segunda-feira, 1 de março de 2021

Curtas observações sobre os gregos na Índia

                                                     Buddha protegido por Hércules

“Excetuando-se a estátua de Buddha, a história da Índia teria sido essencialmente a mesma se os gregos jamais tivessem existido.”

W.W. TARN, The Greeks in Bactria and India, p. 376 (tradução minha)

Há alguns meses, li, um após o outro, dois livros importantes sobre os macedônios e os gregos na Índia: The Greek Experience of India, de Richard Stoneman, e o clássico de W.W. Tarn The Greeks in Bactria and India. As duas obras são excelentes, embora algo enfadonhas em alguns pontos, principalmente nas discussões acerca da identificação de rios e de cidades. Meu interesse na leitura era entender melhor os contatos culturais entre gregos e indianos e a fundação de reinos helenísticos naquela região, algo que me fascinava desde a leitura do Milindapanha.

Não farei aqui resenha desses livros, mas tão somente apontarei algumas curiosidades e questões que me chamaram a atenção. Não são necessariamente os temas mais importantes abordados pelas obras e, talvez, nem mesmo os mais interessantes. São somente alguns pontos selecionados entre tudo aquilo de que tomei nota.

Alexandre Magno invadiu a Ásia em 334 A.C. e em 331, em Gaugamela, venceu definitivamente o Grande Rei Darius III, encerrando assim a dinastia persa dos Aquemênidas que havia iniciado no século VI antes de Cristo. Alexandre prosseguiu em suas conquistas, chegando à Báctria (Afeganistão) e Índia. Às margens do rio Hydaspes, o rei macedônio enfrentou e venceu o raja indiano Porus e avançou até o rio Hyphasis, onde suas tropas recusaram-se a avançar mais e exigiram o retorno à Macedônia.

Após a morte de Alexandre na Babilônia, em 323, houve um período de quarenta anos de guerras entre os generais macedônios pelo domínio de seu império. Algumas dinastias nasceram e prosperaram, como os Ptolomeus no Egito (dinastia da famosa Cleópatra) e os Selêucidas na Ásia, até a conquista romana. Reinos e dinastias gregas foram fundados também no Afeganistão (Báctria) e na Índia.

A maior parte das informações que sobre a Índia da época de Alexandre e de seus sucessores (século IV A.C.) vêm do livro Indika (Ἰνδικά) de Megasthenes, filósofo e embaixador grego do rei selêucida Seleuco I Nicator em Pataliputra, capital do império do grande rei indiano Chandragupta Maurya, fundador da dinastia Maurya (320–180 A.C.). Todavia, o livro só existe em fragmentos citados por autores posteriores como Arrian e Strabon (Estrabão). Assim como no caso dos pré-socráticos (séculos VI/V A.C.) cujos testemunhos, citações e fragmentos aparecem em Platão, Aristóteles e Teofrasto (IV A.C.) e em autores posteriores (séculos I, II, III D.C. em diante) como Plutarco, Sextus Empiricus, Diogenes Laertio, Stobeus, etc, os relatos de Nearchus, Onesicritus e Megasthenes sobre os gregos na Índia (sec. IV B.C.), sobreviveram parcialmente em Strabon (I A.C.) e Arrian (II D.C.), e em autores ainda posteriores.

Povos fantásticos

O livro de Megasthenes é famoso por suas histórias sobre povos e animais fantásticos da Índia. Richard Stoneman, em seu The Greek Experience of India, tratando dos relatos de Megasthenes sobre a Índia, destaca dois desses povos fantásticos: os sem-boca e os cabeça-de-cachorro. Os sem-boca seriam homens sem boca que se alimentariam de perfumes inalados! O mais curioso é que os fragmentos de Megasthenes parecem afirmar que ele viu esses sem-boca serem chamados à presença do rei Chandragupta Maurya. Megasthenes não estaria repassando um relato proveniente dos povos nativos, mas seria uma testemunha ocular da existência desse povo.

Os cabeça-de-cachorro seriam um povo montanhês e caçador que falaria por meio de latidos, e que usaria peles de animais como roupa. Haveria cerca de 120.000 deles, segundo Megasthenes. Eles apareceriam depois no Romance de Alexandre, onde estariam entre os povos derrotados por Alexandre e classificados como “impuros” e canibais. Esse povo entrará no imaginário da Idade Média européia e, no mundo islâmico, Ibn Battutah e Al Biruni afirmarão a existência dos cabeça-de-cachorro, habitantes do Norte da Índia.

Gregos e sábios indianos

Richard Stoneman afirma que a primeira referência a Buddha no mundo greco-romano aparece no Stromata de Clemente de Alexandria (III D.C.). Lá se diz que entre os indianos havia os que adoravam um certo Boutta como um deus por conta de sua enorme santidade. Essa passagem é antecedida por informações que sabidamente são de Megasthenes (IV A.C.). A questão controversa é saber se a referência a Buddha é originalmente de Megasthenes ou é um acréscimo do próprio Clemente. No primeiro caso, haveria evidência de que o contato dos gregos com budistas dataria da época de Alexandre ou em tempo imediatamente posterior a ele.

Sobre os sábios e filósofos indianos, as outras informações de Megasthenes, compiladas por Strabon, dão conta de uma distinção entre “Brachmanes e Sarmanes”. Aparentemente, “sarmanes” é a versão grega de Śramaṇa (श्रमण), enquanto que “Brachmanes” corresponderia aos brâhmanes. Sobre estes, os relatos de Megasthenes parecem concordar com o que se sabe sobre suas doutrinas e deveres. Megasthenes, contudo, parece usar Śramaṇa no sentido amplo de “asceta” ou “buscador”. O problema é saber exatamente quem são esses ascetas.

As informações de Megasthenes não permitem afirmar conclusivamente a quais tipos de ascetas ele se referia (sadhus, ajivakas, budistas, jainistas, etc.). A diversidade de práticas, de doutrinas e de ritos entre os ascetas na Índia daquele tempo dificulta a identificação dos grupos. Assim, ao que parece, permanece também uma questão em aberto a identidade dos famosos sofistas nus (γυμνοσοφισταί) que aparecem nos diversos relatos sobre a vida de Alexandre e nos fragmentos de Onesicritus.

Sobre a questão acerca da possível influência mútua entre gregos e indianos, Richard Stoneman afirma que, aparentemente, os reinos gregos (Norte) estiveram, em geral, associados ao budismo (ex. Menandro) e jamais alcançaram influência substantiva sobre os povos védicos indianos que os desprezavam como inferiores (mleccha). O historiador W.W. Tarn, em seu clássico The Greeks in Bactria and India, afirma que os gregos eram considerados pelos brâhmanes indianos como membros da varna dos Ksatryias (guerreiros), embora de uma extração inferior.

A conclusão de Tarn sobre os reinos gregos na Índia é que nenhum dos povos, indiano e grego, teve muita influência sobre o outro, apesar de uma convivência em “bons termos”. A troca cultural e filosófica entre os dois povos simplesmente não aconteceu. Houve alguma influência, como nomes de reis gregos no Mahabharata, conversão de reis gregos ao budismo ou ao vaishnava, algumas palavras gregas entrando no sânscrito e trocas científicas. Mas, no cômputo geral, a troca foi muito pequena.

Houve grandes reis gregos na Índia no século II A.C. como Demetrius na Báctria e Menandro em Gandhara. Menandro é mais conhecido como Milinda por conta de sua aparição no texto budista Milindapanha. Composto em páli, a obra trata das perguntas do rei yonaka (jônio, grego) Milinda ao sábio budista Nagasena acerca do Dhamma. Tarn, no entanto, considera que o texto não tem influência grega e que seu autor escreveria as mesmas coisas se jamais houvesse existido um grego na Índia.

Arte greco-budista

Segundo Tarn, a arte greco-budista da Escola de Gandhara floresceu quando os reinos gregos da Índia já haviam sucumbido às invasões nômades dos Sakas e de outros povos. Entretanto, ele crê que tenham sido escultores gregos contratados por budistas os pioneiros na representação de Buddha. Até então, o Buddha era representado por seus pés, pela árvore Buddhi, pela roda do Dhamma, etc.

A hipótese de Tarn é que artistas gregos foram contratados para fazer esculturas e, só sabendo como esculpir deuses e heróis, eles tomaram o deus Apolo como modelo. Tarn ainda afirma que a arte budista de Mathura foi uma reação indiana à escola de Gandhara, pois os Buddhas gregos eram pouco fiéis à grandeza espiritual do Buddha. Nesse ponto Tarn discorda frontalmente da opinião de Ananda Coomaraswamy, para quem a escola de Mathura nasceu independentemente da escola de Gandhara. E mesmo no caso do Buddha de Gandhara, ele foi aos poucos desaparecendo e tornando-se plenamente asiático. Aliás, tornar-se asiático e desaparecer foi o destino dos gregos que sobreviveram às invasões nômades que extinguiram os últimos reinos gregos na Índia e na Báctria.

                                                                Buddha de Mathura

                                                                        
                                                       Buddha de Gandhara

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