O físico, matemático e filósofo austríaco Friedrich Waismann, professor titular de filosofia da ciência de Oxford até sua morte em 1953, foi um dos mais representativos pensadores do grupo conhecido no pré-guerra como o Círculo de Viena. Os membros desse grupo, liderados por Moritz Schlick e Rudolf Carnap, ficaram conhecidos na história da filosofia contemporânea como positivistas lógicos. Suas propostas estavam ancoradas numa crítica lógica severa e num empirismo restrito que culminava numa condenação da metafísica até então praticada pela filosofia tradicional.
Após a guerra, Waismann tornou-se, em parte graças à indicação de Karl Popper, titular de filosofia da ciência em Oxford. Em sua trajetória filosófica acompanhou de perto as mudanças no pensamento de Ludwig Wittgenstein, o principal inspirador, malgré lui, das teses do Círculo e depois das idéias do Grupo de Oxford e da chamada filosofia analítica.
O texto Verifiability de Waismann toma como tema uma questão central para o antigo Círculo de Viena. Segundo o princípio de verificabilidade, somente sentenças que tivessem o caráter disposicional de serem passíveis de verificação poderiam ser consideradas sentenças com sentido. Sentenças que não pudessem ser verificadas eram consideradas sem sentido. Para o positivismo lógico, o sentido de uma proposição é sua forma de verificação.
Proposições científicas podem, a princípio, ser verificadas e seriam, par excellence, proposições com sentido. Todavia, as proposições da ética, da religião, da estética e, por fim, da metafísica, eram rotuladas como proposições sem sentido e, no máximo, expressões das convicções pessoais inverificáveis daquele que as profere.
O princípio de verificabilidade recebeu fortes críticas de filósofos como Karl Popper, o qual gabava-se de haver destruído o Círculo de Viena. Se o princípio de verificabilidade fosse levado a sério, tornaria as leis naturais, base do conhecimento científico, proposições sem sentido, uma vez que nenhum enunciado universal pode ser jamais verificado. Por outro lado, qual o estatuto do princípio? Se ele não é analítico (cuja “verdade”, a priori, deduz-se da mera observação dos signos empregados), nem é sintético (cuja verdade ou falsidade se constata empiricamente), então o que é ele? Certamente, não é uma proposição com sentido. Alguns críticos afirmam que o princípio foi vítima de seu próprio veneno.
Waismann retoma o tema da verificabilidade para enunciar sua tese acerca da textura aberta da linguagem. O filósofo reinterpreta a regra “o sentido de uma sentença é seu método de verificação” esclarecendo o que se quer dizer com a expressão método de verificação. Quando queremos verificar se uma bola de metal está carregada com eletricidade nós a ligamos a um eletroscópio e vemos se ela registra alteração. Em caso de resposta afirmativa, verificamos a sentença que dizia estar a bola de metal carregada eletricamente.
O que fizemos foi inferir que a sentença observacional acerca da alteração registrada pelo eletroscópio segue-se da sentença que afirmava estar a bola de metal carregada de eletricidade. Ou seja, formulamos uma regra de inferência ou determinamos algo de sua gramática, das regras de seu uso:
"Fazendo isso eu conecto uma sentença à outra, a torno parte de um sistema de operações, a incorporo numa linguagem, em suma, determino a forma em que ela é usada. Neste sentido, verificar uma sentença é uma importante parte de dar seu uso, ou posto de outro modo, explicar sua verificação é dar uma contribuição à sua gramática." (WAISMANN, p. 117)
Entretanto, a tese central de Waismann é justamente a afirmação de que é impossível verificar definitivamente uma sentença. Isto se deve ao que o filósofo chama de textura aberta da linguagem. Se queremos verificar, por exemplo, se há um gato na outra sala, podemos ir até lá e ver com nossos próprios olhos. Mas será suficiente? Não devemos também, porventura, tocar nele, afagá-lo e ver se ele mia? E se depois dessa verificação o gato tiver algum comportamento bizarro, como crescer enormemente ou morrer e ressuscitar diversas vezes? Direi que se trata de um outro ser qualquer ou de um gato, ainda que extraordinário ?
Tais casos mostrariam que, ainda que jamais essas coisas acima elencadas aconteçam empiricamente, de um ponto de vista lógico não é possível chegar a uma verificação completa e definitiva de uma sentença. E isso pelo simples fato de que jamais podemos prever todas as circunstâncias em que um conceito deve ser usado. Podemos determinar o uso de um conceito em suas formas mais comuns ou paradigmáticas, mas jamais podemos fazê-lo em todas as direções possíveis.
A textura aberta é, em poucas palavras, a possibilidade de vagueza. Ou seja, os conceitos são potencialmente vagos, pois não se pode determinar de antemão todas as regras para seu uso. De fato podemos solucionar a vagueza de um determinado conceito estreitando seu sentido, dando regras mais estritas para seu emprego. No entanto, qualquer afinação de conceitos jamais dará conta de todas as possibilidades. Sempre haverá a possibilidade de que um dia surja um contexto em que a aplicação de um conceito torne-se problemática, por mais definido que seu uso seja.
Segundo Waismann, isso impede uma verificação completa de toda e qualquer sentença. No caso de sentenças que descrevem eventos empíricos, a situação tem um outro agravante. Qualquer descrição é sempre incompleta, pois jamais se pode dar conta de todos os aspectos de um objeto empírico. Por mais aspectos a que nos atenhamos em uma descrição (cor, tamanho, textura, composição química, etc...) sempre será possível incluir algo mais. Nenhuma descrição pode ser exaustiva. Há uma inerente incompletude quando se trata de descrições.
Ambos os fatores acima assinalados, a textura aberta e a incompletude de toda discrição, contribuem para o inevitável fracasso de qualquer tentativa de uma verificação definitiva das sentenças. Contudo, embora aliados, estes fatores desempenham papéis diferentes no problema da verificação. No caso da incompletude, o que temos é a impossibilidade de dar conta de todos os aspectos de um objeto qualquer. No outro caso, o da textura aberta, não se pode sequer prever quais situações novas poderiam surgir para a aplicação do conceito.
A segunda característica torna-se o sinal distintivo das sentenças que compõem nosso conhecimento fatual. A diferença entre sistemas formais (lógica e matemática) e nosso conhecimento fatual residiria justamente no fato de que nos sistemas formais há uma textura fechada, ou seja, as regras para os usos dos conceitos em jogo já estão dadas de antemão. Como no jogo de xadrez, a função e o comportamento das peças está determinado desde o início. Não há surpresas. Entretanto, nosso conhecimento fatual não tem esse privilégio. Ele é marcado pela textura aberta. Há sempre a possibilidade de algo não previsto ocorrer.
O filósofo H. L. A. Hart, professor of jurisprudence, foi contemporâneo de Waismann na universidade de Oxford quando este era professor de filosofia da ciência. Sua obra principal, The Concept of Law, tem um capítulo dedicado ao que ele chamou, numa referência a Waismann, a textura aberta das leis. Sua tese é que toda lei jurídica tem um componente de vagueza. Em algum momento, toda lei apresentará casos em que sua aplicação suscitará dívidas e dificuldades. Isto se deve ao fato de que a própria linguagem na qual as leis são formuladas sofre dessa textura aberta.
Podemos regular e transmitir padrões de comportamento através de exemplos e de legislação. No primeiro caso, aquele que deve ser educado nas regras e costumes de um determinado grupo humano, observa o comportamento dos demais ou de alguém que para ele represente uma autoridade no que tange aos parâmetros socialmente aceitos de conduta. Assim fazendo, ele aprende como se portar. Ao ver, por exemplo, o pai (uma autoridade) tirando o chapéu ao entrar na igreja, o menino imita o comportamento paterno e toma-o como algo a ser repetido cada vez que entrar na igreja.
Tal aprendizado não é livre de dúvidas e de algum caráter de vagueza. Perguntas podem surgir na mente do aprendiz, tais como: "Devo imitar meu pai até que ponto? Devo recolocar o chapéu após entrar na Igreja? Devo tirá-lo com a mão esquerda ou com a direita?" Pareceria a muitos que uma comunicação de padrões gerais de conduta através formas gerais explícitas de linguagem resolveria essas questões duvidosas.
Segundo Hart, essa idéia não se sustenta, pois regras gerais e explícitas podem suscitar e, eventualmente suscitam, dúvidas quanto a sua aplicação. Há a textura aberta da lei. Analogamente à textura aberta dos conceitos, onde não se podia de antemão dar todas as regras de uso de conceitos pois não se pode prever todas as possíveis situações de sua aplicação, a textura aberta das leis mostra que não é possível prever todos os casos onde a regra deve ser aplicada. Há regiões nebulosas, imprevistas, que tornam duvidosa a aplicação das leis.
Uma lei explícita que dissesse: "É proibido a entrada de veículos no parque" poderia enfrentar problemas na eventualidade de definir o são "veículos". No parque não entram veículos. Mas e quanto a patins? Skates? Carrinhos elétricos infantis? Que decisão se deve tomar? Pode-se explicitar o sentido de "veículos" a fim de incluir todos ou excluir alguns ou excluir todos os casos acima apresentados?
Segundo Hart:
"Diante da questão se a regra proibindo veículos no parque é aplicável a alguma combinação de circunstâncias a qual pareça indeterminada, tudo o que a pessoa chamada a responder pode fazer é considerar (como faz quem considera um precedente) se o presente caso se assemelha o 'suficiente' ao caso-padrão em aspectos 'relevantes'. A liberdade de ação dada pela linguagem à ela pode ser muito grande; tal que, se ela aplica a regra, a conclusão será, embora possa não ser irracional ou arbitrária, com efeito, uma escolha. (HART, p. 124)
Qualquer que seja a escolha feita ela será uma decisão não estrita e logicamente inferida da regra geral. Ao contrário, a idéia de uma jurisprudência mecânica onde a aplicação da lei é uma clara e necessária inferência lógica da regra universal deve ser abandonada. Há sempre a possibilidade, não importa o quanto refinemos os termos lingüísticos, de que surjam casos onde as regras para aplicação dos termos não tenham sido previstas. No caso das regras jurídicas, as decisões e as escolhas, terão seus critérios que dependem de muitos e complexos fatores do sistema legal e sobre os propósitos e objetivos atribuídos à regra.
2 comentários:
Isso me lembra a idéia de equidade em Aristóteles. Como ela é necessária para fazer justiça naqueles casos em que a lei (uma regra geral) não parece ser suficiente para julgar apropriadamente situações particulares.
Abraços!
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