sábado, 29 de agosto de 2009

Dostoievski profeta

"Cada um pertence a todos e todos pertencem a cada um. Todos os homens são escravos e iguais na escravidão. (...) Antes de tudo, rebaixa-se o nível da instrução, das ciências e dos talentos. O nível elevado da ciência e do talento só se obtém graças a inteligências superiores, - portanto nada de inteligências superiores. Homens de talento apoderam-se sempre do poder e tornam-se déspotas. E não podem agir de outra maneira; sempre fizeram mais mal que bem. É mister baní-los ou matá-los. Cícero terá a língua cortada, Copérnico os olhos furados, Shakespeare será lapidado. Isso é que é o chigaliovismo. (...) Não há necessidade de instrução, chega de ciência! Os materiais de que já dispomos nos bastarão durante mil anos; o que é importante estabelecer é a obediência. A sede de instrução já é uma sede aristocrática. Mal é permitida a instalação da família e do amor, imediatamente nasce o desejo de propriedade. Haveremos de matar esse desejo: desenvolveremos a embriaguez, a calúnia, a delação; mergulharemos o homem numa devassidão inaudita, destruiremos no ovo qualquer gênio que se esteja formando. Todos serão reduzidos ao denominador comum: igualdade absoluta."

Verkhovensky, em Os Demônios (1871) de FIODOR DOSTOIEVSKI

Em Os Demônios Dostoievski faz um diagnóstico preciso das idéias e motivações dos grupos radicais russos do final do século XIX. Inspirado no caso real do assassínio de um estudante por Niechaiev, líder de um desses grupos, o mestre russo faz desfilar ante o leitor a plêiade aterrorizante dos tipos que compunham aqueles movimentos e das idéias que, como demônios, os habitavam.

Pela boca de Chigaliov, o teórico do grupo, Dostoievski enuncia os objetivos e os métodos que seriam usados nas revoluções e ditaduras que iriam tomar a Rússia e boa parte do mundo no século seguinte.Partindo da liberdade absoluta chega-se a servidão absoluta. Um décimo será livre além dos limites e manterá o resto em servidão sem limites. Eis a essência do chigaliovismo. Um rebanho tolo e sem vontade transformado pela mediocrização contínua.

Ódio pelo talento e pelo espírito, considerados como pretensões aristocráticas ofensivas ao igualitarismo do rebanho. Como é possível haver inteligências superiores, talento e mérito? O igualitarismo extremo configurar-se-á necessariamente em uma negação da Natureza. E se esta insiste em criar diferenças, elas deverão ser devidamente anuladas por meio de uma nova organização social que sufoque o gênio e force a igualdade na mediocridade. Em vez de justiça, haverá nivelamento e servidão.

E o assassínio de Chatov, o crime praticado por motivos políticos e, por isso mesmo, absolvido em nome da escatologia da "causa", assim como o crime perpetrado por Niechaiev, pressagia a massa quase infinda de cadáveres e de covas coletivas que assombraram o século XX. Como disse John Gray, os czares eram culpados de muitos crimes. Mas o genocídio com o objetivo de aperfeiçoar a humanidade não era um deles. Esse é um projeto moderno. E Dostoievski parecia saber exatamente para onde ele conduziria.

Nada menos que profético.

2 comentários:

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
R. Oleniski disse...

Obrigado pelo toque atencioso!

Abração, Refrator!

;)