quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Koyré, racionalidade e história da ciência



O grande Alexandre Koyré dizia que a história do historiador é o resultado de uma escolha. E até de uma dupla escolha. Em primeiro lugar, a escolha dos contemporâneos que preservaram em anais, manuscritos e livros determinados acontecimentos que lhes pareceram de importância.

Em segundo lugar, o historiador escolhe o material que herdou segundo suas avaliações acerca da importância dos fatos relatados pelos antigos. Ele projeta no passado seus interesses e sua escala de valores empreendendo uma reconstrução a partir de suas próprias idéias.

Isso é inevitável, como bem assevera Koyré. Na história das idéias e, em particular, naquela da ciência, a reconstrução do passado se concentra também na avaliação racional das escolhas dos agentes históricos num determinado tempo e espaço.

Para determinar se o cientista ou pensador X foi racional em aceitar ou rejeitar determinada teoria T devemos ter, antes de tudo, uma boa e consistente teoria da racionalidade. O que fazer, por exemplo, se aparentemente o que foi racional para um aristotélico não se coaduna absolutamente, em seus fundamentos, com o que Galileu propunha?

Não se trata aqui de teorias divergentes sobre determinado fenômeno natural. Trata-se de ontologias, metodologias e teorias de racionalidade que não se podem conciliar. E nossas normas racionais, podem elas tratar determinar para o passado o que é racional?

O problema é: o histórico deve se dobrar ao normativo ou o normativo ao histórico?

Thomas Kuhn, diante da discordância entre nossas normas racionais e a história da ciência, relativizou aquelas para adaptar-se à esta. "Se sob o prisma de nossa racionalidade parte significante da história da ciência se mostraria irracional, então talvez nossa teoria da racionalidade é que seja por demais restritiva", pensou ele.

Feyerabend levou ao extremo esse conflito e defendeu que nenhuma teoria da racionalidade e nenhuma metodologia poderia descrever a história da ciência e que qualquer forma de imposição normativa à atividade científica seria deletéria para qualquer idéia de progresso que se tenha.

Larry Laudan assume esse desafio defendendo, espantosamente, a comparação de nossas teorias da racionalidade com casos históricos intuitivamente considerados como racionais. Ou seja, há casos na história em que a maioria das pessoas cientificamente educadas considera intuitivamente como racionais e são tais casos que devem ser usados como "touchstones" para avaliar qualquer teoria da racionalidade.

Não sei bem como solucionar esse problema, mas com certeza ele é um dos mais importantes da epistemologia contemporânea e tem sido, para mim, ocasião de estimulantes e frutíferas pesquisas.

2 comentários:

Héber Sales disse...

Acabei de ler um livro muito interessante. A Lógica do Cisne Negro. Nele, Nassin Nicholas Taleb discute a incompletude fundamental na nossa percepção de eventos passados. A mente humana seria incapaz de ver o roteiro que produz a história devido ao terceto da opacidade (p. 37): (1) a plausibilidade retrospectiva; (2) a distorção retrospectiva; (3) a supervalorização da informação factual pela mente platonizada. Em tempo: o autor se define como um empirista cético.

Immanuel Rosenkreuz disse...

Olá Héber!

Dei uma olhada em alguns sites sobre Nassim Taleb e, pelo pouco que li, achei a abordagem dele bem interessante e gostaria de ler mais.

Pelo que compreendi, a idéia central dele tem a ver com a emergência de casos anômalos frente à generalizações indutivas. Inclusive o exemplo do cisne negro é ele mesmo um clássico exemplo popperiano.

Certamente, não poderia comentar muito sobre a perspectiva dele por enquanto, mas algumas questões passaram pela minha cabeça:

1) A possibilidade de reconhecer um cisne negro. Sem prejuízo lógico, numa perspectiva nominalista, se poderia dizer que brancura é uma característica essencial de cisnes e que, assim, qualquer X que tivesse todas as outras características de um cisne mas não fosse branco, não seria então um cisne e sim outra coisa.

Mais ou menos o que os astrônomos fizeram com Plutão recentemente.

2) Mesmo se reconhecendo um cisne negro (uma anomalia que contrarie nossas generalizações e teorias), não há forma de determinar se a teoria deve ser abandonada.

De acordo com considerações de simplicidade, relevância, prática et coetera, pode-se manter a teoria e "empurrar" para o futuro do programa de pesquisa a responsabilidade de resolver essas anomalias.

E geralmente é o que se faz, pois as teorias não nascem prontas. Elas se desenvolvem, no tempo, justamente na resolução desses problemas imprevistos e não há forma a priori de saber se um programa de pesquisa solucionará ou não um determinado conjunto de problemas ou anomalias.

O que trás à baila o problema da impossibilidade de afirmar categoricamente a refutação de qualquer teoria. O máximo que se afirmar é que uma teoria ou programa de pesquisas estagnou na resolução de seus problemas. O que, de novo, nada diz sobre possíveis futuros improvements que devolvam a vitalidade à teoria.

Vou ver se consigo um exemplar do livro na biblioteca da PUC pra dar uma lida.

Obrigado pelo comentário e pela dica!