"A segunda ordem obedece à primeira, a segunda comanda a terceira, e a terceira rege a hierarquia da humanidade. E assim, por divina harmonia e justa proporção, elas ascendem uma por meio da outra até o princípio soberano e o fim de toda bela ordem."
DIONÍSIO AREOPAGITA, "Sobre a Hierarquia Celeste", capítulo X
A terceira e última ordem da hierarquia celeste é formada pela tríade dos Principados (ἀρχαί), dos Arcanjos (ἀρχαγγελοι) e dos Anjos (ἄγγελοι). Os Principados ou Arcontes possuem o santo comando, guiam seus subordinados às realidades divinas, e imitam na sua medida a autoridade que provém do Princípio (ἀρχή) último de todas as coisas. Os Arcanjos, na condição de intermediários, voltam-se para a luz superior e, simultaneamente, inclinam-se para transmiti-la aos que estão abaixo deles. Desse modo, realizam e garantem a harmonia de sua ordem. Os Anjos, localizados nas franjas da hierarquia celeste, estão próximos aos homens, e, por essa razão, são mais propriamente chamados de mensageiros.
Os mistérios divinos são transmitidos numa cadeia iniciática ininterrupta da primeira ordem angélica à segunda, e desta à terceira, de modo sempre adaptado às condições intrínsecas das naturezas celestiais. A terceira tríade exerce uma função reveladora (ἐκφαντορικός) ou profética com relação aos homens, transmitindo a estes as santas emanações recebidas das ordens superiores. Pertence a ela a regência das hierarquias humanas para que tais ordenações realizem a conversão, a comunhão e a união com Deus. Exemplo disso é a designação do Arcanjo Miguel como governante do povo judeu (ἄρχοντα τοῦ Ἰουδαίων λαοῦ).
Se as outras nações se perderam na idolatria e não conheceram a verdade, isso não se deve à negligência dos espíritos angélicos na revelação das luzes divinas, mas sim à perversidade e ao orgulho humanos. A Providência (πρόνοια) é una, simples e perfeita na sua irradiação benfazeja, enquanto a desigualdade dos seres é múltipla, uns resistindo por vontade às influências do alto e outros recebendo-as em proporções diversas de acordo com as suas capacidades.
No interior de cada uma das três ordens angélicas há três graus de perfeição. O número três simboliza perfeição, realização, completude. O um ou a mônada (μονάς) é o Princípio do qual nasce o dois ou a díada (δυάς), que representa a diferença, a oposição, a separação. Contudo, a comunidade (κοινωνία) entre dois elementos quaisquer exige que entre eles haja o medium, a proporção, a medida. Na tríade (τριάς) a dualidade é superada por um princípio unificador que coloca os opostos numa relação harmônica.
A hierarquia celeste de Dionísio é composta de três tríades. Logo, a perfeição da estrutura tripla do todo é refletida em cada uma das suas partes. A soma das ordens resulta numa enéada (ἐννεάς), o número três vezes triplo, indicando o grau máximo de perfeição a que as criaturas podem alcançar. Na "Teologia Aritmética", atribuída a Jâmblico, filósofo neoplatônico, o nove é símbolo de concórdia, limitação e assimilação, e encerra a progressão natural dos números após o qual começa a repetição.*
Tendo encerrado o discurso sobre a hierarquia, Dionísio passa à explicação de problemas particulares na interpretação de certas declarações sobre os seres angélicos. Era justo que se aplicasse a todos os seus membros a designação de anjos, mas designá-los todos como virtudes celestes não seria confundir as ordens superiores com as inferiores? Não, porque, nesse caso, a referência não é à ordem a que um anjo pertence, e sim à virtude que, junto com a essência e o ato, constitui cada anjo. Todos os entes celestes têm alguma potência, e nesse sentido, todos podem ser nomeados potências.
As Sagradas Escrituras chamam de "anjos do Senhor" os sacerdotes da hierarquia humana. A razão disso não é equiparar o inferior ao superior, mas indicar que os homens também participam da sabedoria divina na medida de suas capacidades. Por vezes os anjos, e alguns homens, recebem o nome de deuses. Sem dúvida, a nenhum ente limitado pode ser atribuída propriamente a divindade, o que não exclui um uso análogo do termo para designar o ser racional, angélico ou não, que se inclina continuamente à união com Deus, imitando-o tanto quanto lhe é possível.**
Outra passagem a ser explicada é o relato bíblico da purificação do profeta Isaías por um serafim. Um anjo desceu das alturas da contemplação divina mais íntima e imediata a fim de purificar um homem? Alguns solucionam essa dificuldade afirmando que se tratava de um anjo, a mais inferior ordem da hierarquia, que recebeu o nome de serafim por conta da função que iria desempenhar junto ao profeta.
A solução alternativa passa pela consideração de que a influência divina, embora em si mesma incompreensível, transmite-se de forma adaptada das ordens superiores às inferiores até chegar aos homens. Semelhante à luz física que se propaga sobre todos os objetos na medida de suas receptividades, alguns sendo diáfanos e outros opacos, ou do calor que alcança todos os objetos comunicando-se aos que não são inflamáveis por meio dos que são inflamáveis, a luz divina está presente em todos os seres na exata medida de suas naturezas.
Ora, não é desarrazoado que o texto bíblico atribua a um serafim a purificação de Isaías, pois, na hierarquia celeste, são tais anjos os mais próximos da divindade, e, portanto, é primariamente a Deus, e, em seguida, aos serafins, que se deve a comunicação dessa graça. Sob esse prisma, que remete ao princípio metafísico de que aquilo que é superior é a causa dos poderes daquilo que lhe é inferior, o anjo que purifica o profeta pode ser designado com justiça um serafim, dado que é deste que provém a primeira adaptação da influência divina que é comunicada aos níveis subsequentes da hierarquia.
Seria possível entender essa explicação em termos de causa imediata e causa remota. A causa imediata da purificação do profeta é um anjo, mas a sua causa remota é o poder que reside no serafim, e que é transmitido ao anjo por meio de uma cadeia descendente de causas intermediárias. Poder-se-ia também pensar em termos de causa primeira e causa segunda. Deus é a causa primeira, os serafins são causa segunda, assim como o resto da cadeia hierárquica até o homem. Mas, se tomarmos os serafins como causa primeira, os anjos serão causa segunda, dependente da primeira para realizar seus efeitos. De todo modo, Dionísio parece seguir aqui a proposição 56 dos "Elementos de Teologia" de Proclo, que enuncia que "Tudo o que é produzido por seres secundários é em maior medida produzido a partir daqueles princípios mais primários e mais determinativos dos quais os próprios secundários são derivados".
O anjo que purifica Isaías remete seu poder à sua fonte primeira e absoluta, Deus, e, secundariamente, aos serafins, aqueles que estão na mais alta posição da cadeia da qual os anjos são as franjas. Em última instância, considerando-se o fundamento do poder causal que as criaturas exibem, toda causalidade reside somente em Deus. Porém, esse poder difunde-se por participação, sempre adaptado à natureza dos seres, de acordo com uma hierarquia que tem no seu topo os serafins. Mais uma vez, numa analogia com a hierarquia eclesiástica, o padre poderia ser chamado de bispo se quiséssemos remeter ao episcopado a fonte e o fundamento do poder exercido pelo presbítero.
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*Os números não se repetem do 1 ao 9. Dali em diante, há a repetição: 10, 11, 12, e assim por diante. Recorde-se a respeito do nove que Porfírio, discípulo de Plotino, editou os escritos de seu mestre organizando-os em seis séries de nove tratados cada, as famosas "Enéadas".
** Note-se que os neoplatônicos se referiam a Platão, Plotino, Proclo ou Jâmblico como divinos.
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Leia também:
Dionísio Areopagita, simbolismo e a hierarquia celeste (capítulos I ao IV):
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Comentário integral de "Os Nomes Divinos": Νεκρομαντεῖον: Os Nomes Divinos

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