PHILIP K. DICK, We Can Remember It for You Wholesale
A memória é uma das fontes que o homem possui para conhecer a si próprio e ao mundo externo. Contudo, ela não é exatamente um acesso ao passado. Não se volta ao que passou. O que já não é mais, não tem mais ser. As memórias não podem fazer retornar ao ser o que já não é. Elas são reproduções esquemáticas de fatos passados.
Tampouco podemos compará-las aos fatos passados como alguém que compara a cópia com o original. O fato passado é conhecido pela memória. Ou melhor, só sabemos da existência de fatos passados pela memória. Da mesma forma, só conhecemos nossas experiências passadas e nossa história pessoal pela memória.
Os conteúdos da memória, não obstante, são reproduções esquemáticas de experiências passadas. Enquanto tais, são menos vívidos do que as experiências presentes e são inalteráveis pela vontade ou pela ação presente. Posso a qualquer momento alterar o caminho que ora estou fazendo, mas não a lembrança do caminho que já fiz.
A memória é a consciência presente da reprodução esquemática do evento pretérito. O caráter esquemático, menos vivaz e impermeável à ação presente constituem a memória. É como o conteúdo mental memorativo se apresenta à consciência e não sua comparação com os fatos passados que constitui a memória.
Em certo sentido, é por causa de uma diferença qualitativa na apresentação do conteúdo mental que temos a noção de passado. Daí que, ou bem a memória é, em geral, um meio de conhecimento confiável ou bem sequer sabemos o que nos aconteceu, o que fizemos ou, até certa medida, o que fomos e que somos.
Seria fácil imaginar - e, de fato, muitos filósofos e escritores já imaginaram - que talvez nossa memória não seja confiável e que boa parte do que pensamos que experimentamos em algum momento do passado realmente não se deu. Seja pela ação de entidades malévolas metafísicas ou físicas, seja por disfunções físico-químicas ou psicológicas, nossas lembranças poderiam, em tese, não corresponder a coisa alguma real.
Obviamente nossa memória não é perfeita. Esquecemos muita coisa, confundimos situações e até mesmo "inventamos" lembranças. Mas esses são casos excepcionais. O ponto nevrálgico é saber se a memória é confiável em geral. Seria possível que uma parte considerável de nossa vida pregressa ou fatos determinantes de nossa história sejam somente fruto de nossa imaginação?
Temos os testemunhos dos outros para corroborar nossas memórias, como é sabido. Ainda assim, contudo, confiamos nas lembranças de um outro. Por que elas deveriam ser mais confiáveis que as minhas? E, na circunstância de entrarmos em desacordo com relação a um fato passado, quem tem razão? Não podemos retornar ao passado para averiguá-lo.
Talvez nenhum dos dois, se considerarmos seriamente a possibilidade de um acordo ilusório entre os homens. Como Bertrand Russell apontou, podemos estar em um universo nascido há cinco segundos com todos os homens tendo memórias de suas vidas pregressas implantadas em suas mentes. Uma espécie de harmonia pré-estabelecida de lembranças.
Não é necessário, porém, apelar a esses cenários céticos radicais para perceber a profundidade do problema. Basta que tenhamos em mente que a memória não é um fluxo e que esquecemos a maioria das coisas pelas quais passamos. O caso mais óbvio é a de nossa tenra infância, de cujos acontecimentos só tomamos conhecimento pelo testemunho alheio.
Não guardamos todas as experiências pelas quais passamos durante a vida. Tampouco guardamos tudo o que nos acontece cotidianamente. Há inúmeros vazios na recordação de uma simples caminhada. Sabemos que saímos de casa e passamos por uma série de pessoas e de lugares até chegar a nosso destino, mas não guardamos a memória de todos os seus momentos.
Ora, uma das questões seria como saber se houve, de fato, um hiato temporal entre o momento passado guardado na memória e o momento presente. Ou ainda, se aconteceu algo dentro desse hiato e que foi apagado. Pior, se podemos nos enganar sobre o que nos aconteceu no passado e se não podemos comparar nossas lembranças com os fatos passados, seria possível que nossa história de vida fosse fantasiosa ou implantada por alguma potência exterior.
É sobre algumas dessas questões filosóficas e epistemológicas que Philip K. Dick constrói o seu conto We Can Remember It for You Wholesale (1966), uma de suas obras mais famosas e interessantes. O conto inspirou duas adaptações cinematográficas - Total Recall (1990) e Total Recall (2012) - que, no entanto, tomaram do texto original somente sua premissa inicial.
Um homem casado e pacato, Douglas Quail, leva uma vida comum, sem graça e algo infeliz em um futuro indeterminado. Ocorre que Quail sonha e sente uma vontade imperiosa e constante de viajar à Marte, onde jamais esteve. Sua mulher encara esse desejo do marido como uma manifestação desagradável de sua natureza sonhadora e fantasiosa e cobra dele uma postura mais realista e responsável.
A esposa tem lá sua razão, pois Quail tem um emprego ordinário que não permite nenhuma esperança, por mais remota que seja, de realizar esse intento. Ele sabe disso e considera seriamente uma alternativa: um implante de memória falsa. Ele hesita um tanto, já que algo falso, por mais realista que seja, permanece sendo falso. Quando, por fim, decide-se, procura uma empresa chamada Rekal.
A promessa da Rekal era não somente implantar lembranças falsas tão críveis quanto as verdadeiras, mas fornecer um conjunto de "evidências" corroboradoras da fantasia implantada. No caso de Quail, eles enviariam passaporte, sobras de crédito de viagem, entre outros objetos, para o seu apartamento a fim de ele pudesse assim certificar-se da realidade de sua viagem. Quail, então, aceita o pacote de serviços da Rekal.
Iniciam-se aí seus problemas. Durante o implante da memória falsa da viagem à Marte - incluindo a lembrança de ser um agente secreto em uma missão naquele planeta - os técnicos dão-se conta de que, de fato, Quail esteve em Marte em uma missão como agente secreto. Duas conclusões se impunham: sua memória fôra apagada e, de algum modo, seu desejo de ir à Marte era o resquício de sua lembrança da viagem real.
Os técnicos da Rekal o enviam de volta à sua casa sem interferir mais na sua mente e nas suas lembranças. Ele agora possui duas memórias, a de que queria ir à Marte e a da viagem à Marte. Suas lembranças aos poucos vão aclarando e ele recorda que trouxera do planeta vermelho algumas espécimes de larvas. Logo depois, ele verifica, para sua surpresa, que guardava em seu apartamento uma caixa contendo...larvas ressecadas de Marte.
A caixa poderia ser também um engodo, uma vez que seria exatamente esse tipo de confirmação que esperaria do serviço da Rekal. A realidade de sua viagem impõe-se quando dois policiais vão a seu encontro em seu apartamento. Eles explicam a Quail que a revelação pública do teor de sua missão seria embaraçosa para o governo e que sua memória fôra apagada justamente para que essa informação jamais viesse a lume. Sua sentença era a morte.
Quail agilmente consegue escapar dos policiais e foge. Cedo se dá conta de que sua situação era inescapável. Propõe um trato: sua memória da viagem apagada e uma nova memória implantada. Uma que realizasse seu mais íntimo desejo e que, por isso, suplantaria qualquer resquício do desejo de ir à Marte que o conduzira a todo esse drama.
O governo aceita. A memória da viagem é apagada e a nova memória contendo o desejo mais íntimo de Quail está prestes a ser implantada quando, de novo, os técnicos da Rekal dão-se conta de que aquela lembrança falsa que seria implantada já estava lá. De fato, o desejo mais íntimo de Quale nada mais era do que um acontecimento real em sua vida pregressa que fôra apagado pela agência de outros poderes.
Os temas da realidade e da ilusão são caros a Philip K. Dick, como é sabido. O tema das drogas também está presente, pois é quando Quail está sob efeito de uma droga - narkidrina - usada no processo de implantação da memória que ele recorda da sua viagem real à Marte. Isto é, o acesso à verdade não se dá pela mente consciente e dona de suas faculdades, mas pela ação liberadora das drogas.
Não somente as drogas revelam a verdade. Os sonhos e os desejos também o fazem. O desejo de Quail de viajar à Marte era uma tênue lembrança confusa, indistinta e sufocada daquilo que realmente se dera em sua vida. Mais uma vez, o acesso à verdade se dá não pela mente consciente e dona de suas faculdades. Desta vez, verdade revela-se pelo desejo e pelo sonho.
Dick cria no conto uma ampla desconfiança na certeza da memória. "Se não pudéssemos confiar na memória, qual outro (ou outros) acesso (s) teríamos à verdade sobre nós mesmos?", parece perguntar. Fundamentalmente, a busca de Quail é sobre sua própria história, sobre quem realmente ele é. A resposta de Dick parece apontar que não é na consciência comum e cotidiana que se encontrará a resposta. Os grandes desejos, os sonhos e as drogas são os acessos privilegiados à realidade.
O que é mais estranho é que é justamente quando Quail decide enganar-se a si mesmo, realizando seu desejo recorrente através de um mero símile, que ele entra em contato com a realidade. O falso conduz paradoxalmente à verdade. O não-ser conduz ao ser. A consequência, porém, é a pena de morte decretada por forças que controlam a realidade e que só são apaziguadas quando o homem voluntariamente aceita outra de suas ilusões.
Em outros termos, estamos submetidos a um mundo ilusório que esconde nossa verdadeira história e vislumbramos essa realidade difusa e confusamente e só temos acesso a ela em condições fora daquelas que constituem a experiência cotidiana. O custo dessa libertação é a experiência da morte. A outra opção é o retorno à ilusão.
Se é assim, Quail é o homem que quer retornar à ilusão desde que seus desejos sejam realizados. Todavia, no ato mesmo de querer iludir-se, a realidade é-lhe revelada pela segunda vez. Paralelamente, os agentes que exigem de Quail um retorno ao ilusório, no momento em que criam o falso, revelam o verdadeiro.
Forças que ocultam ou revelam a realidade a seu bel prazer são um tema que assombra a mente dos filósofos desde Parmênides, passando pelo gênio mau de Descartes e chegando à filosofia contemporânea com seus cenários de cientistas malévolos que enganam cérebros em cubas. Se o filósofo solipsista crê que toda realidade externa não é mais do que uma projeção de sua mente, o filósofo paranóico desconfia de que tudo o que está em sua mente é ilusório.
Haveria uma realidade objetiva e independente da mente. Mas ela seria ocultada - em parte ou totalmente - por certas potências que substituiriam-na por ficções. Essas forças, sejam elas quais forem, não seriam onipotentes, já que o homem possuiria vislumbres da realidade. Mais do que isso, no intento de ocultar a realidade, elas acabariam por revelá-la. Desse modo, a inclinação humana à verdade, por assim dizer, encontraria um caminho para realizar sua vocação a despeito de todos os obstáculos. Mesmo que o homem opte livremente pela ilusão.
A não ser que Quail jamais tenha realmente ido à Marte...
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com.br/2015/07/os-tres-estigmas-de-palmer-eldritch-e.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2013/12/philip-k-dick-ilusao-e-realidade.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2014/08/does-descartes-dream-of-mechanical-sheep.html
Os conteúdos da memória, não obstante, são reproduções esquemáticas de experiências passadas. Enquanto tais, são menos vívidos do que as experiências presentes e são inalteráveis pela vontade ou pela ação presente. Posso a qualquer momento alterar o caminho que ora estou fazendo, mas não a lembrança do caminho que já fiz.
A memória é a consciência presente da reprodução esquemática do evento pretérito. O caráter esquemático, menos vivaz e impermeável à ação presente constituem a memória. É como o conteúdo mental memorativo se apresenta à consciência e não sua comparação com os fatos passados que constitui a memória.
Em certo sentido, é por causa de uma diferença qualitativa na apresentação do conteúdo mental que temos a noção de passado. Daí que, ou bem a memória é, em geral, um meio de conhecimento confiável ou bem sequer sabemos o que nos aconteceu, o que fizemos ou, até certa medida, o que fomos e que somos.
Seria fácil imaginar - e, de fato, muitos filósofos e escritores já imaginaram - que talvez nossa memória não seja confiável e que boa parte do que pensamos que experimentamos em algum momento do passado realmente não se deu. Seja pela ação de entidades malévolas metafísicas ou físicas, seja por disfunções físico-químicas ou psicológicas, nossas lembranças poderiam, em tese, não corresponder a coisa alguma real.
Obviamente nossa memória não é perfeita. Esquecemos muita coisa, confundimos situações e até mesmo "inventamos" lembranças. Mas esses são casos excepcionais. O ponto nevrálgico é saber se a memória é confiável em geral. Seria possível que uma parte considerável de nossa vida pregressa ou fatos determinantes de nossa história sejam somente fruto de nossa imaginação?
Temos os testemunhos dos outros para corroborar nossas memórias, como é sabido. Ainda assim, contudo, confiamos nas lembranças de um outro. Por que elas deveriam ser mais confiáveis que as minhas? E, na circunstância de entrarmos em desacordo com relação a um fato passado, quem tem razão? Não podemos retornar ao passado para averiguá-lo.
Talvez nenhum dos dois, se considerarmos seriamente a possibilidade de um acordo ilusório entre os homens. Como Bertrand Russell apontou, podemos estar em um universo nascido há cinco segundos com todos os homens tendo memórias de suas vidas pregressas implantadas em suas mentes. Uma espécie de harmonia pré-estabelecida de lembranças.
Não é necessário, porém, apelar a esses cenários céticos radicais para perceber a profundidade do problema. Basta que tenhamos em mente que a memória não é um fluxo e que esquecemos a maioria das coisas pelas quais passamos. O caso mais óbvio é a de nossa tenra infância, de cujos acontecimentos só tomamos conhecimento pelo testemunho alheio.
Não guardamos todas as experiências pelas quais passamos durante a vida. Tampouco guardamos tudo o que nos acontece cotidianamente. Há inúmeros vazios na recordação de uma simples caminhada. Sabemos que saímos de casa e passamos por uma série de pessoas e de lugares até chegar a nosso destino, mas não guardamos a memória de todos os seus momentos.
Ora, uma das questões seria como saber se houve, de fato, um hiato temporal entre o momento passado guardado na memória e o momento presente. Ou ainda, se aconteceu algo dentro desse hiato e que foi apagado. Pior, se podemos nos enganar sobre o que nos aconteceu no passado e se não podemos comparar nossas lembranças com os fatos passados, seria possível que nossa história de vida fosse fantasiosa ou implantada por alguma potência exterior.
É sobre algumas dessas questões filosóficas e epistemológicas que Philip K. Dick constrói o seu conto We Can Remember It for You Wholesale (1966), uma de suas obras mais famosas e interessantes. O conto inspirou duas adaptações cinematográficas - Total Recall (1990) e Total Recall (2012) - que, no entanto, tomaram do texto original somente sua premissa inicial.
Um homem casado e pacato, Douglas Quail, leva uma vida comum, sem graça e algo infeliz em um futuro indeterminado. Ocorre que Quail sonha e sente uma vontade imperiosa e constante de viajar à Marte, onde jamais esteve. Sua mulher encara esse desejo do marido como uma manifestação desagradável de sua natureza sonhadora e fantasiosa e cobra dele uma postura mais realista e responsável.
A esposa tem lá sua razão, pois Quail tem um emprego ordinário que não permite nenhuma esperança, por mais remota que seja, de realizar esse intento. Ele sabe disso e considera seriamente uma alternativa: um implante de memória falsa. Ele hesita um tanto, já que algo falso, por mais realista que seja, permanece sendo falso. Quando, por fim, decide-se, procura uma empresa chamada Rekal.
A promessa da Rekal era não somente implantar lembranças falsas tão críveis quanto as verdadeiras, mas fornecer um conjunto de "evidências" corroboradoras da fantasia implantada. No caso de Quail, eles enviariam passaporte, sobras de crédito de viagem, entre outros objetos, para o seu apartamento a fim de ele pudesse assim certificar-se da realidade de sua viagem. Quail, então, aceita o pacote de serviços da Rekal.
Iniciam-se aí seus problemas. Durante o implante da memória falsa da viagem à Marte - incluindo a lembrança de ser um agente secreto em uma missão naquele planeta - os técnicos dão-se conta de que, de fato, Quail esteve em Marte em uma missão como agente secreto. Duas conclusões se impunham: sua memória fôra apagada e, de algum modo, seu desejo de ir à Marte era o resquício de sua lembrança da viagem real.
Os técnicos da Rekal o enviam de volta à sua casa sem interferir mais na sua mente e nas suas lembranças. Ele agora possui duas memórias, a de que queria ir à Marte e a da viagem à Marte. Suas lembranças aos poucos vão aclarando e ele recorda que trouxera do planeta vermelho algumas espécimes de larvas. Logo depois, ele verifica, para sua surpresa, que guardava em seu apartamento uma caixa contendo...larvas ressecadas de Marte.
A caixa poderia ser também um engodo, uma vez que seria exatamente esse tipo de confirmação que esperaria do serviço da Rekal. A realidade de sua viagem impõe-se quando dois policiais vão a seu encontro em seu apartamento. Eles explicam a Quail que a revelação pública do teor de sua missão seria embaraçosa para o governo e que sua memória fôra apagada justamente para que essa informação jamais viesse a lume. Sua sentença era a morte.
Quail agilmente consegue escapar dos policiais e foge. Cedo se dá conta de que sua situação era inescapável. Propõe um trato: sua memória da viagem apagada e uma nova memória implantada. Uma que realizasse seu mais íntimo desejo e que, por isso, suplantaria qualquer resquício do desejo de ir à Marte que o conduzira a todo esse drama.
O governo aceita. A memória da viagem é apagada e a nova memória contendo o desejo mais íntimo de Quail está prestes a ser implantada quando, de novo, os técnicos da Rekal dão-se conta de que aquela lembrança falsa que seria implantada já estava lá. De fato, o desejo mais íntimo de Quale nada mais era do que um acontecimento real em sua vida pregressa que fôra apagado pela agência de outros poderes.
Os temas da realidade e da ilusão são caros a Philip K. Dick, como é sabido. O tema das drogas também está presente, pois é quando Quail está sob efeito de uma droga - narkidrina - usada no processo de implantação da memória que ele recorda da sua viagem real à Marte. Isto é, o acesso à verdade não se dá pela mente consciente e dona de suas faculdades, mas pela ação liberadora das drogas.
Não somente as drogas revelam a verdade. Os sonhos e os desejos também o fazem. O desejo de Quail de viajar à Marte era uma tênue lembrança confusa, indistinta e sufocada daquilo que realmente se dera em sua vida. Mais uma vez, o acesso à verdade se dá não pela mente consciente e dona de suas faculdades. Desta vez, verdade revela-se pelo desejo e pelo sonho.
Dick cria no conto uma ampla desconfiança na certeza da memória. "Se não pudéssemos confiar na memória, qual outro (ou outros) acesso (s) teríamos à verdade sobre nós mesmos?", parece perguntar. Fundamentalmente, a busca de Quail é sobre sua própria história, sobre quem realmente ele é. A resposta de Dick parece apontar que não é na consciência comum e cotidiana que se encontrará a resposta. Os grandes desejos, os sonhos e as drogas são os acessos privilegiados à realidade.
O que é mais estranho é que é justamente quando Quail decide enganar-se a si mesmo, realizando seu desejo recorrente através de um mero símile, que ele entra em contato com a realidade. O falso conduz paradoxalmente à verdade. O não-ser conduz ao ser. A consequência, porém, é a pena de morte decretada por forças que controlam a realidade e que só são apaziguadas quando o homem voluntariamente aceita outra de suas ilusões.
Em outros termos, estamos submetidos a um mundo ilusório que esconde nossa verdadeira história e vislumbramos essa realidade difusa e confusamente e só temos acesso a ela em condições fora daquelas que constituem a experiência cotidiana. O custo dessa libertação é a experiência da morte. A outra opção é o retorno à ilusão.
Se é assim, Quail é o homem que quer retornar à ilusão desde que seus desejos sejam realizados. Todavia, no ato mesmo de querer iludir-se, a realidade é-lhe revelada pela segunda vez. Paralelamente, os agentes que exigem de Quail um retorno ao ilusório, no momento em que criam o falso, revelam o verdadeiro.
Forças que ocultam ou revelam a realidade a seu bel prazer são um tema que assombra a mente dos filósofos desde Parmênides, passando pelo gênio mau de Descartes e chegando à filosofia contemporânea com seus cenários de cientistas malévolos que enganam cérebros em cubas. Se o filósofo solipsista crê que toda realidade externa não é mais do que uma projeção de sua mente, o filósofo paranóico desconfia de que tudo o que está em sua mente é ilusório.
Haveria uma realidade objetiva e independente da mente. Mas ela seria ocultada - em parte ou totalmente - por certas potências que substituiriam-na por ficções. Essas forças, sejam elas quais forem, não seriam onipotentes, já que o homem possuiria vislumbres da realidade. Mais do que isso, no intento de ocultar a realidade, elas acabariam por revelá-la. Desse modo, a inclinação humana à verdade, por assim dizer, encontraria um caminho para realizar sua vocação a despeito de todos os obstáculos. Mesmo que o homem opte livremente pela ilusão.
A não ser que Quail jamais tenha realmente ido à Marte...
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com.br/2015/07/os-tres-estigmas-de-palmer-eldritch-e.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2013/12/philip-k-dick-ilusao-e-realidade.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2014/08/does-descartes-dream-of-mechanical-sheep.html
Um comentário:
Boa noite, parabéns primeiramente pelo trabalho no blog.
De fato para resolver o problema do personagem, o correto não era ele pedir para simplesmente apagarem as lembranças da viagem, até porque ao acordar da "hipnose", ele de qualquer maneira ficaria se perguntando o que foi fazer ali e a resposta seria que ele foi apagar a memória da viagem, o que já seria a própria lembrança. O certo era ele pedir pra implantarem uma terceira coisa completamente distinta, por exemplo: que ele tinha ido procurar os técnicos porque queria apagar uma fobia de infância. Assim, quando ele acordasse da hipnose, para todos os efeitos seria como se ele tivesse procurado a empresa para acabar com o tralma de infância e nada mais. Obviamente, isso também não passaria de só mais uma "ilusão de memória"...
De qualquer modo, essa problemática das ilusões de memória lembra um pouco certas linhagens místicas presentes nas religiões em geral, em que os místicos buscam desapegar-se de tudo que está na Criação e unir-se ao Absoluto, que é a fonte de tudo (tanto da realidade como das ilusões), e alguns dizem inclusive que depois deve-se desapegar-se do próprio Absoluto, o que constituiria a verdadeira experiência "não-dual" e portanto a única real "com R maiúsculo".
Um abraço,
Cleverson
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