sábado, 27 de junho de 2015

Hume, idéias, impressões e ceticismo



"A Natureza é sempre mais forte que os princípios."

DAVID HUME, Investigação Acerca do Entendimento Humano


Os comentadores da obra do filósofo escocês do século XVIII David Hume geralmente concordam em atribuir à Teoria da Origem das Idéias o ponto central e sustentador do ceticismo do filósofo escocês. É através dela que ele irá questionar as ambições fundacionistas do racionalismo de inspiração cartesiana e sobre ela apoiará suas dúvidas céticas acerca do conhecimento.

Na Investigação Acerca do Entendimento Humano, Hume inicia sua argumentação dizendo:

“Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado , e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação” 

Hume pretende partir aqui de um fato comum a todos os homens, fato conhecido e experimentado por qualquer um, a saber, a diferença entre a sensação de algo e sua simples recordação ou antecipação imaginativa. Isso é algo claro e evidente porque é sensível, empírico. 

A argumentação tem em sua base um enunciado acerca de algo empírico, manifesto a todos os homens. É a partir de um dado sensível que Hume construirá suas críticas céticas e determinará, ao final delas, a impossibilidade de um conhecimento não-empírico.

A diferença ressaltada por Hume pode ser ilustrada por exemplos empíricos diversos. Um homem encolerizado pode claramente sentir a distinção entre o que o estimula nesse momento e a simples recordação ou antecipação imaginativa de tal sentimento. Se nos é dito que alguém está amando é-nos fácil imaginar como é isso (se alguma vez já também amamos), porém impossível sentí-lo como aquele que ama. Entretanto, de que tipo é essa diferença? Hume responderá que é uma diferença não de natureza, mas de vivacidade.

É o grau ou a força da vivacidade que distinguem essas percepções do espírito. As mais fortes e vivazes são chamadas então de impressões e as mais fracas de idéias. As impressões são aquelas em que ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, queremos ou desejamos. As idéias são aquelas de que temos consciência quando refletimos sobre as impressões.

Desde já fica clara a dependência das idéias com relação às impressões. Aquelas são somente um grau menos vivaz destas. Contudo, aparentemente podemos criar pelo pensamento coisas que de fato jamais temos experiência no mundo, tal como um centauro. 

Hume assevera que se analisarmos uma idéia como a do centauro veremos se tratar somente de uma combinação das idéias de homem e de cavalo. Isso valeria para todos os pensamentos que parecem não ter origem em nenhuma impressão. O filósofo escocês postula então o que ficou conhecido como princípio da cópia segundo o qual todas as idéias são cópias mais fracas das impressões.

Para defender sua tese, Hume lança mão de dois argumentos. O primeiro deles defende que todas as idéias, complexas ou não, podem ser reduzidas à impressões sensíveis. Mesmo a mais mirabolante e feérica das idéias, que parece não possuir nenhuma relação com a experiência, quando analisada, se revela uma conjunção de idéias mais simples e estas, por sua vez, reduzem-se à impressões. Se tal afirmação não está correta, algum adversário poderia trazer à luz alguma idéia irredutível à impressão sensível.

Tal argumento é menos um argumento que a indicação da única forma possível de refutação de sua tese. Hume reafirma o princípio da cópia como um enunciado universal e que, logicamente, só pode ser refutado por um enunciado singular. Se até o momento nenhum adversário pôde dar um exemplo refutador e, ao contrário, multiplicam-se indutivamente os exemplos confirmadores, pode-se considerar a tese como estabelecida.

O segundo argumento se refere ao fato de que uma deficiência de um órgão sensitivo priva seu portador de suas impressões e assim também de suas idéias correspondentes. Um cego não poderá ter noção do que é a luz e alguém que nunca provou um vinho não pode imaginar seu gosto. 

Hume faz uso aqui do que Jonh Stuart Mill chamará, no século seguinte, de Método da Diferença. Para sabermos se X é a causa de x eliminamos X numa experiência e vemos se x se mantém. Em caso negativo, afirmamos que realmente X é causa de x, pois ausência do primeiro gera a ausência do segundo.

No caso em questão Hume se beneficia de um dos poucos casos em que a natureza propicia um experimentação não-artificial do tipo do Método da Diferença. Temos a constante empírica em que sensações proporcionam idéias afins e temos as exceções, a “instancia de teste”, onde a deficiência de um órgão sensitivo ou sua não aplicação, impede a ocorrência de impressões das quais então não se seguem idéias correspondentes.

Ora, uma vez estabelecido o princípio da cópia, Hume passa a tirar suas conseqüências lógicas. Podemos esclarecer os significados, a natureza e a realidade de nossos conceitos e termos filosóficos investigando sua origem sensível e removendo assim todas as infindáveis e estéreis discussões que assolam a filosofia. Se um termo não puder ser derivado de uma impressão ele é digno de suspeita e de rejeição. Eis o primeiro golpe no racionalismo de inspiração cartesiana.

O segundo golpe vem da conseqüência clara de que se o princípio da cópia está correto, então não há idéia inata. O racionalismo dedutivo pretendia partir de idéias claras e distintas, inatas à razão humana e, desta base sólida e indubitável, deduzir conhecimentos verdadeiros sobre o mundo. 

Entretanto, Hume diz:

“Mas admitindo-se os termos impressões e idéias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas idéias não o são.” 

Ao contrário do que querem os cartesianos, não partimos de idéias inatas como fundamento e delas deduzimos conhecimentos sobre o mundo. São nossas impressões que têm o caráter primordial, sendo as idéias meras cópias sem vivacidade do que nos advém dos sentidos. Um golpe cético: a razão não é o fundamento das suas próprias idéias.

Não obstante, deve haver algum princípio de conexão entre as idéias, pois estas nos vêm de forma organizada. Hume defende que existem três princípios de conexão: semelhança, contiguidade e causalidade.

“Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original; quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros. E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha.”

Hume, dentre os três princípios que limitam e regem o poder da imaginação, irá se dedicar precipuamente à análise da causalidade nas seções seguintes de sua obra. É em tal análise que aparecerão suas mais famosas páginas céticas.

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Leia também:

http://oleniski.blogspot.com.br/2011/12/hume-e-os-genios-malignos.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2009/10/aristoteles-hume-e-conhecimento.html

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