quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Isaac Newton: física, metafísica e positivismo


"Dizer-nos que todas as espécies de coisas são dotadas de uma qualidade oculta específica pela qual elas agem e produzem efeitos é não dizer nada. Mas derivar dos fenômenos dois ou três princípios gerais do movimento e depois dizer-nos como as propriedades e ações de todas as coisas corpóreas seguem-se daqueles princípios manifestos, seria um grande passo em filosofia, embora as causas de tais princípios não fossem ainda descobertas." (tradução minha)

ISAAC NEWTON, Opticks, p. 377

Na passagem acima citada Isaac Newton resume seus objetivos em filosofia natural. Para ele, cuja mentalidade era precipuamente empiricista, o importante é encontrar no comportamento manifesto observado das grandezas físicas uma série limitada de princípios e, a partir deles, derivar logicamente conseqüências e predições que estejam de acordo com o comportamento de todos os corpos.

Essa metodologia não implica nenhuma afirmação ou postulação daquilo que Newton chamou de "hipóteses", ou seja, afirmações sobre qualidades ocultas ou mecânicas que não sejam rigorosamente derivadas dos fenômenos, do que é manifesto.

Segundo Newton, ainda em Opticks, mesmo os princípios por ele postulados como massa, gravidade e coesão, devem ser considerados não como qualidades ocultas dos corpos, mas como qualidades manifestas à observação cujas causas últimas não podem ser descobertas.

O historiador e filósofo da ciência E. A. Burtt afirma que "para Newton, então, a ciência era composta de leis afirmando somente o comportamento matemático da natureza - leis claramente deduzidas dos fenômenos e verificáveis exatamente nos fenômenos - tudo o que vai além disso deve ser expulso da ciência, a qual se torna um corpo de verdades absolutamente certas sobre os acontecimentos do mundo físico."

"Hypotheses non fingo", afirmava o gênio britânico. Esse seria o espírito "positivista" da ciência newtoniana. Mas como Burtt adverte, aquele que pretende expulsar de sua ciência todos os traços de explicação metafísica, aceita, sem o perceber, um corpo de crenças bem determinado que permeia seus raciocínios e permanece não-criticado.

E esse é o grande perigo. Esse corpo de crenças e pressuposições afirmado inconscientemente passa para a posteridade como parte essencial da doutrina de um cientista e se beneficia dos méritos preditivos apresentados pelas teorias deste. Em outras palavras, o sucesso prático das teorias acaba passando como uma confirmação empírica da metafísica implicada na teoria.

É exatamente o que acontece quando se afirma que, uma vez que a física matemática alcança incomparáveis êxitos preditivos e práticos, então todo o mundo físico deve se reduzir ao movimento mecânico dos corpos.

Que isso é uma falácia é fácil de perceber quando alguém se dá conta de que a forma de uma metodologia considerar o real, o ângulo pelo qual ela o enxerga, por mais frutífero em termos práticos que seja, não implica uma redução do real às entidades que a metodologia comporta.

Além disso, nenhuma conclusão ou predição pode confirmar a veracidade das suas premissas. Ao contrário, são estas que garantem a verdade daquelas. Inverter essa relação é cair inapelavelmente numa inferência ilógica.

Voltando a Newton, apesar de suas declarações, ele mesmo sustentou consciente ou inconscientemente uma série bem vasta de asserções metafísicas. Em primeiro lugar, como ensina Burtt, Newton admitiu no corpo de suas teorias a metafísica corrente no seu tempo.

Ele aceitou as teses de Galileu e Descartes sobre a constituição matemático-geométrica do mundo físico e sua conseqüente rejeição de qualquer aspecto qualitativo. O sucesso preditivo da física newtoniana acabou se tornando, para seus sucessores, a confirmação indireta dessa metafísica.

Em segundo lugar, Newton tomou as exigências de seu método como exigências do real. O mundo físico seria formado somente por corpos de propriedades matemático-geométricas, nas quais ele incluía a massa.

E por último, seus interesses de cristão devoto o levaram a admitir a constante intervenção divina no mecanismo do mundo e o conduziram a especulações acerca da natureza do espaço como o sensorium divino.

É interessante notar também que os conceitos de espaço e tempo absolutos implicam a admissão de um tempo e de um espaço totalmente diferentes e separados dos fenômenos percebidos cotidianamente. Ou seja, o espaço absoluto, o tempo absoluto e o movimento absoluto são completamente inverificáveis a partir dos fenômenos relativos.

Alexandre Koyré ensinava que o positivismo é somente um recuo inicial e provisório que é ultrapassado cedo ou tarde pelos cientistas. Se as coisas são como Koyré sustenta, então mais do que julgar o sucesso prático de uma teoria, deve-se analisar seus pressupostos metafísicos explícitos e implícitos.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Nota de falecimento de Dom Odilão Moura OSB



Escrevo este post para comunicar o falecimento, nesta madrugada, de Dom Odilão Moura OSB, monge beneditino, filósofo, teólogo, escritor e tradutor das obras de São Tomás de Aquino para o português.

Em outra ocasião tive a oportunidade de escrever neste blog uma pequena homenagem a ele. Dom Odilão era profundo conhecedor da tradição aristotélico-tomista e traduziu as principais obras do Doutor Angélico para o português.

Por conta própria, ministrou um curso à noite nas dependências do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro sobre As 24 Teses Fundamentais de São Tomás de Aquino. Fui seu aluno no último ano desse curso em 1998/99.

A experiência desse curso marcou minha vida para sempre, pois foi ali que confirmei minha vocação para os estudos filosóficos. Embora já estudasse Tomás desde os 17 anos, ainda não havia tomado a decisão de dedicar a minha vida à senda filosófica.

Dom Odilão me mostrou no curso e em conversas pessoais que a filosofia era meu caminho. Devo a ele muito do que sou hoje. Devo a ele sobretudo o exemplo da busca serena e perseverante da verdade sob a luz do sagrado.

Há muito que não o via pessoalmente. Gostaria de ter tido a oportunidade de visitá-lo antes de seu nascimento para a eternidade.

Dom Odilão foi sepultado no claustro de seu mosteiro, de acordo com o costume monástico.

Que o Altíssimo o receba em sua luz inextinguível e perene.

E que interceda por mim, para que eu não me perca.

...

Biografia de Dom Odilão:


Homenagem a Dom Odilão:



domingo, 7 de novembro de 2010

Aristóteles, física e matemática


"O ponto a considerar é como o matemático difere do físico. Obviamente os corpos físicos contém superfícies e volumes, linhas e pontos, e estes são o objeto da matemática. (...) O matemático, embora trate também dessas coisas, não as trata como limites de um corpo físico; nem considera os atributos indicados como atributos de tais corpos. Isso é porque ele os separa; pois em pensamento eles são separáveis do movimento e não faz diferença e nem alguma falsidade resulta se eles são separados. (...) Evidência similar é dada pelos mais físicos dos ramos da matemática, tais como a ótica, a harmônica e a astronomia. Estas são, de certa forma, o inverso da geometria. Enquanto a geometria investiga as linhas físicas, mas não como físicas, a ótica investiga as linhas matemáticas, mas como físicas, não como matemáticas."

ARISTÓTELES, Física II, 2

No segundo capítulo da Física, Aristóteles discute e explicita seu conceito de ciência física. "Qual o objeto de estudo próprio do físico?", é a pergunta que pretende responder.

Para tanto, o mestre de Estagira inicia discutindo o âmbito próprio da matemática. Ela não se constitui na essência das coisas físicas, ou seja, os corpos físicos não são entidades matemáticas.

Contudo, a matemática está nos corpos, uma vez que estes possuem linhas, volumes, superfícies, formas. Os aspectos quantitativos são propriedades dos corpos. O que o matemático faz é abstrair (separar no pensamento) e reter somente esses aspectos, distanciando-os do movimento que caracteriza os seres naturais e de toda matéria que os constitui.

As linhas, figuras, volumes dos corpos são tratados pelo matemático como seres independentes, sem necessidade de um sujeito que as sustente. Como assevera Aristóteles, nenhuma falsidade advém desse procedimento, pois ele não é mais do que uma ação da mente sobre os corpos percebidos cotidianamente.

Há ciências tais que, por suas características mais físicas, utilizam a matemática como meio de explicação, mas que ainda permanecem ligadas precipuamente aos corpos. A ótica, a harmônica e a astronomia são exemplos disso. Elas parecem ser como que ciências médias, como diriam alguns escolásticos posteriores.

Embora tratem dos atributos matemáticos dos corpos, elas os tratam ainda como pretencendo a corpos. Não há nelas a abstração total do movimento e da matéria que caracteriza o que poderíamos chamar anacronicamente de "matemática pura". Elas concebem os objetos a partir de seus aspectos quantitativos e neles se concentram em suas explicações, mas não deixam de referir esses aspectos aos corpos.

Ora, se esses aspectos pertencem aos corpos, não é de se admirar que essas ciências possam fornecer resultados legítimos e verdadeiros. Todavia, seu modo de estudo dos objetos também não é puramente físico. Ele está no meio do caminho entre a abstração operada pela matemática e aquela operada pela física.

O físico encontra a Forma (eidos), a essência das coisas, abstraindo-a da matéria particular dos exemplares concretos diretamente percebidos pelos sentidos. A Forma é a causa do movimento dos seres naturais, aquilo que a coisa deve se tornar, sua finalidade e sua proporcionalidade intrínseca. Por outro lado, o físico não deve descurar do conhecimento da matéria de que a coisa é feita.

Torna-se claro que Aristóteles conheceu e determinou o lugar de uma "física matemática" (outro anacronismo a que nos permitimos) dentro da escala das ciências. O Estagirita somente mostrou que a atenção aos aspectos quantitativos dos corpos, embora não gere falsidades, seja na matemática pura ou naquelas "matemáticas mais físicas", não é suficiente para um conhecimento completo do mundo físico.

Os seres naturais possuem aspectos quantitativos e qualitativos. A ausência de um discurso sobre estes últimos ameaça desfazer o próprio conceito de ciência que é, afinal, conhecimento das causas últimas das coisas.