sexta-feira, 9 de março de 2018

Ésquilo, Prometeus e a origem da condição humana



"Coro: Novos governantes manejam o leme sobre o Olimpo,
 E Zeus manda arbitrariamente por meio de novas leis;
 O que antes era poderoso, lança ao oblívio."

ÉSQUILO, Prometeus Acorrentado


Prometeus Acorrentado, de Ésquilo, apresenta o castigo infligido por Zeus ao titã Prometeus que roubara do Olimpo o fogo sagrado e entregara-o aos homens. Zeus, após haver vencido os titãs e seu próprio pai, Cronos, na titanomaquia, lançando-os no Tártaro, estabelece sua nova ordem como rei inconteste dos demais olímpicos. O soberano dos deuses governa somente porque destronou seu pai e venceu as forças da antiga ordem. Como relata Hesíodo na Teogonia, Zeus também derrota o monstro Typhaeus, tema simbólico clássico da instauração da ordem do cosmo pela vitória do herói sobre a serpente ou sobre o dragão.

Todavia, Zeus, para vencer os titãs, convence alguns dos titãs a lutar por ele. É o tema da sobrevivência de traços da antiga ordem das coisas na nova ordem. Prometeus, o titã, representa simbolicamente a presença desse vestígio do mundo anterior no cosmo instaurado pelo governante atual. Pertencendo a outro estrato da realidade, Prometeus, não à toa, não age segundo os ditames do mundo constituído por Zeus. Simbolicamente, há forças que são mais profundas que a nova ordem e que, portanto, são rebeldes à ordem recém-estabelecida.

Antes de Prometeus dar aos homens o fogo sagrado que roubara no Olimpo, estes não eram mais do que animais sem inteligência ou arte. O presente do titã tornou os homens o que eles são. Deu-lhes diversas artes e saberes como a construção de habitações, a agricultura, a criação de animais, a matemática, a metalurgia, a construção de barcos, a medicina, o vaticínio, a interpretação do vôo das aves e dos sonhos, etc. É o mito tradicional da origem da cultura, o modo próprio de vida do homem.

Prometeus representa simbolicamente o divino que fornece os limites definidores do homem, é aquele que, no princípio, dá os contornos essenciais do que é ser homem. Acorrentado à montanha do Cáucaso, símbolo do eixo do mundo, ele representa uma possibilidade realizada e encerrada dentro da ordem do Ser. O homem é aquilo que aí está, com esse fogo divino que o ajuda a sobreviver, mas nada mais ser-lhe-á acrescentado.

O amor de Prometeus aos homens, no entanto, é a causa de seus infortúnios. Zeus ordena que Poder e Violência, junto com Hefestos, acorrentem-no ao Cáucaso. Isto é, o exercício do poder sempre vem acompanhado da ameaça da violência. E a técnica está, ainda que a contragosto, a seu serviço na figura relutante de Hefestos. 

O castigo de Prometeus simboliza a percepção espiritual de que a suficiência divina não precisava haver criado o homem, e que, de certa forma, nossa existência deve-se a um logro, a um ato furtivo, como se houvesse uma divisão interna do divino pela qual a existência do homem escapasse da origem como um ladrão no meio da noite. Dado que houve essa fuga e esse roubo, é necessário que se feche a porta por onde o ladrão saiu. O divino volta a fechar-se em si mesmo e a águia que come o fígado de Prometeu é símbolo de possibilidades que não se realizam, que voltam à sua fonte sem efetivar-se jamais. É a gravidez sem parto, o feto que nunca chega à maturidade do nascimento. Sempre e de novo.

Zeus e sua Dikê (justiça) não aceitam mais a ordem antiga dos Titãs como Prometeus. O homem, tal como o conhecemos e nas condições que o circunscrevem, tem origem na iniciativa de uma ordem mais antiga, mais caótica, mais primeva, simbolizada pelo titã remanescente. O homem é mais filho do arguto, do que planeja (Prometeus, "o que pensa antes"), do enganador e do ladrão furtivo do que da nova ordem , embora a ela tenha de submeter-se tanto quanto Prometeus.

O mito é a percepção de que nossa condição tem algo de fundamentalmente arbitrário e de caótico. Somos o fruto, por assim dizer, de uma parte do divino que age sob a égide de razões que não são as da ordem e da força representadas por Zeus. Sim, o divino manifesta-se pela face de Zeus e de sua Dikê, mas nossa origem e o ser que somos não se explicam por essa face mais recente, mais próxima e compreensível, mas por uma dimensão mais profunda, antiga, furtiva e, no fim, incompreensível.

É interessante notar que tanto no relato mítico do Gênesis quanto no mito poético de Hesíodo a condição presente do homem nasce do engano. O homem, criado por Deus, é enganado pela serpente e Zeus é enganado por Prometeus que rouba o fogo divino e o concede aos homens. Em ambos os casos, o caráter divino é prometido ou entregue ao homem pelo enganador. No caso bíblico, a consequência é a dor e o sofrimento da expulsão do Éden. No caso grego, a consequência é o presente dos deuses, Pandora, a mulher que será a fonte de todos os males humanos. Isto é, o castigo segue-se à mudança de condição do homem tornada possível pelo enganador.

O mito de Prometeus marca a ambiguidade da condição humana em sua relação com o divino. O homem não aparece senão tardiamente na ordem do Ser e o relato de sua origem serve como definição de seu lugar periférico na estrutura das coisas. Não obstante, é por causa dos homens, esses seres que "vivem por um só dia", como o expressa Ésquilo, que acontece o castigo de Prometeus e manifesta-se peso excessivo da mão de Zeus. Embora insignificantes, os homens são causa de divisão no seio divino.

O poder vigente, contudo, tem seus limites traçados por forças ainda mais primevas no seio do divino, pois, como assevera Prometheus, mesmo Zeus é prisioneiro da Moira e seu destino está selado. A face divina que agora apresenta-se em Zeus será destronada como foi a face de Cronos, seu pai. E, de modo análogo, será um descendente de Zeus que trará sua ruína. Prometheus, o "pré-vidente", já sabe disso da mesma forma que já sabia o que acontecer-lhe-ia se ajudasse os homens.

As filhas de Oceano fazem companhia a Prometheus e o consolam de suas dores. O aquático é símbolo de possibilidades ainda não engendradas, como assinalou Mircea Eliade em diversas de suas obras. Prometheus, aquele que enxerga antes, contempla possibilidades que ainda não realizaram-se. Não à toa, é no diálogo com elas que ele revela o destino funesto de Zeus.

Prometheus é símbolo da providência, do arcabouço divino de onde vêm os dons e, concomitantemente, da antevisão do que dar-se-á no futuro. É por pertencer a um estrato anterior da ordem do divino que ele pode testemunhar a ascensão e a queda dos deuses governantes. E é também por essa razão que ele é acorrentado, uma vez que o novo poder não suporta a permanência de vestígios de uma ordem anterior que não conformam-se a seus desígnios. Simbolicamente, a nova face divina tenta circunscrever e impor suas leis, mas há no seio mesmo da ordem do divino esferas mais antigas, mais fundamentais e, portanto, incontroláveis. Prometheus prevê sua própria libertação.