sábado, 18 de outubro de 2025

Dionísio Areopagita, simbolismo e a hierarquia celeste (capítulos I ao IV)

"Embora não conheçamos esse infinito supraessencial, incompreensível e inefável, entretanto afirmamos com verdade que ele não é nada de tudo aquilo que existe. Se, então, nas coisas divinas, a afirmação é menos justa e a negação mais verdadeira, é apropriado que não se tente expor, em formas que lhes sejam análogas, esses segredos envoltos numa escuridão sagrada. Pois, de modo algum as belezas celestes são rebaixadas, mas, ao contrário, são elevadas, quando descritas sob características obviamente inexatas, visto que se admite por aí que há todo um mundo entre elas e os objetos materiais."

DIONÍSIO AREOPAGITA, "Sobre a Hierarquia Celeste", capítulo II

O tratado "Sobre a Hierarquia Celeste" (Περί της Ουράνιας Ιεραρχίας), atribuído a Dionísio Areopagita, inicia afirmando a absoluta primazia do Pai que dá origem e sustentação a todas as coisas. Nele está o Princípio (ἀρχή) unificador da santa ordenação das inteligências celestiais (οὐρανίους νοῦς) pela qual é possível tanto ascender das ordens angélicas inferiores às superiores até Deus quanto fazer o caminho inverso, como simbolizado pelos anjos que subiam e desciam a escada sonhada por Jacó (Gênesis 28:10-19).

Jesus Cristo, o Logos divino, é a ação criadora e ordenadora que possibilita o acesso ao Pai das Luzes e às hierarquias celestiais. Estas, contudo, foram revestidas nas Sagradas Escrituras por figuras e formas compostas proporcionais ao nosso limitado entendimento. Cumpre não interpretar as imagens literalmente como se os anjos tivessem corpos ou partes de animais. Ao contrário, a inteligência deve realizar a ascensão (ἀναγωγή) dos símbolos às realidades espirituais que eles representam. 

Imagens aparentemente tão inadequadas e, alguns diriam, indignas, não foram usadas para revestir os anjos somente por causa da deficiente compreensão humana, mas também pela necessidade de ocultar essas realidades dos espíritos profanos e néscios. O símbolo revela e oculta ao mesmo tempo. É uma porta que tanto franqueia o acesso quanto bloqueia a passagem. 

As imagens adequadas parecem mais justas porque veiculam concepções positivas do que é o divino. Nomes como "Inteligência" (νοῦς), "Razão" (λόγος) e "Ser" (οὐσία) expressam perfeições que, sem dúvida, devem ser atribuídas a Deus mais propriamente do que a qualquer ente deste mundo, por mais elevado que ele seja. Porém, é sabido que toda perfeição que conhecemos apresenta-se em graus maiores ou menores nas coisas concretas. Essa limitação intrínseca impede que tais termos sejam atribuídos de modo completamente adequado à natureza divina supraessencial e infinita.

As imagens inadequadas representam Deus negativamente, asseverando a Sua absoluta transcendência com relação a todas as coisas, e impedindo assim a identificação espúria entre o ilimitado e o limitado ou qualquer interpretação literal e grosseira dos símbolos. E a teologia negativa ou apofática é superior à teologia positiva ou catafática porque não diz o que Deus é, mas tão somente o que Ele não é, resguardando desse modo o mistério da Sua absoluta transcendência.

Dionísio expõe nessa passagem os dois aspectos fundamentais do simbolismo: a revelação e o ocultamento simultâneos. Se, por um lado, o símbolo é translúcido e ilumina uma realidade desconhecida por meio de vínculos analógicos, por outro, o símbolo é opaco, e protege o segredo e o mistério dos olhares profanos. Assim, nada há de ofensivo em representar as coisas divinas, e as ordens angélicas, empregando imagens evidentemente inadequadas. As figurações são apenas pontos de partida materiais para a contemplação espiritual.

Em seguida, o teólogo neoplatônico esclarece que a hierarquia é uma "ordem santa" na qual a perfeição de Deus é imitada pelos seres na medida em que são capazes de sustentar a semelhança divina. Ao imitar o Princípio, os entes recebem seu sustento na realidade, e, por seu lugar nessa ordenação, tornam-se cooperadores de Deus, transmitindo aos seus subordinados aquilo que convém à sua função. A imitação de Deus é a realização da natureza intrínseca de cada ser que, por sua vez, determina a sua função dentro do grande esquema das coisas.

hierarquia celeste é uma cadeia ininterrupta na qual cada ordem angélica é a imitação da perfeição divina num grau determinado. Os anjos voltam-se (ἐπιστροφή) à luz de Deus transmitida por seus superiores, e, simultaneamente, a transmitem aos anjos que lhes são inferiores, e estes, ao fim da hierarquia, distribuem aos homens as revelações e os mistérios que ultrapassam a razão. O próprio nome "anjo" indica a sua função de mensageiro (ἄγγελος, "angelos") ou intermediário.

A natureza divina é inacessível. Ninguém jamais viu e nem verá a Deus tal como Ele é. O que conhecemos da divindade provém das perfeições limitadas que as criaturas apresentam e da função que elas desempenham na ordem universal. Dionísio atribui às potências celestes a transmissão tanto da Lei aos veneráveis antepassados quanto das visões (teofanias) e iniciações aos mistérios concedidas aos videntes sagrados.  

As Santas Escrituras confirmam essa verdade em muitos episódios nos quais os anjos atuaram como intermediários entre Deus e os homens. E mesmo o Cristo, enquanto comunicava na Terra a vontade do Pai, desempenhou também a função angélica de mensageiro.
...
Leia também:  comentário integral de "Os Nomes Divinos": Νεκρομαντεῖον: Os Nomes Divinos

Nenhum comentário: