"A infinitude de Deus não nega o finito, mas é uma infinitude que unfica o finito e o infinito. Em outros termos, é uma coincidentia oppositorum. Deus é a unificação de todos os opostos, Logicamente, enquanto unificação das contradições, podemos pensar Deus como a reconciliação de entidades incompatíveis."
KITARO NISHIDA, Coincidentia Oppositorum to Ai
Em outubro de 1919, na universidade budista de Otani, o filósofo japonês Kitaro Nishida realizou uma palestra cujo tema era o conceito de Coincidentia Oppositorum e o Amor. O primeiro termo ficou associado ao filósofo e teólogo alemão renascentista Nicolau de Cusa, que o utilizou para descrever a natureza da infinitude divina. Deus, como fonte última de toda a realidade, é a "coincidência dos opostos", pois tudo está Nele como em seu Princípio derradeiro.
Aquilo que ainda não se realizou no mundo, não se concretizou na realidade dos entes finitos, é ainda uma possibilidade, e, enquanto possibilidades, os opostos não se contradizem. Ser e Não-Ser, a afirmação e a negação, e todas as oposições são o mesmo enquanto possibilidades ainda não efetivadas. Deus é tudo na qualidade de Princípio de tudo. Por essa razão, Deus é indizível e não pode ser descrito por nenhum termo da realidade finita. Aquilo que tudo engloba não é nenhuma das coisas que engloba.
Consequentemente, Deus só pode ser pensado em termos negativos, ou seja, daquilo que ele não é. Mas, ainda assim, a negação não indica a natureza divina, e será necessário negar mesmo a negação. Essa é característica apofática da Coincidentia Oppositorum, que é menos um conceito acerca da natureza divina do que uma indicação da absolutidade do Princípio último de todas as coisas.
Kitaro Nishida faz sua comunicação na universidade de Otani oito anos após a publicação de sua obra mais famosa, o Ensaio sobre o Bem. Ele inicia dizendo que a Coincidentia Oppositorum é uma reconciliação de todos os opostos, e que o Budismo, além de um tipo sofisticado de lógica, é também uma religião cujo centro é o amor. Seu objetivo é demonstrar o liame que liga o discurso lógico à essência da religião.
Nicolau de Cusa, assevera Nishida, cunhou seu termo Coincidentia Oppositorum para dar conta da natureza negativa de Deus. Toda a tradição mística cristã fala de Deus em termos negativos para evitar que termos finitos sejam atribuídos ao Princípio último de todas as coisas. Para os místicos, Deus é incognoscível (fukashigi, 不可思議), e a negação apofática é o único meio de revelar a Sua natureza. O prefixo fu (不) indica essa mesma negação no budismo.
A infinitude divina não nega a finitude, e Deus pode ser pensado como a unificação de entidades incompatíveis. O finito e o infinito estão unidos em Deus, embora sejam opostos. Nishida considera que este aspecto está presente também na lógica budista. Mas isso, que a parte e o todo estão unificados, pode ser experimentado e que podemos averiguar no fenômeno da consciência do eu. O eu conhece o eu. O eu conhecedor é diferente do eu conhecido e, no entanto, trata-se do mesmo eu. Assim, a parte e o todo estão intimamente unidos, o que configura a verdadeira infinitude, e constitui experimentalmente a autoconsciência.
Embora tenha sido cunhado em um contexto religioso, o termo Coincidentia Oppositorum é a base de todo o conhecimento. Quando formulamos uma simples proposição como "A é B", supomos que haja aí um todo sintético. É mister que o todo que unifica sujeito e predicado esteja suposto para que a sentença faça sentido. Não podemos mostrar o todo que se torna sentenças, diz Nishida. O conhecimento exige algo que não pode ser conhecido, que o antecede ontologicamente. Aquilo que é fundamento das proposições não pode ser objeto de proposição.
Essa é a intuição do todo. A intuição é a captação de um todo, segundo Nishida. E quando uma intuição se dá, ela não é fruto de uma sequência de pensamento lógico. Primeiro há a intuição, e depois há a sua construção lógica. Quando ela se dá, a intuição tem a forma de uma emoção, não de um raciocínio. É uma coincidência de opostos tomados como um todo.
No amor há a contradição do eu e do outro que são unificados. Ao amar alguém, amamos a nós mesmos. No amor aparece a essência da coincidência dos opostos. Tomados como um todo sinteticamente unificado, os diversos conhecimentos independentes e mutuamente excludentes são uma a coincidência dos opostos, assim como no âmbito da emoção, a síntese unificada dos interesses incompatíveis do eu e do outro constitui a essência do amor.
A partir do ponto de vista da religião, Nishida crê poder afirmar que os deuses e os buddhas são a essência desse amor. A unidade da Coincidentia Oppositorum é Deus e Buddha e o amor é a essência de Deus e de Buddha. Tal amor não é objeto de conhecimento, mas de experiência e de união. A coincidência dos opostos é o fundamento de toda a vida humana, e sua perfeição se mostra no amor. Apesar de ser um conceito lógico, na vida real ela é a realidade última de todas as coisas.
A palestra de Nishida traz conceitos e pensamentos que já estão delineados no seu Ensaio sobre o Bem na parte central onde o filósofo trata da experiência pura. No fundo de toda a realidade e de toda experiência há uma unidade subjacente entre sujeito e objeto, de tal modo que conhecer as coisas tais como são é conhecê-las fora das oposições que as separam. Creio que estamos diante de Sunyata, o vazio que constitui o fundamento último das coisas no budismo Mahayana, do qual faz parte o Zen.
Na linguagem do budismo Madhyamaka, a transitoriedade das coisas mostra que tudo o que vemos é sunya, vazio. A vacuidade (Sunyata) significa, em Nagarjuna Acarya, que os entes nascem graças à originação dependente e só se mantém na existência pela interdependência de todas as coisas. Mas, se olharmos "debaixo" desse tecido fenomênico, não há nada. Ou seja, os entes não têm substância, não possuem o ser como algo que seja próprio de sua natureza. Dependem uns dos outros e cada um não é mais do que um fio em uma trama universal de dependência e de instabilidade.
O que subjaz às coisas é a coincidência dos opostos que os reúne e os funda em uma unidade sintética subjacente. Ela é a condição de possibilidade dos opostos, dos entes que se manifestam (pradurbhava). Essa coincidência não é nada em particular, pois reúne tudo em si na condição de Princípio. Por isso, só a negação apofática é a sua linguagem. E o amor é a sua expressão mais pura na vida humana, pois une sinteticamente os opostos do eu e do outro.
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