quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Dionísio Areopagita, simbolismo e a hierarquia celeste (capítulos V ao VIII)

 

"Creio haver indicado a contento que toda hierarquia tem como objetivo invariável uma certa imitação e semelhança com a Divindade, e que toda função que ela impõe tende ao duplo fim de receber e transmitir uma pureza imaculada, uma luz divina e um conhecimento perfeito dos santos mistérios."

DIONÍSIO AREOPAGITA, "Sobre a Hierarquia Celeste", cap. VII

Os teólogos chamam todas as ordens celestiais igualmente de Anjos, embora reconheçam que, na hierarquia celeste, o anjo esteja abaixo de todas as outras ordens. O que explica essa aparente contradição é o fato de que o superior possui tudo o que inferior possui, mas este não possui tudo o que aquele possui. Na cadeia hierárquica, o ente anterior fornece ao ente posterior os seus poderes sempre de uma forma mais limitada e adaptada.

A anterioridade (e a posterioridade) pode ser temporal ou lógica (ou metafísica). Uma coisa é anterior temporalmente a outra quando há sucessão, isto é, quando há diferença entre dois momentos quaisquer. Por exemplo, João chegou antes de Pedro em casa. Aquilo que é anterior lógica ou metafisicamente fornece ao seu posterior as condições de sua existência sem nenhuma sucessão. As premissas de uma demonstração são o fundamento simultâneo da conclusão. 

A função (e natureza) de cada ordem angélica determina seu lugar na hierarquia celeste. Quanto mais elevada é a ordem, mais próxima de Deus ela é, e, por conseguinte, menos limitada. Inversamente, quanto mais baixa ela é, mais afastada de Deus, e mais submetida a limitações. As ordens anteriores dão fundamento às posteriores, comunicando seu poder na medida em que estas são capazes de recebê-lo. O superior pode fundamentar o inferior, mas o inferior não pode fundamentar o superior, pois ninguém concede a outro aquilo que excede as suas capacidades.

Portanto, as ordens celestes superiores (Arcanjos, Potestades, etc...) são denominadas Anjos porque o poder daquele que está acima na hierarquia engloba e abarca o poder daquele que está abaixo. Quem pode mais, pode menos. O Arcanjo pode ser chamado Anjo porque o poder que o Anjo possui provém do Arcanjo. O inverso, contudo, não é verdade. Não faria sentido chamar o Anjo de Arcanjo, dado que o inferior não não engloba o superior.

Analogamente, na hierarquia eclesiástica (que imita a hierarquia angélica), o bispo é condição da existência do padre, tem todos os poderes deste último, mas o padre, por seu turno, não tem todos os poderes do bispo. Não há falta em dizer que o bispo é um padre, embora seja errôneo chamar um padre de bispo. As funções do epíscopo excedem e englobam aquelas do presbítero. Este recebe do bispo os poderes adequados à função mais limitada que exerce.

Foram as próprias inteligências celestes que revelaram a sua hierarquia, pois os homens não poderiam alcançar o conhecimento desses mistérios por meios naturais. As Sagradas Escrituras referem-se às naturezas angélicas por nove epônimos (ἐπωνυμίαις) que são alocados em três ordens (διακοσμήσεις). A primeira e mais alta é composta por Tronos, Querubins e Serafins. A segunda, e intermediária, compõe-se de Virtudes, Dominações e Potestades. A terceira e última reúne Principados, Arcanjos e Anjos.

São três ordens, cada uma composta por uma tríade de seres angélicos. O simbolismo refere-se, sobretudo, à Santíssima Trindade, que é representada na quantidade tanto das ordens quanto no número dos entes que as compõem. Por outro lado, os epônimos dados às inteligências angélicas assinalam as propriedades que as caracterizam. 

Assim, na primeira e mais sublime das ordens, o nome Serafim (σεραφὶμ) significa "luz" e "calor", indicando com isso, ensina Dionísio, a "sua atração perpétua pelas coisas divinas, o ardor, a intensidade, a santa impetuosidade de seu impulso generoso e invencível, e essa força poderosa pela qual eles elevam, transfiguram e reformam à sua imagem as naturezas subordinadas, vivificando-as, acendendo-as com o fogo pelo qual eles próprios são devorados, e esse calor purificador que consome toda impureza, e, finalmente. essa propriedade ativa, permanente e inesgotável de receber e comunicar luz, de dissipar e abolir toda obscuridade, toda escuridão."

Querubim (χερουβὶμ) significa "plenitude de saber" e "transbordamento de sabedoria". Sua função é conhecer, admirar e contemplar a luz divina no seu esplendor original, e fruir a beleza incriada nos seus mais esplêndidos fulgores. Participando da sabedoria de Deus, o Querubim se molda à Sua semelhança, e transmite às essências inferiores o fluxo dos dons maravilhosos que recebeu. 

Trono (θρόνων) é o epônimo dado à augusta e nobre inteligência celeste cujo ser é completamente apartado das paixões terrenas e das coisas vis e baixas. Sua constituição puríssima e impassível está toda unida ao Altíssimo, com profunda reverência pelas santas comunicações de que é objeto. 

Os seres dessa primeira tríade são os mais elevados de toda a hierarquia angélica. Livres das limitações da imaginaçãotampouco carecem de símbolos ou de alegorias para elevarem-se à contemplação (θεωρία) da natureza divina supraessencial, da qual recebem direta e perpetuamente todo o seu conhecimento. Iniciados pelo próprio Senhor, desempenham a função de mistagogo (μυσταγωγός), transmitindo aos seus subordinados a visão (ἐποπτεία) do mistério (μυστήριον).

A segunda tríade é formada pelas Dominações (κυριότητες), Virtudes (δυνάμεις) e Potestades (ἐξουσίαι). O nome Dominações indica a elevação espiritual isenta de qualquer compromisso com as coisas terrenas, a indômita submissão exclusiva ao único e verdadeiro Senhorio. O título Virtudes veicula a vigorosa disposição desses seres angélicos de jamais abandonar ou diminuir sua contemplação dos mistérios divinos. As Potestades manifestam a ordem perfeita e a autoridade que exerce suas funções sem desejos egoístas ou tirânicos.

Simbolicamente, os epônimos representam três aspectos da realeza divina. O primeiro é o domínio ou o senhorio. Deus é o Senhor (κύριος), tem o domínio (dominatio) sobre todas as coisas visíveis e invisíveis. Porém, seu reinado é justo, puro e absolutamente legítimo. As Dominações imitam a Deus, na proporção que lhes é possível, na pureza, na impassibilidade e no autodomínio com os quais regram perfeitamente as suas vidas celestiais.

O segundo é o poder (ou virtude, virtus), aqui considerado enquanto a capacidade causal intrínseca de um ente qualquer. No caso de Deus, é o símbolo da onipotência, o infinito repositório de potência ativa para tornar real tudo aquilo que é possível. As inteligências celestes denominadas Virtudes imitam esse aspecto pelo vigor incessante e sem decréscimo no exercício (ἐνέργεια) pleno das suas funções e da sua contemplação das realidades divinas.

O terceiro aspecto é a autoridade (auctoritas) que Deus possui em grau eminentíssimo, e que a exerce tendo em vista sempre o bem de todas as criaturas, isento de toda tirania. As Potestades (potestates) recebem da divina natureza o seu poder (potestas) no governo da boa ordem do mundo, imitando sem despotismo algum a autoridade benigna do Altíssimo.

A participação (μέθεξις) da segunda ordem nas realidades divinas é inferior à participação da primeira ordem que, estando mais próxima de Deus, é iluminada diretamente. Cada intermediário impõe uma adaptação das verdades eternas às capacidades de um tipo de natureza angélica, e assim por diante na escala descensional da hierarquia, até alcançar os homens. Os mistérios são transmitidos ao longo da cadeia iniciática por sucessivas adaptações às condições intrínsecas dos seres.
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