sexta-feira, 29 de setembro de 2017

"The VVitch" e o cerco insidioso do Mal



"Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo."

MATEUS 4:1

"Wouldst thou like to live deliciously?"

BLACK PHILIP

The VVitch (2015) tem como premissa narrativa a história de uma família puritana do século XVII que abandona sua Inglaterra natal em busca de liberdade de culto no Novo Mundo. Devido a divergências teológicas, Will, o chefe da família, abandona a comunidade religiosa a que pertencia levando consigo seus filhos e esposa para uma região inóspita, nos limites de uma densa floresta.

Todavia, no fundo, trata-se de uma história de iniciação demoníaca de Thomasin, a filha mais velha do casal Will e Katherine. A menina, uma adolescente passando pelas transformações e pelos conflitos da puberdade, é insidiosamente cercada pelas trevas e o conjunto de acontecimentos que se seguem constituem o seu progressivo afastamento da luz e a revelação paulatina de sua eleição .

Evidentemente, ela não é destinada à danação, mas só se é tentado por aquilo a que já se está inclinado volitivamente. Se a palavra divina tem de encontrar solo fértil para frutificar, o mesmo acontece com a semente diabólica. O demônio parece perceber em Thomasin propensões, fraquezas e até mesmo virtudes que podem, sob sua ação dissolvente, converter-se em rendição pactual ao maligno.

O filme, quando observado do final para o início, mostra uma continuidade de eventos que parecem ter sido concebidos e arquitetados por uma consciência cujo objetivo obscuro era afastar Thomasin de todos os laços de proteção natural e torná-la totalmente vulnerável à ação sedutora do mal. É possível perceber, por exemplo, que o início da influência diabólica se dá muito antes do isolamento da família na floresta. 

Will, o pai puritano fervoroso, entra em conflito teológico com sua congregação e prefere o exílio à reconciliação com seus pares. Ele crê que sua interpretação do Evangelho é a correta e acusa seus juízes de serem falsos cristãos. A autoridade deles não se aplica mais a Will. Os juízes, por seu turno, o acusam do pecado original do anjo caído: orgulho. Obstinado, Will corta sua ligação e de sua família com o corpo de Cristo configurado pela comunidade cristã a que pertenciam.

Isto é, a série de eventos desastrosos que seguir-se-ão inicia-se na divisão e no orgulho, as marcas do demônio. Insidiosamente, ele separa a família da comunidade dos homens por meio da teimosia e do orgulho de seu patriarca que não se submete às determinações teológicas de sua congregação. O primeiro laço de proteção natural de Thomasin é cortado.

Will conduz sua família ao isolamento, constrói sua casa em frente a uma inóspita e sombria floresta. Simbolicamente, o afastamento do corpo de Cristo os conduz à proximidade com o indistinto, com o infra-humano, com o mal. A floresta é símbolo do que resiste à ação da forma e da ordem, é o indomado e o rebelde. A resistência à ordem é exemplificada pela tentativa frustrada de Will de construir uma plantação de milho no lugar.

Inadvertidamente, Will abriu as portas ao perigo espiritual e quando seu filho recém-nascido desaparece misteriosa e inexplicavelmente sob os cuidados de Thomasin, tem começo a paulatina dissolução da família. Thomasin afirma que um lobo levou o bebê, mas ela sabe que isso não é verdade. O véu do sobrenatural recai sobre a menina.

A crise e a desconfiança instalam-se e Katherine, a mãe, mergulhada em doloroso luto, manifesta seu rancor contra a filha. Will, amoroso, tenta não culpar Thomasin e chega a vender um cálice de prata da esposa para comprar uma armadilha contra lobos a fim de capturar o animal que matara seu filho recém-nascido. Ele nada conta à sua esposa da venda e acaba obrigando seus filhos a sustentar uma mentira. E, dizem as Escrituras, o diabo é o pai da mentira.

O medo e o rancor aumentam quando Katherine ousa expressar seu medo de que estejam todos amaldiçoados por terem abandonado a sua comunidade religiosa da qual faziam parte. O inverno aproxima-se e a fracassada plantação não sustentará a família. Katherine e Will cogitam entregar Thomasin como criada à alguma família. A menina ouve e teme por seu destino.

Caleb, o filho mais velho, não quer que a irmã se vá. Mas ele, também na puberdade, percebe que dirige olhares impróprios à Thomasin. Ele a vê sendo acusada de bruxaria pelo casal caçula de irmãos, Jonas e Mercy. Estranhamente, eles afirmam que foram informados de que Thomasin é uma bruxa por Black Philip, um enorme bode preto mantido no curral por Will. Mais estranho ainda, o casal de crianças, em seus folguedos, vive a entoar um cântico no qual afirmam que Black Philip é rei do céu e da terra e que tem uma coroa sobre sua cabeça.

Caleb e Thomasin partem para a floresta, mas o rapaz some e só ela retorna. Os pais desesperam-se e no meio de uma discussão Will admite que mentira sobre o cálice de prata. A desconfiança e o rancor da mãe (já propensa a superstições e a radicalismos histéricos) contra Thomasin, vai tomando corpo e a separa de seu marido e de sua filha.

Quando Thomasin vai ao estábulo, encontra Caleb nu e fraco. No dia seguinte, a despeito de todas as orações, ele morre ao fim de um êxtase horripilante que parece misturar influência demoníaca e fanatismo religioso. A mãe sucumbe à dor e a família já não mais existe. O casal de caçulas acusa Thomasin de ser uma bruxa. O pai suplica à filha que confesse suas bruxarias.

Thomasin perdera seu irmão protetor, perdera o amor de sua mãe e agora perdia a confiança de seu pai. Acusada pelas crianças, seu isolamento e seu desamparo são quase perfeitos. Ela acusa as crianças de falar com Black Philip. Transtornado por tantas desgraças, Will tranca Thomasin e seus irmãos caçulas no estábulo.

O corte definitivo dos laços protetores de Thomasin se dá no dia seguinte. Ela acorda em um estábulo devastado, com os animais mortos e seus irmãos caçulas desaparecidos. Ao deparar-se com essa cena, Will é morto por Black Philip. Katherine culpa Thomasin por toda aquela desgraça e avança contra ela. Na luta que se segue, Thomasin mata sua mãe.

Thomasin não só está sozinha, sem família, sem laços, mas também tornara-se uma matricida. Nada mais resta. Nenhuma esperança de redenção ou de salvação. Desesperada, ela está pronta para procurar Black Philip. E, com ele, ela firma um pacto. O que ele promete à Thomasin é o que o tentador sempre promete: delícias.

O que uma jovem puritana poderia desejar a não ser aquilo que lhe foi negado desde sempre? Provar o gosto da manteiga, possuir um belo vestido e conhecer o mundo. Tomados em si mesmos, esses são desejos medíocres, até ingênuos. Mas eles simbolizam desejos universais. A manteiga, o prazer imediato dos sentidos. O belo vestido, o desejo de ser visto e de ser reconhecido por todos, a vaidade. O conhecimento do mundo, o alargamento dos horizontes, a libertação das limitações geográficas, culturais, religiosas e sociais. Em suma, a saciedade, o sucesso e o mundo.

Ela aceita a oferta e o círculo iniciático está completo. Black Philip a conduz para a densa floresta e lá ela toma parte do sabbath negro das bruxas. O filme encerra-se com um êxtase coletivo.

The VVitch é a história de uma inexplicável eleição diabólica e do fracasso em resistir ao cerco e ao apelo das tentações. Thomasin, ao fim de um processo de privações materiais e afetivas lança-se nos braços daquele que lhe oferece abrigo e delícias. Obviamente, a antiga serpente enganadora mente e a vida que espera Thomasin é de uma natureza infra-humana, como ela mesma testemunha no estábulo quando, pela primeira vez, viu uma bruxa alimentando-se de um animal.

Thomasin é o oposto do Cristo que é conduzido ao ermo para lá ser tentado pelo demônio. Jesus rejeita as ofertas do maligno: a saciedade, o sucesso e o mundo. E, mesmo quando todos O abandonam no Getsêmani, quando todos os laços protetores são rompidos, Ele permanece fiel e obediente a Deus. Até à solidão final da cruz.

No Antigo Testamento, Jó, que teve todos os seus bens terrenos retirados por Satanás sob permissão divina, permanece fiel e temente a Deus em meio a todas as suas vicissitudes. No texto sagrado, a ação diabólica coincide com o teste divino na medida em que ambos são oportunidade para a manifestação da virtude do homem santo. Jó a tudo suporta e sua justiça resplandece por meio das privações. Afinal como o próprio demônio aponta, não é fácil ser fiel e agradecido a Deus quando tudo vai bem?

Em The VVitch, não há a clareza do teste divino, somente o contínuo despojamento dos bens terrenos por obra do demônio. Deus é a figura onipresente e, não obstante, a mais ausente por todo o filme, pois, se tudo na família é feito para Ele e em Seu nome, todas as orações, sacrifícios e súplicas a Ele dirigidas parecem quedar sem efeito algum. O único lampejo da presença celeste se dá no êxtase de Caleb, quase indistinto dos frêmitos da alucinação febril.

Em uma certa inversão ontológica, é Deus que parece como uma sombra diante do protagonismo do demônio. O corrupto e não o íntegro, o não-Ser e não o Ser, parecem constituir-se no centro desse mundo sombrio. O destino de Thomasin e de sua família desenrola-se com a inevitabilidade de uma cadeia necessária de eventos. A impressão é que, desde o início, tudo concorre para a danação de Thomasin. O horror de The VVitch é o horror da inexplicável eleição diabólica.
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