domingo, 2 de abril de 2017

Ilíada, XVI: a obstinação de Aquiles e a morte de Pátroclo


Sono (Hypnos) e Morte (Thanatos), sob o olhar de Hermes, carregam o corpo de Sarpédon, filho de Zeus

"Cego! Se houvesse prestado atenção ao conselho de Aquiles,
provavelmente teria escapado da Morte sinistra.
Mas a vontade de Zeus é mais forte do que o arbítrio dos homens,
pois fácil lhe é pôr em fuga o mais bravo e negar-lhe a vitória,
ainda que fosse ele próprio que houvesse a lutar instigado.
Brio, desta arte, ele agora, no peito de Pátroclo inflama."

ILÍADA, XVI (tradução de Carlos Alberto Nunes)


Ao perceber que os troianos estão a ponto de queimar os navios aqueus, Pátroclo interpela Aquiles para que retorne à pugna sangrenta, resolvendo-se finalmente a auxiliar seus companheiros de luta. No diálogo, Pátroclo pergunta a Aquiles se ele não estaria evitando a batalha por causa da profecia de sua mãe, Tétis, de que, se continuasse a combater em Tróia, excelsa glória alcançaria, embora morresse em combate.

Veementemente Aquiles nega a suspeita de Pátroclo e afirma que seu motivo verdadeiro de retirar-se das batalhas é a injustiça contra ele praticada por Agammemnon ao tomar-lhe a bela Briseis, seu espólio de guerra. É interessante notar como a fala de Pátroclo indica a suspeita de que Aquiles pode não estar sendo totalmente movido pelo desejo da justa restituição da honra externa, como ele afirma.

Há ambiguidade nas ações de Aquiles e, principalmente, em sua recusa de participar da luta contra os troianos. Isso significa que Aquiles, em alguma medida, está dividido, que em seu imo peito motivos conflitantes influenciam sua decisão. A cólera contra Agammemnon, a recusa das Preces e, agora, a obstinação em continuar retirado mesmo na iminência da destruição da frota aquéia assumem uma conotação mais sombria quando vistas sob a luz da fala de Pátroclo.

Diante da negação de Aquiles, Pátroclo pede-lhe que, ao menos, permita que ele lidere o contra-ataque aqueu vestido com sua armadura e empunhando suas armas divinas. Aquiles consente, mas adverte Pátroclo de que ele deve restringir-se a expulsar os troianos da praia onde estão os navios aqueus, salvando-os da destruição pelo fogo. Ele não deve, levado pelo ímpeto guerreiro, avançar  e conduzir a luta até os muros de Tróia, pois, ao fazer isso, um deus poderia descer do Olimpo para proteger os troianos.

Pátroclo parte para a guerra e expulsa os troianos da praia, salvando a frota aquéia. Não contenta-se com isso e, levado pelo calor da pugna sangrenta, prossegue a perseguição aos troianos até os portões de Ílion. Sua glória aumenta quando consegue abater com um dardo o lício Sarpédon, filho de Zeus, de quem o senhor do Olimpo ordena a Febo Apolo e aos irmãos gêmeos Sono e Morte que retirem o corpo do campo de batalha e o entreguem na Lícia para que receba os ritos fúnebres apropriados.

Inebriado, Pátroclo investe três vezes contra os muros de Tróia e é repelido por Apolo. Na quarta, o deus, terrível, o adverte de que a ele não era dada a glória de tomar a cidade troiana. E nem a Aquiles, muito mais valoroso do que ele. Pátroclo recua, temeroso de incorrer na ira de Apolo. Mas seu destino já está decidido. Sua ousadia será castigada, como lhe advertira Aquiles.

Ao entardecer, Pátroclo investe impetuosamente três vezes contra os troianos. Gabriel Germain, em seu Homère et la Mystique des Nombres, afirma que,

"Na Ilíada, o 3 exprime de modo contínuo (e é o único a fazê-lo) as tentativas de um personagem que, na quarta vez, atingirá seu intento, ou, mais frequentemente, falhará. (...) Pátroclo tenta três vezes atingir a muralha de Tróia. Na quarta tentativa, Apolo o impede. Da mesma forma, após haver lançado-se três vezes sobre os troianos, o herói sucumbe na quarta tentativa."

A morte de Pátroclo exteriormente virá pelas mãos de Heitor. Empenhado em sua quarta investida contra os troianos, Pátroclo é estapeado nos ombros e nas espáduas por Febo Apolo que, em seguida, retira-lhe o elmo, quebra-lhe a lança, faz cair seu escudo e, por fim, o despe de sua couraça. Heitor, percebendo sua fraqueza, finca-lhe a sua lança. Antes de morrer, Pátroclo diz a Heitor, vaticinando, que sua morte pelas mãos de Aquiles também estava próxima.

A ira de Aquiles e sua recusa em voltar aos combates são as causas indiretas da morte de Pátroclo, seu amado companheiro. A recusa das Preces cobra seu preço e, de certa forma, o sacrifício de Pátroclo dará fim à obstinação de Aquiles. E, com isso, aproxima-se o fim da longa campanha aquéia.

A destituição das armas e da armadura de Pátroclo por Apolo indicam simbolicamente a impossibilidade de tomar o lugar de outro homem naquilo que lhe é próprio. Pátroclo não pode ser Aquiles e a tentativa deste de enviar seu companheiro para realizar seu dever termina em desgraça para ambos. De certo modo, há uma usurpação em curso, embora consentida. Caberia a Aquiles e não a Pátroclo restaurar o equilíbrio da balança da guerra.

Para isso, contudo, Aquiles deveria abandonar sua obstinada recusa em juntar-se aos combates. Ainda sob efeito da cólera, Aquiles consente somente em enviar seu amigo em seu lugar, usando suas armas e sua armadura a fim de que os troianos tomassem Pátroclo pelo grande Aquiles. O estratagema funciona em parte, mas Pátroclo é incapaz de controlar seu ardor e esquece a advertência de Aquiles de que não buscasse perseguir os troianos até os muros de sua cidade.

Isto é, o próprio Aquiles estabelece os limites que o separam de Pátroclo. É possível tomar o lugar de um grande herói, mas somente até certo ponto. Tornar-se externamente Aquiles não é o mesmo que ser Aquiles e logo chega o momento em que o limite impõe-se tragicamente para aquele que iludiu-se pensando poder ultrapassá-lo.

Apolo adverte Pátroclo de que nem mesmo ao grande Aquiles, mais valoroso que ele, é dada a glória da tomada de Tróia. Pátroclo, nos muros de Tróia, tenta tomar de assalto a glória que é de outro homem. Os deuses restabelecem os limites intrínsecos das coisas e o condenam à morte por sua desmedida. A semelhança externa com Aquiles é desfeita pela retirada das armas e da armadura e Pátroclo enfrenta o seu destino com as forças que lhe são próprias.

Um comentário:

Carlos Alberto disse...

Muito bom, trabalho! Obrigado pela postagem!