sábado, 6 de março de 2021

Lieh Tzu, Wu Chi e o sábio

"De uma maneira geral, ali se detecta uma tendência a ultrapassar o ponto de vista individual, egoísta,  enviesado e parcial, para se recolocar no Todo, e se erguer assim a uma perspectiva cósmica. É um procedimento quase constante em todas as filosofias da Antiguidade."

PIERRE HADOT, Préface à Yoko Orimo, Le Shôbôgenzô de Maître Dôgen (tradução minha)

"Os místicos descrevem o êxtase como uma eliminação de todas as diferenças, mas que as compreende todas, e que é, de alguma forma, sua fonte e sua confluência."

LOUIS LAVELLE, La Présence Totale, p. 79 (tradução minha)

O sábio Lieh Tzu (列子), um dos três sábios taoístas tradicionais junto com Lao Tzu e Chuang Tzu, era conhecido por ser incomumente comum, sem nenhum traço distintivo que pudesse fazê-lo se destacar do comum dos homens de seu tempo. Sua atitude de desapego pela fama o poupava das desventuras e dos problemas que afligem os homens de fortuna. Ele era completamente livre e vivia sua vida do modo como o agradava, sem carregar o fardo das rotinas e das convenções sociais.

O tema da simplicidade do sábio é uma imagem tradicional e simbólica da riqueza da própria realidade. Tudo o que há para ser aprendido já está dado na vida comum, sendo preciso somente entender a realidade absoluta que subjaz a tudo. Exteriormente, o sábio é como todos os homens, nada o difere de seus compatriotas. Interiormente, no entanto, ele é como o Tao (道), infinitamente rico e imóvel. 

O sábio se identifica com o Tao, vive na sua absoluta equanimidade. Por isso, ele é natural de um modo que os homens não o são. É natural porque segue o curso das coisas tais como elas são, sem acrescentar juízos egoístas de apreço ou de aversão. Ele está alocado no fundo originário da realidade e não na dimensão diminuída do eu comum. À desidentificação do sábio de si mesmo corresponde a sua identificação com o Tao. 

A presença total do Tao está escondida e manifestada em cada ente, mesmo o mais humilde. É por isso que quando seus discípulos pedem que Lieh Tzu dê a eles seus derradeiros ensinamentos antes de sua partida para outro reino, o sábio se limita a dizer que tudo tem seu lugar no mundo, e que as mudanças naturais seguem um ritmo que é seguido igualmente pelos assuntos humanos. Isto é, tudo é uma só realidade. Não há o que Lieh Tzu tenha a ensinar que já não esteja na realidade.

Mas os discípulos não desistem, e pedem a Lieh Tzu que ensine a eles o que seu mestre Hu Tzu havia ensinado ao próprio Lieh Tzu. O mestre de seu mestre não havia ensinado nada diferente do que Lieh Tzu passara a seus discípulos. Tudo tem seu lugar no mundo, cada coisa cumpre uma função sendo exatamente o que é. O que morre dá lugar ao que nasce e o que nasce dá lugar ao que morre. Sempre há morte e vida, e esse processo não tem fim. O Tao é a forma das formas, a lei das leis.

O livro do Imperador Amarelo afirma que o "Espírito do Vale que não morre é a Fêmea Misteriosa. É o fundamento do Céu (天) e da Terra (地). Permanece para sempre, e não pode se esgotar." Por ser vazio, o vale pode conter, abarcar e nutrir o espírito, e por ser vácuo, o vale não está sujeito ao nascimento e nem à morte. Transcender o nascimento e a morte é entrar no "sem-pólo", Wu Chi (無極), e ser uno com a origem do Céu e da Terra.

O sábio é como o vale, vazio de si mesmo. Por isso, é capaz de habitar em Wu Chi, na origem do Céu e da Terra. Ele transcendeu ao nascimento e à morte porque ambos são indiferentes para aquele que é uno com a origem de tudo. O mestre está para além da polaridade fundamental do Céu e da Terra, e habita no "sem-pólo", no que não possui extremidades ou limites. Wu Chi é o ilimitado, o informe, o vazio que antecede ontologicamente a manifestação (pradurbhava) da polaridade fundamental, a díada que forma e dá origem às dez mil coisas.

É na Fêmea Misteriosa que as coisas têm sua origem, o aspecto feminino gerador do Absoluto. O Céu e a Terra nascem daquilo que é não-nascido. Sendo não-nascido, não morre e não se extingue jamais. Está em tudo, mas as coisas não o reconhecem. Se compreendemos o ciclo natural, sabemos que não podemos controlar nossas vidas. Nascemos, perduramos e morremos, retornando à fonte de onde saímos. Tudo o que há alcança seu zênite e decai. A única coisa que sabemos é que tudo o que nasce provém do não-nascido.

Onde tudo é indiferenciado há o vazio primordial. O sábio se identifica com o abismo sem limites que a tudo dá origem e, por isso, sua visão é equânime. As coisas aparecem tais como são, e os ciclos naturais se manifestam em sua inteireza sem que o sábio se perturbe com nada. Só ele conhece plenamente o curso de tudo e a tudo aceita, sem preferências ou aversões. O sábio vive no Tao, a regra suprema dos ciclos, sem começo e sem fim. O Tao está por trás da menor e mais humilde das criaturas, assim como o sábio está por trás do mais comum dos homens. A presença total está totalmente em cada ente do mundo. 

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: taoísmo (oleniski.blogspot.com)

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