sábado, 27 de junho de 2015

O Sol nascerá amanhã, sr. Hume?




“ O impasse humeano é o impasse humano.”

W. O. QUINE, Naturalized Epistemology

"Eu concordo plenamente com a paráfrase que faz Wittgenstein faz de Hume: 'A necessidade de uma coisa acontecer porque outra aconteceu não existe. Somente existe necessidade lógica.'"

KARL R. POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p. 438


David Hume assim intitula a seção IV da Investigação Acerca do Entendimento Humano: "Dúvidas Céticas sobre as Operações do Entendimento". Nesta seção, o filósofo irá expor suas famosas críticas acerca da noção de causalidade. Alguns comentadores (Jonathan Bennett e Barry Stroud, por exemplo) consideram esse momento da argumentação humeana como um momento negativo e crítico ao qual se seguirá um momento positivo e sintetizador. 

O filósofo divide os objetos da investigação humana em dois gêneros: relações de idéias e relações de fatos. As relações de idéias dizem respeito às matemáticas, à álgebra e à geometria, onde a certeza é alcançada de forma intuitiva, por simples operação do pensamento, não dependendo de fatos exteriores. As relações de idéias são regidas pela necessidade lógica, cuja negação implica em contradição.

De modo diverso, as relações de fato não são regidas por tal certeza intuitiva e a negação de qualquer fato é perfeitamente inteligível. O contrário de um fato é sempre possível , o contrário de algo necessário é contraditório, mas a necessidade strictu senso é somente lógico-matemática. Os fatos são contingentes, ou seja, sua negação não implica contradição ( P v ~ P ).

Hume prossegue e faz algumas declarações importantes. Primeiramente o filósofo nos revela o objetivo da investigação que se seguirá. O objetivo centra-se na questão de se saber qual a natureza da evidência que nos faz inferir o inobservado do observado. 

Uma vez que Hume já negou que questões de fato possam ter o mesmo caráter de necessidade lógica que têm as matemáticas, resta agora saber como fazemos inferências num domínio do conhecimento onde todo fato é contingente e não implica logicamente qualquer outro. 

Nas palavras de Barry Stroud:

“Ele quer saber porque e como fazemos as inferências particulares que fazemos de um evento ou estado de coisas a outro. Essa é a questão acerca da causalidade à qual Hume dedica a maior parte de seu tempo tentando responder" 

Hume assevera que os filósofos pouco têm cultivado essa questão e que é útil destruir a fé cega e a segurança que impedem o raciocínio e a investigação livre. Descobrir os defeitos da filosofia comum nos leva a buscar algo mais completo e mais satisfatório. 

O escocês pretende mostrar que o raciocínio lógico-dedutivo, certo e demonstrável, não é o raciocínio da investigação empírica. Ao mesmo tempo afirma que busca a natureza da inferência cotidiana e comum que fazemos do observado ao inobservado. Seu objetivo, segundo nos garante, enquanto questiona a filosofia comum e a fé cega, é tentar algo mais completo e satisfatório do que aquilo que é comumente apresentado.

O filósofo, tendo em mente o objetivo acima ressaltado, passa a investigar os raciocínios acerca de questões de fato e declara que estes se baseiam na noção de causa e efeito. É somente através de tal noção que podemos ultrapassar o estreito limite de nossa memória e de nossas percepções atuais, inferindo o não observado do observado. A evidência da ligação entre causa e efeito não poderá ser atingida a priori, pois como ficou estabelecido anteriormente, a demonstrabilidade e necessidade lógica são atributos somente do pensamento formal-matemático.

Ora, se a inferência estabelecida pela causalidade não se funda nos poderes de uma razão formal, qual seu fundamento ? Hume nos responde: a experiência. De fato, apenas fundados no conhecimento de um objeto não poderíamos jamais saber quais seriam seus efeitos:

“O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela.”

Neste momento se insinua na argumentação humeana um de seus aspectos céticos mais importantes: o filósofo limita o poder da razão no seu conhecimento do mundo. Não é o entendimento, mas a experiência que nos ensina sobre as constantes naturais. Por conseguinte, a busca das razões últimas dos fenômenos, a busca tradicional da filosofia, está vedada aos homens. 

Podemos encontrar pela experiência princípios gerais sob os quais subsumimos os fatos, mas não podemos encontrar as causas das causas mais gerais. Numa linguagem que lembra Newton, Hume limita o conhecimento humano aos fenômenos. Mais à frente esse tema se tornará mais claro, com o apoio de uma base naturalista.

Entretanto, se a base inferencial da causalidade é a experiência, e esta se refere somente a fatos do passado, pode-se estendê-la para o futuro? Será que há motivos fortes o bastante para, apoiados em instâncias observacionais limitadas do passado, inferir instâncias inobservadas do futuro potencialmente infinitas? Isso não supõe a tese de que o futuro se conformará ao passado? Mas a experiência não nos pode fornecer apoio para tal tese.

O problema proposto por Hume, largamente conhecido como o problema da indução, mostraria, em tese, os limites do entendimento humano. Mesmo a experiência mais cotidiana é atingida por essa dúvida cética. 

Não há uma solução racionalista nos moldes tradicionais, pois foram expostas as fraquezas da filosofia comum. Contudo, Hume oferecerá uma solução cética para o problema. Será aí que o ceticismo e o naturalismo humeano aparecerão com todas as suas cores.

No início da seção V intitulada Solução Cética destas Dúvidas, Hume faz um breve elogio aos céticos acadêmicos caracterizando-os como inimigos da arrogância, das elevadas pretensões e das especulações que transbordam os estreitos limites da vida e da prática cotidiana. O filósofo nos diz que não se deve temer que tal escola, inofensiva e inocente, possa solapar com suas dúvidas os raciocínios da vida diária. Isto porque a natureza manterá sempre seus direitos, impedindo a inação que seria fruto da descrença extrema.

Essa interessante passagem dá a impressão de ser uma autodefesa humeana e de uma identificação com o papel de cético. Entretanto, ele nos garante que esta vida cotidiana não será afetada pelas dúvidas levantadas pelos céticos e por sua própria conclusão de que nos raciocínios baseados na experiência não nos apoiamos em argumentos racionais. Há um princípio da natureza humana que sempre manterá seus direitos a despeito de toda e qualquer dúvida.

Tal princípio não é outro senão o costume ou o hábito. Toda vez que experimentamos uma repetição contínua e uniforme de algum evento, temos a propensão de esperar sua repetição futura. O hábito ou costume não é raciocínio ou processo do entendimento, mas um princípio da natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos, que produz uma propensão (racionalmente injustificada) de que o futuro se conformará ao passado.

Hume defende que o costume é reconhecido por todos e bem conhecido por seus efeitos. É algo que todo ser humano pode conhecer por experiência e o filósofo renuncia a dar a sua razão última, a causa dessa causa. Não é seu objetivo dizer por que é o hábito o grande guia da vida humana, mas apontar que é assim que as coisas acontecem, descrever um fato da natureza humana. Fato esse que pressupõe ele mesmo a invariabilidade dessa natureza e que, por conseguinte, se apoia numa inferência indutiva.

O filósofo escocês vai mais longe e declara que, uma vez não havendo justificativas racionais para as inferências indutivas, a certeza que acompanha nossos raciocínios sobre a experiência nada mais é que uma crença:

“Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.” 

A crença não é nada além de uma concepção mais vívida e forte. Hume admite a dificuldade de dar uma definição mais exata da crença e assevera que tal tarefa é como tentar definir a sensação de frio ou a paixão colérica. Não obstante, todo o nosso conhecimento das relações de fato são baseadas em tal sentimento vivaz e da experiência.

Ora, e não é esse mecanismo eficaz? Se não fosse o hábito nosso conhecimento do mundo exterior não se estenderia além de nossa experiência imediata. De nada serviria a um ser vivo um conhecimento de tão estreita amplitude. É imprescindível para a sobrevivência a capacidade de prever os acontecimentos futuros baseado em dados do passado.

É imprescindível também que haja concordância entre o que inferimos de experiências passadas e o curso natural das coisas. Certamente podemos fazer inferências indutivas incorretas, mas não todo o tempo. Cada vez que uma de nossas induções é confirmada, notadamente em aspectos cruciais de nossa existência, notamos que a natureza seguiu o curso que previmos e que há uma harmonia entre o que inferimos pelo hábito e o que vemos realizar-se na experiência cotidiana.

Se a inferência dada a nós pelo hábito fosse deixada à cargo dos lentos pensamentos e operações da razão humana, não teríamos sobrevivido. Aquilo que é conditio sine qua non para a conservação dos seres humanos, nos foi dado na forma de instinto e tendências mecânicas. É interessante a seguinte declaração de Hume:

“Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.” 

Há similaridade entre o funcionamento automático dos membros e o hábito que rege nossas inferências baseadas na experiência. Em ambos os casos, os usamos sem sabermos como os usamos. É algo de automático e instintivo. Nesses últimos parágrafos da Seção V da Investigação revelam-se as tendências naturalistas de Hume. 

Após mostrar que o fundamento para a indução e relações de causa e efeito não é racional-dedutivo, chega-se a conclusão que nossas inferências a partir da experiência devem-se a um princípio muito conhecido de todos, o hábito ou costume, que em nada tem a ver com o entendimento. Esse princípio da natureza humana é tão forte que age sem que saibamos como explicá-lo e que assim nos garante a sobrevivência.

Na Seção IX, Hume afirma que sua tese acerca do hábito e da indução terá mais autoridade se for comprovado que tal comportamento também é característico dos animais. Se algo é confirmado pertencer à anatomia de uma certa classe de organismos, forma-se daí uma propensão forte a pensar que esse algo é comum a outros seres vivos. Mais uma vez, provando sua tendência eminentemente empírica, Hume usa argumentos indutivos.

Ora, segundo o filósofo, claramente os animais aprendem por experiência, inferindo o inobservado do observado e também é evidente que tal inferência não é racional. Os animais não agem baseados em uma dedução lógica. E nem os homens em suas ações, nem os filósofos em sua vida ativa. A inferência indutiva, não-racional, parece nivelar todos os seres vivos.

“(...) o próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual depende toda a conduta da vida, nada mais é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico, agindo em nós de um modo desconhecido de nós mesmos; e que em suas principais operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparações de idéias, que são os objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é sem dúvida um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados educativos”

Assim, homens e animais têm o mesmo instinto de derivar o inobservado do observado. É algo de automático e irracional que acontece a despeito da consciência daquele que opera. Tal instinto é a garantia de sobrevivência do ser vivo, pois sem ele não se poderia conservar a vida e agir no mundo. 

Hume parece querer apontar para a pressão pela sobrevivência como a causa de um comportamento como o revelado no hábito. Este é independente da racionalidade dedutiva e exerce maior influência no ser vivo, mesmo naquele dotado de razão. A vida é o grande valor que é preservado por esse instinto. Pode-se é claro, aperfeiçoar este mecanismo, metodizando-o, como Hume mostrará à frente quando discutir os conhecimentos possíveis ao homem.

Contudo, tais conhecimentos deverão estar baseados na força do instinto revelado no raciocínio experimental. E este se circunscreve ao plano da vida cotidiana. Eis mais uma vez o motivo cético de permanecer nos estritos limites da vida comum. O instinto fornece as bases irracionais para a sobrevivência e conservação da vida e os argumentos céticos mostram que devemos permanecer em seus limites.

Entretanto, se é assim, sabemos se o Sol vai nascer amanhã?

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http://oleniski.blogspot.com.br/2015/06/hume-ideias-impressoes-e-ceticismo.html

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