quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Dionísio Areopagita, simbolismo e a hierarquia celeste (parte final)

 
"Demos finalmente algum descanso ao nosso entendimento após a contenda que nossas considerações abstratas sobre os santos anjos exigiram e voltemos nosso olhar para o rico e variado espetáculo das inúmeras formas sob as quais as naturezas angélicas aparecem, a fim de, então, ascendermos da crueza do símbolo à realidade inteligível e pura."

DIONÍSIO AREOPAGITA, "Sobre a Hierarquia Celeste", XV

Nos dois últimos capítulos de sua obra sobre a hierarquia celeste, Dionísio se dedica a esclarecer o sentido das imagens figurativas empregadas pelas Sagradas Escrituras para descrever as inteligências angélicas. Certas imagens podem ser atribuídas universalmente a todas as ordens celestes, como é o caso da a capacidade de se elevar ao alto pelo movimento de conversão (ἐπιστροφή), enquanto outras servirão somente a algumas dessas realidades, de acordo com suas respectivas naturezas.

O fogo é um símbolo frequente dos anjos, e o motivo para essa predileção encontra-se no fato de que o fogo material difunde-se por toda parte, misturando-se, sem confusão, com todos os elementos. Radiante por natureza, sua presença manifesta-se apenas quando encontra matéria para a sua ação, subjuga e assimila o que captura. Comunica-se aos objetos e os modifica na razão proporcional à sua proximidade, renova-os pelo calor vivificante, e seu brilho é inextinguível. Indomável, inalterável, seu movimento é ascensional, sua atividade constante envolve o que devora sem ser envolvido por qualquer coisa, e, quando despertado, irradia e irrompe comunicando-se liberalmente sem jamais se empobrecer.

O fogo é um símbolo ascencional, representa a subida às dimensões celestiais e divinas, pois eleva-se por natureza na direção do alto. Inversamente, a terra é um símbolo descencional, daquilo que é grave (gravitas), que desce na direção do solo e ali encontra seu repouso e seu lugar natural. Sob uma ótica negativa, o fogo é o grande destruidor das coisas materiais. Porém, positivamente encarado, é o elemento que, se bem controlado e dosado, aquece, conserva a vida dos viventes e desfaz as formas das coisas permitindo que novas formas possam ser assumidas.

O poder destruidor positivo e ascensional fundamenta os atos de purificação. Os metais são purificados e tornam-se nobres pelo fogo, assim como o cadáver incinerado abandona sua forma terrestre e, transmutado pelo elemento ígneo, ascende aos céus. No Hino Homérico a Deméter, o fogo tem o condão de eliminar a condição humana do filho da rainha Metaneira e conceder-lhe a imortalidade. O fogo é roubado dos deuses por Prometeu e trazido aos homens do alto do Monte Olimpo, o mundo divino.*

As imagens antropomórficas com as quais os anjos são descritos se devem à razão humana, à sua capacidade de olhar para o alto, ao seu corpo reto, e ao seu poder de comando sobre as criaturas abaixo dele. A visão representa a inteligência angélica que contempla os mistérios eternos e a tranquila intuição que recebe as luzes divinas. O olfato significa o discernimento que os faz fruir das coisas que ultrapassam o entendimento e fugir daquilo que é baixo. 

A audição refere-se à participação benfazeja da inspiração divina. O paladar representa a saciedade com as torrentes de inefáveis delícias de alimento espiritual que os seres angélicos recebem de Deus. O tato é a habilidade de distinguir entre o que é conveniente e o que é prejudicial à sua natureza. As pálpebras e as sobrancelhas simbolizam sua fidelidade em preservar as noções sagradas que adquiriram.

A adolescência e a juventude representam a inextinguível energia da vida angélica. Os dentes simbolizam o poder das inteligências celestes de decompor as noções simples que receberam dos seus superiores a fim de adaptá-las às capacidades de seus subordinados na cadeia iniciática. Os ombros, braços e mãos são a força que possuem para realizar suas missões. O coração é a vida divina que flui sobre aquilo que está sob sua proteção. O peito, a energia viril que protege o coração e mantém intacta a sua virtude, e os lombos são a fertilidade dos espíritos celestiais.

O movimento vivaz, impetuoso e eterno que conduz os anjos às coisas divinas é representado pelos pés, em especial pelos pés alados. As asas indicam a ascensão para alturas sempre maiores e a libertação de todos os desejos vis. A leveza das asas mostra que não possuem nada de terreno e que estão isentos de corrupção. A nudez, em particular a nudez dos pés, representa a atividade livre de restrições externas e o esforço de imitar a simplicidade divina.

As vestes radiantes e flamejantes, ligadas ao simbolismo do fogo, representam a conformidade dos espíritos celestiais com Deus e seu poder de receber e transmitir a luz puramente inteligível. A túnica sacerdotal indica a consagração ao Altíssimo, bem como a responsabilidade de iniciar seus subalternos na contemplação dos mistérios. O cinto significa o zelo na preservação da fecundidade espiritual, a autocontenção e a manutenção dos seus diversos poderes numa unidade imutável.

Os cajados são símbolo de autoridade real e de retidão na execução de seu ofício. Lanças e machados expressam a capacidade espiritual de discernir opostos. A lança é uma arma de longo alcance, sua ponta é uma lâmina que penetra na carne criando uma seção. O machado corta e separa a árvore e a madeira separando-as em duas metades. O machado constituído por um eixo vertical com duas lâminas opostas é uma imagem da união e da distinção das coisas na realidade. 

Os instrumentos da geometria, e das diversas artes**, mostram que os anjos sabem estabelecer, construir e concluir suas obras, e que, enquanto causas segundas, guiam os seres inferiores ao seu fim. O Altíssimo fez tudo "em peso, medida e número", e, considerado no seu papel demiúrgico, Ele é o "grande Deus que sempre geometriza" (Ἀεὶ ὁ θεὸς ὁ μέγας γεωμετρεῖ). As inteligências angélicas participam da obra cosmogônica simbolizada pelos instrumentos geométricos utilizados para medir, construir e impor ordem às coisas.

O vento assinala a ação instantânea dos anjos sobre as coisas. Ademais, o ar, o mais etéreo dos elementos, simboliza as sutis operações divinas, pois, invisível, solicita e vivifica a natureza, vem e vai, rápido e indomável, sem que saibamos sua origem ou seu destino. Tal qual as nuvens, os poderes celestiais são banhados pela luz sagrada e inefável, e permitem que esses raios abundantes, adaptados e moderados, cheguem a seus subordinados na medida de suas naturezas, transmitindo vida, crescimento e perfeição, como um orvalho espiritual que fertiliza o ventre que o recebe.

Os metais e as pedras são igualmente representações tangíveis de misteriosas qualidades angélicas. O âmbar (ἤλεκτρον), metal composto por ouro e prata, simboliza, em virtude do primeiro, o esplendor que conserva intacta sua pureza, e, em virtude do segundo, uma luz suave e celestial. O bronze compara-se ao fogo e ao ouro. No caso das pedras, as brancas evocam a luz; as vermelhas, o fogo; as amarelas, o ouro; e as verdes, o vigor juvenil.

Quanto às imagens de animais, o leão sinaliza a autoridade e a força invicta que protegem o segredo divino confiado às santas hostes, ocultando-o da curiosidade dos profanos. Imitam assim o leão que, diz-se, apaga a marca de suas patas ao fugir do caçador. O boi, empregado para abrir sulcos na terra para a plantação, expressa a força e os "sulcos espirituais" que as inteligências angélicas "abrem" nelas mesmas a fim de receber as fertilizantes chuvas celestiais. Os chifres evocam a energia empregada na preservação de seu próprio bem-estar.

A águia representa a majestade, a agilidade, a impetuosidade e a atenção da ave de rapina que persegue e captura facilmente a presa que será seu alimento, e, sobretudo, o olhar ousado que, incessante, contempla a luz do Sol divino. O cavalo expressa a docilidade e a obediência. Quando branco, significa o brilho dos anjos próximos ao esplendor incriado do Altíssimo. baio é a obscuridade dos mistérios divinos, o castanho exprime o ardor devorador do fogo. O mesclado de branco e preto simboliza a relação e a reconciliação dos extremos.

Passando em seguida aos rios, carros e rodas, Dionísio considera que o rio de fogo representa as águas provenientes do seio inexaurível do divino que transbordam sobre os intelectos celestiais e os fertilizam. O carro, cuja estrutura liga as rodas por meio de um eixo único, simboliza a isonomia e a harmonia sob as quais os anjos são unidos numa mesma ordem. As rodas, aladas, assinalam a energia angélica que, sem desvios ou pausas, percorre a estrada dos reinos celestiais. Alternativamente, as rodas, cujo nome em hebraico (galgalim) significa "revolução" e "revelação", a um só tempo revolucionam em torno do Bem e revelam os mistérios divinos.

Por fim, a alegria dos anjos não deve ser entendida como um acesso passional do tipo que acomete os homens. Trata-se, em vez disso, de um deleite pacífico e suave de inefável felicidade. Dionísio encerra seu tratado asseverando que, embora incompleta, a obra servirá de auxílio àqueles que desejam elevar suas mentes acima da crueza das imagens materiais. E admite que não tratou de todas as virtudes, faculdades e símbolos apresentados nas Sagradas Escrituras. Para tanto, seria necessário um saber que não é deste mundo e um iniciador nesses mistérios.

A fim de manter a medida adequada no discurso e honrar as insondáveis profundezas sagradas, é mister fazer silêncio.
...
* No seu aspecto destruidor negativo, o fogo representa, por exemplo, o doloroso castigo eterno dos danados no Inferno.
**Arte no sentido prático de técnica (τέχνη), o curso racional na produção (ποίησις) de algo artificial.
...
Leia também: comentário completo à "Hierarquia Celeste"Νεκρομαντεῖον: Hierarquia Angélica
Comentário integral de "Os Nomes Divinos"Νεκρομαντεῖον: Os Nomes Divinos

Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Deus como princípio impessoal e a existência como emanações desse principio, nessa visão Cristo seria como um" avatara" desse principio que veio aos planos inferiores para ajudar os seres ali perdidos a retornarem ao um- Muito bom essa série de textos