quinta-feira, 30 de junho de 2016

Aristóteles, política, unidade, propriedade comum e virtude


"Os homens prontamente ouvem e são facilmente induzidos a acreditar que, de alguma maravilhosa maneira, todos serão amigos de todos, especialmente quando alguém denuncia os males existentes agora nos estados - litígios sobre contratos, condenações por perjúrio, lisonjas de homens ricos e coisas semelhantes -, as quais dizem nascer da posse da propriedade privada. Tais males, contudo, são devidos a uma causa bem diferente: a maldade da natureza humana."

ARISTÓTELES, Política, II, 5, 1263b, [15]

No capítulo 5 do livro II de sua Política, Aristóteles passa a analisar as propostas de estado perfeito. A primeira questão que se apresenta é aquela da propriedade. Três opções aparecem no cenário das possibilidades: a) os cidadãos têm tudo em comum, b) os cidadãos não têm nada em comum, c) algumas coisas são comuns e algumas não são.

A opção (b) é impossível, pois uma comunidade necessariamente tem algo em comum, como o lugar onde está localizada. Resta, pois, analisar as duas opções restantes. Tomando a opção (a), devem os cidadãos ter esposas e crianças em comum, como quer Platão em sua República?

Em primeiro lugar, Aristóteles afirma que o princípio utilizado por Sócrates em defesa de sua tese não é propriamente demonstrado e, considerado como meio para o fim pretendido, é impraticável. A premissa do argumento socrático é a de que "quanto maior a unidade do estado, melhor ele será". Para Aristóteles, essa asserção é o centro do erro de Sócrates. E ele dará as razões a seguir.

O estado não pode atingir tal grau de unidade sem  sem deixar de ser o que é, ou seja, um estado. A sua natureza é ser uma pluralidade e, ao tender a ser uma unidade maior como quer Sócrates, ele tende a negar-se a si mesmo e a transformar-se - em uma gradação de unificação - em família e depois em indivíduo. Pois uma família é mais una que um estado e um indivíduo é mais uno que uma família.

Buscar essa unidade cada vez maior seria, portanto, almejar ao fim do estado enquanto tal. O estado é uma unidade de homens quantitativa e qualitativamente diferentes. Diferentemente de uma aliança militar, que depende de sua quantidade, o estado congrega homens de qualidades diferentes. E mesmo entre iguais, a alternância no governo é necessária (o que acarreta uma temporária diferença de status), de modo que todos governem, embora não ao mesmo tempo. 

A cidade não é uma unidade no sentido que é afirmado por Sócrates e outras pessoas. E, por outro lado, a unidade está em uma relação inversa com a auto-subsistência, como mostra o fato de que uma família é mais auto-suficiente do que um indivíduo e um estado mais auto-suficiente do que uma família. Se a auto-suficiência é algo a ser desejado, então a unidade extrema deve ser evitada.

Ademais, ainda que fosse realmente um bem, o ideal da absoluta posse comum esconde em si uma falácia. A unidade perfeita de um estado é alcançada, como diz Sócrates, pelo fato de que todos os homens podem dizer "meu" e "não meu" ao mesmo tempo. Na absoluta comunidade de bens, os homens dizem que possuem "tudo", mas não podem dizer que possuem "cada" uma das coisas, "esta" coisa. 

Na verdade, nada lhes pertence, mas é só a ambiguidade da palavra "tudo" é que torna possível afirmar que "tudo me pertence". As coisas não pertencem a este homem separadamente, distintamente, mas coletivamente. A ambiguidade do sentido de "tudo" dá a impressão de que é possível a um tempo ser dono de "tudo" e de "cada coisa". Possuir algo em comum é justamente não tê-lo como propriedade separada, distinta, privada. 

Tomás de Aquino, em seu comentário à Política, explica:

"Quando se diz, 'Todos dizem: Isso é meu', a proposição tem dois sentidos, uma vez que a palavra todos pode ser interpretada distributivamente ou coletivamente.  Se distributivamente, o sentido seria que cada um individualmente poderia dizer sobre tal e tal coisa: 'Isso é meu'. E então Sócrates teria dito algo talvez verdadeiro, desde que cada um amaria uma e a mesma pessoa como seu filho e, da mesma forma, uma e a mesma mulher como sua esposa. O mesmo é também verdadeiro sobre os meios de subsistência (i.e., propriedade). Mas aqueles que possuem em comum esposas e filhos não vão dizer 'Isso é meu'  nesse sentido. Antes, todos di-lo-ão coletivamente, como possuindo uma e a mesma coisa comum, mas de tal modo que ninguém enquanto individual dirá: 'Isso é meu'. E o mesmo é verdade também se a propriedade deva ser em comum, desde que não pertencerá a ninguém individualmente como algo próprio."

Tomás acrescenta que o raciocínio socrático é sofístico porque os termos "todas as pessoas" e "cada coisa", por sua ambiguidade, tornam o raciocínio contencioso. Por exemplo,

"Se alguém dissesse com relação a duas séries de três coisas que ambas são pares, isso seria verdade se compreendêssemos a afirmação coletivamente, uma vez que as duas séries de três, como conjunto, são pares. Mas se entendêssemos a afirmação distributivamente, ambas são ímpares. Assim, deveríamos dizer que seria bom em um sentido que todos dissessem sobre a mesma coisa que ela é deles, nomeadamente, enquanto todos é interpretado distributivamente.  Mas isso é impossível, pois implica em uma contradição. Pois, pelo próprio fato de que algo pertence a esta pessoa, esse algo não pertence à outra. E se entendêssemos todos coletivamente, não distributivamente, tal seria impróprio (i.e., inadequado para uma comunidade política)."

E há mais problemas, segundo Aristóteles. Aquilo que é comum a um grande número é objeto de pouco cuidado e de pouca estima. Todos são inclinados a negligenciar o cuidado daquilo que também é dever de outrem cuidar. Em famílias, uma quantidade menor de empregados é melhor do que uma quantidade maior, pois um empregado não esperará que o outro faça o que deveria ser feito por qualquer um deles.

A consequência lógica da posse comum de mulheres e crianças é o parricídio, o matricídio, o infanticídio e o incesto, pois, não sabendo quem é o filho de quem e quem são os pais de quem, as desavenças que degeneram em violência serão dirigidas, inadvertidamente, sem que os atores o saibam, contra seus próprios filhos e seus próprios pais. O mesmo ocorrendo com o incesto.

Como  não há mais "pais" e "filhos" no sentido usual e restrito, não há as relações afetivas que esses nomes estabeleciam. As duas qualidades que geram a atenção e o afeto, a de que algo é seu e que esse algo é exclusivamente seu, estarão extintas em um tal estado.

No que tange somente à questão da propriedade de bens - que pode ser tratada separadamente da posse comum de esposas e filhos-, os problemas são análogos. A vida em comum sempre gera muitos problemas, mais ainda quando a posse dos bens é comum. Brigas e desentendimentos serão comuns, como o demonstram aqueles que viajam juntos ou vivem constantemente juntos.

A solução é um meio-termo entre a absoluta posse comum dos bens e a absoluta posse individual. Em certo sentido, a posse deve ser comum, embora, como regra geral, privada. Quando cada um tem seu próprio interesse, os homens não brigam - como o fazem aqueles que têm tudo em comum - e fazem maior progresso, cada um buscando o que lhe convém.

Mas, por razão da bondade (nascida de bons costumes e da lei), com respeito ao uso dos bens, os homens terão posse comum, como já diz o provérbio que "amigos têm tudo em comum". Tendo a propriedade dos bens, o homem colocará algumas coisas à disposição de seus amigos e estes desfrutarão desses bens. O dever do legislador é criar essa boa disposição nos homens.

Acrescenta Aristóteles que imensamente maior é o prazer do homem na posse de algo que é seu. O prazer da propriedade está ligado ao amor de si mesmo, algo que, sendo natural, não pode ser nem mal e nem despropositado. Que fique claro, assevera o filósofo, que não é o amor de si mesmo enquanto tal que é um mal e sim sua perversão, a saber, o egoísmo. É o amor exagerado de si mesmo que é vicioso e não o simples amor-próprio.

A posse comum dos bens elimina duas virtudes: a temperança e a liberalidade. A temperança porque é virtuoso abster-se daquilo que pertence a outrem e a liberalidade porque ser liberal é fazer um uso não egoísta dos bens que se possui. Abolida a propriedade, abolem-se essas virtudes. 

Frequentemente, diz Aristóteles, os homens se deixam levar pela capciosa aparência de bondade da posse comum dos bens e estão inclinados a acreditar em qualquer um que lhes prometa uma maneira mágica de os homens tornarem-se todos amigos. Principalmente quando aquele que promete enumera os males reais e observáveis que, segundo ele, devem-se somente à propriedade dos bens.

Os males em questão, porém, não são fruto da propriedade enquanto tal e sim da maldade humana. Assim como o amor de si mesmo não é por si um mal, da mesma forma a propriedade não o é. São somente suas perversões, seus vícios, que os tornam males. A solução não é eliminar a possibilidade do vício e sim fomentar a virtude, a qual manterá o uso correto dos bens. Não é pela eliminação das condições de liberdade (e, por conseguinte, da possibilidade do vício) que se eliminará o vício, mas pela educação para a virtude.

Todo o erro de Sócrates reside na falsa noção de unidade da qual ele parte. A unidade é característica do indivíduo, da família e do estado. Só que em sentidos diferentes. O estado não pode ser uno como a família é una e o indivíduo é uno. O estado é uma pluralidade que deve ser unificada e tornada uma comunidade real por educação, defende Aristóteles.

O filósofo macedônio acha estranho que Sócrates, o autor de um sistema de educação que pretende criar um estado virtuoso, considere que seja possível chegar ao resultado almejado por meio de regulações desse gênero e não por meio de filosofia, educação ou leis. E, por fim, não deveríamos desprezar a experiência das eras. Na multidão dos anos, se essas coisas fossem boas, elas já teriam sido descobertas. 

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