressões sensíveis. Mesmo a mais mirabolante e feérica das idéias, que parece não possuir nenhuma relação com a experiência, quando analisada, se revela uma conjunção de idéias mais simples e estas, por sua vez, reduzem-se à impressões. Se tal afirmação não está correta, algum adversário poderia trazer à luz alguma idéia irredutível à impressão sensível.

Tal argumento é menos um argumento que a indicação da única forma possível de refutação de sua tese. Hume reafirma o princípio da cópia como um enunciado universal e que, logicamente, só pode ser refutado por um enunciado singular. Se até o momento nenhum adversário pôde dar um exemplo refutador e, ao contrário, multiplicam-se indutivamente os exemplos confirmadores, pode-se considerar a tese como estabelecida.

O segundo argumento se refere ao fato de que uma deficiência de um órgão sensitivo priva seu portador de suas impressões e assim também de suas idéias correspondentes. Um cego não poderá ter noção do que é a luz e alguém que nunca provou um vinho não pode imaginar seu gosto. 

Hume faz uso aqui do que Jonh Stuart Mill chamará, no século seguinte, de Método da Diferença. Para sabermos se X é a causa de x eliminamos X numa experiência e vemos se x se mantém. Em caso negativo, afirmamos que realmente X é causa de x, pois ausência do primeiro gera a ausência do segundo.

No caso em questão Hume se beneficia de um dos poucos casos em que a natureza propicia um experimentação não-artificial do tipo do Método da Diferença. Temos a constante empírica em que sensações proporcionam idéias afins e temos as exceções, a “instancia de teste”, onde a deficiência de um órgão sensitivo ou sua não aplicação, impede a ocorrência de impressões das quais então não se seguem idéias correspondentes.

Ora, uma vez estabelecido o princípio da cópia, Hume passa a tirar suas conseqüências lógicas. Podemos esclarecer os significados, a natureza e a realidade de nossos conceitos e termos filosóficos investigando sua origem sensível e removendo assim todas as infindáveis e estéreis discussões que assolam a filosofia. Se um termo não puder ser derivado de uma impressão ele é digno de suspeita e de rejeição. Eis o primeiro golpe no racionalismo de inspiração cartesiana.

O segundo golpe vem da conseqüência clara de que se o princípio da cópia está correto, então não há idéia inata. O racionalismo dedutivo pretendia partir de idéias claras e distintas, inatas à razão humana e, desta base sólida e indubitável, deduzir conhecimentos verdadeiros sobre o mundo. 

Entretanto, Hume diz:

“Mas admitindo-se os termos impressões e idéias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas idéias não o são.” 

Ao contrário do que querem os cartesianos, não partimos de idéias inatas como fundamento e delas deduzimos conhecimentos sobre o mundo. São nossas impressões que têm o caráter primordial, sendo as idéias meras cópias sem vivacidade do que nos advém dos sentidos. Um golpe cético: a razão não é o fundamento das suas próprias idéias.

Não obstante, deve haver algum princípio de conexão entre as idéias, pois estas nos vêm de forma organizada. Hume defende que existem três princípios de conexão: semelhança, contiguidade e causalidade.

“Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original; quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros. E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha.”

Hume, dentre os três princípios que limitam e regem o poder da imaginação, irá se dedicar precipuamente à análise da causalidade nas seções seguintes de sua obra. É em tal análise que aparecerão suas mais famosas páginas céticas.

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