"Em todas as coisas que são conhecidas por suas formas, estas mesmas são imagens da beleza do próprio Deus, e, ao negar as formas, chegamos àquela realidade escondida que elas expressam veladamente."
ALBERTO MAGNO, Comentário à "Teologia Mística", capítulo II
Os hinos dedicados a Deus devem expressar o desconhecimento que constitui o verdadeiro conhecimento do divino supraessencial. Para ilustrar esse ponto, Dionísio usa a metáfora neoplatônica da imagem esculpida que é formada à medida que os golpes do escultor retiram do material tudo aquilo que não pertence a ela. Ao contrário da ideia tradicional da produção da estátua pela imposição de uma forma particular à matéria, o método retratado aqui é o da supressão daquilo que não faz parte da figura. O divino não é alcançado usando conceitos bem definidos, semelhante ao artista que impõe um Apolo ao mármore sobre o qual trabalha.
Em vez disso, a teologia negativa suprime as qualidades e as perfeições das coisas a fim de trazer à lume a “imagem” de Deus tal qual o escultor que retira pedaços do mármore para “libertar” o Apolo que estava oculto sob a matéria bruta. A analogia tem seu limite no fato de que jamais há uma forma determinada que resulte desse processo negativo, dado que Deus transcende a tudo. Enquanto a teologia catafática desce do Princípio às coisas afirmando os atributos, a teologia apofática sobe a cadeia das coisas negando os atributos até chegar ao desconhecimento, o único saber adequado à transcendência do Princípio.
Alberto Magno comenta:
“No caso de Deus, todas as nossas formas naturais de conhecimento (que são as bases do entendimento sistemático) colapsam. Ele não é conhecido per se (como são os primeiros princípios), nem conhecemos ‘por que?’ existe (pois é incausado) ou ‘o quê?’ Ele é (porque seus efeitos não são proporcionais a Ele). Em vez disso, nossa mente recebe certa luz divina, que está acima de sua própria natureza, e que a eleva acima de sua forma natural de ver as coisas. É assim que nossa mente é conduzida à visão de Deus, embora somente com um conhecimento embaçado e indefinido ‘que’ Ele existe. Essa é a razão pela qual diz-se que Deus é visto por meio da não visão, isto é, pela ausência da visão natural”.
No âmbito da teologia afirmativa, Dionísio assevera que em seu tratado “Esboços Teológicos” (obra perdida), tratou dos temas referentes à Trindade Consubstancial e tudo o mais que se encontra nas Sagradas Escrituras. No livro “Sobre os Nomes Divinos”, explicou o significado dos nomes dados a Deus, e na “Teologia Simbólica” (obra perdida) versou sobre as metáforas e as imagens empregadas pelos autores sagrados para descrever Deus.
Segundo Dionísio, dos três tratados, a “Teologia Simbólica” é o mais extenso porque lida com a multiplicidade das imagens. Os outros dois representam, com relação ao primeiro, uma ascensão que passa do múltiplo à unidade. O discurso se expande à medida que desce do Princípio às coisas, e reduz-se quando sobe dos seres ao Princípio, chegando à absoluta falta de palavras e ao silêncio reverencial diante da obscuridade divina.
As afirmações da teologia catafática iniciam pelas coisas mais sublimes e mais próximas de Deus. Os atributos que são mais adequados ao divino são aqueles que possuem os seres mais excelsos. Então, é melhor predicar do Altíssimo uma qualidade angélica do que de uma qualidade humana, pois o anjo é mais perfeito que o homem. As negações da teologia apofática procedem a partir daquilo que é mais baixo, pois é mais evidente que Deus não é “pedra” do que não é “vida” ou “bondade”.
Se, de um lado, enquanto causa de tudo, a Deus não podem ser negadas a essência, a vida, a palavra e o intelecto, atributos dos mais elevados na escala dos entes, por outro lado, os atributos inferiores e limitativos devem ser negados, tais como corpo, figura, imagem, qualidade, quantidade, volume, lugar, sensibilidade, desordem, agitação, passividade, necessidade, mudança, corrupção, divisão, privação ou fluxo. As perfeições devem ser afirmadas, e negadas todas as limitações e imperfeições próprias das coisas.
Na teologia afirmativa ou catafática, somente as atribuições mais elevadas podem ser predicadas de Deus sem prejuízo, pois, em si mesmas, são perfeições, ao passo que a negação dessas atribuições implicaria imperfeição, limitação ou privação. Por exemplo, negar vida ao Altíssimo significaria dizer que Ele é inanimado como uma pedra, o que é um absurdo. Negar intelecto a Deus equivaleria dizer que Ele é incapaz de conhecimento e de entendimento, outra absurdidade patente.
Ora, se a negação das perfeições é errônea porque implica atribuir imperfeições a Deus, mais equivocada ainda será a afirmação de limitações. Segue-se daí que a teologia afirmativa não atribui ao Senhor nenhuma das características dos entes deste mundo que expressam algum tipo de limitação. Não é adequado, por exemplo, predicar corporeidade de Deus pela simples razão de que um corpo é algo necessariamente finito. Tampouco a mudança é predicada do Altíssimo porque aquilo que muda sofre alguma alteração que é efetuada por outro ente, o que implica limitação e passividade.
Ambas as teologias, catafática e apofática, negam os predicados que implicam limitação (corporeidade, mudança, etc.). Não obstante, no tange às perfeições, a via catafática as aceita no discurso teológico, e a via apofática as rejeita porque a transcendência divina ultrapassa quaisquer perfeições no mundo, uma vez que estas são sempre relativas e limitadas.
Sem dúvida, Deus não pode ser dito irracional no sentido de privação da capacidade de raciocínio. Logo, para evitar que uma imperfeição seja afirmada, é justo atribuir "razão" a Deus na teologia catafática. Ocorre que a noção que temos de "razão" é proveniente de nossa experiência com determinados seres, nós mesmos e outros humanos, e, destarte, traz consigo a marca da nossa finitude. Quando atribuídas a Deus no mesmo sentido em que são aplicadas às coisas deste mundo, as perfeições tornam-se imperfeições.
Sobre o ponto em questão, Alberto Magno observa que "nosso conhecimento deriva das coisas, e, assim, o sentido de nossas palavras segue a natureza das coisas das quais nosso conhecimento é derivado, com toda a complexidade, temporalidade e fatores limitantes que isso envolve. E, vistos sob essa ótica, (os atributos) não aplicam-se absolutamente a Deus."
Ato contínuo, o frade dominicano comenta que a predicação exige um sujeito do qual algo é predicado, mas “Deus é completamente simples, e, por isso, nele não há algo que esteja em outro ou algo que seja o sujeito de outro. Consequentemente, a realidade atual de Deus transcende toda possibilidade de existência de sujeitos e predicados. Isso significa que, verdadeira e propriamente, nenhuma proposição sobre Deus pode ser formada.” Quando tratamos do Princípio, usamos palavras emprestadas das coisas, e fazemos distinções, como entre sujeito e predicado, que não são reais em Deus, mas válidas somente em nosso entendimento.
À luz do que foi explicado acima, compreende-se por que a teologia negativa assevera que Deus não é alma ou intelecto, e nem possui imaginação, opinião, razão, intelecção, número, ordem, grandeza, pequenez, igualdade, desigualdade, semelhança, dessemelhança, repouso, mudança, luz, vida, essência, eternidade, tempo, unidade, divindade, bondade, espírito, sabedoria e conhecimento. Não está entre as coisas que não são (inexistentes ou potenciais), e nem entre as coisas que são (os entes limitados). Ele não é nenhuma dessas coisas, não por falta, limitação ou privação, e sim por supraessencialidade. *
Os seres não conhecem a natureza divina (que os excede infinitamente), e esta não os conhece (com um saber finito). É, pois, indizível, inominável, indescritível e incognoscível. Suplanta as oposições entre treva e luz, erro e verdade, afirmação e supressão. A causa una das perfeições deste mundo transcende as afirmações, e sua excelência simples e livre, superior a tudo, extrapola as supressões.
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* Dionísio esclarece o significado transcendente de cada uma das negações no tratado
“Sobre os Nomes Divinos”, comentado integralmente em:
Νεκρομαντεῖον: Os Nomes Divinos...
O texto (bilíngue) da
"Teologia Mística" utilizado aqui é o da excelente tradução feita por Bernardo Guadalupe S.L. Brandão, disponível em:
Kléos, Revista de Filosofia Antiga...
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