"Há uma experiência inicial que está implicada em todas as outras, e que dá a cada uma delas sua gravidade e sua profundidade: é a experiência da presença do Ser. Reconhecer essa presença é reconhecer num mesmo ato a participação do eu no Ser."*
LOUIS LAVELLE, "La Présence Totale", p. 20 (tradução minha do original em francês)
A obra La Présence Totale, do filósofo francês Louis Lavelle (1883-1951), caracteriza-se por uma formulação mais simples dos temas atacados no primeiro volume de sua quadrilogia La Dialectique de l'Éternel Présent, considerado de difícil compreensão pelo público educado. Lavelle tenta ali expressar a riqueza do conteúdo da experiência primária do ser humano: a presença do Ser.
Nada há de mais íntimo a nós que a presença do Ser. Tudo o que conhecemos, experimentamos, desejamos, buscamos, é sempre, sob quaisquer circunstâncias, algum tipo de ser. Em toda e qualquer relação que estabelecemos com qualquer coisa que seja, e inclusive com nosso próprio eu, está implicada a experiência primordial com algo que é, que existe em algum sentido e em algum nível. Independente do modo ou do tipo de ser diante do qual estamos, sempre estamos diante de uma variação do Ser.
Nossos interesses, desejos e curiosidades logo nos fazem abandonar essa experiência elementar em nome da busca por esta ou por aquela coisa existente. Nesse movimento, nossa consciência perde sua força de penetração e sua profundidade. A filosofia objetiva propriamente lembrar e retornar a essa experiência, analisá-la, mostrar sua presença em todas as nossas operações na qualidade de fonte e de razão de cada uma delas.
No capítulo I, Lavelle observa que isolar a presença do Ser em toda a sua pureza exige "uma certa inocência (une certaine innocence), um espírito liberado de todo interesse e mesmo de toda preocupação particular". A azáfama da vida, com seus inúmeros compromissos, deveres, urgências e solicitações, impede o homem comum de se aprofundar no sentido da ligação imediata entre o ser e seu eu que fundamenta cada um dos seus atos e concede a eles seu valor.
O filósofo francês ventila aqui um tema que aparecerá em outros momentos dessa obra: o interesse impede uma compreensão profunda do sentido da presença do Ser. Certamente não se trata de uma simples e tola condenação moral do interesse enquanto tal. A questão é que quando estamos interessados em algo, o que quer que seja, estamos presos a uma coisa entre outras coisas, e não atentamos àquilo que funda a própria existência disso que almejamos. Perdemos de vista o caráter geral e fundamental que essa coisa apresenta pelo simples fato de existir.
A atenção desejosa dirigida ao tipo de ser ou à coisa na sua singularidade impede que percebamos a comunidade que une todos os seres por serem seres. Em termos epistemológicos, o pensamento que se dirige exclusivamente ao objeto diante do qual está postado jamais consegue operar a abstração que torna possível compreendê-lo em sua essência, menos ainda compreendê-lo naquilo que há de mais geral que toda e qualquer forma que a existência possa assumir.
Não seria errado afirmar, cremos, que é necessário que haja alguma ascese intelectual para que o sentido da experiência originária da presença do Ser apareça em sua plenitude à consciência do homem. Em que pese o fato de que a postura utilitária ou interessada tenha seu lugar justificado em certo âmbito dentro da estrutura da realidade, não deixa de ser igualmente verdadeiro que a postura filosófica, na medida em que busca compreender os fundamentos da realidade, não pode adotar senão uma posição desinteressada diante das coisas.
A razão disso está em que a investigação empreendida pela filosofia acerca da presença do Ser, por definição, não é cumulativa. Isto é, não almeja acumular conhecimentos novos sobre realidades antes desconhecidas tal qual um colecionador adiciona novos exemplares à sua já vasta coleção. Não ganhamos nenhum conhecimento a mais ao dedicarmos com afinco nossa atenção e nossos poderes intelectuais a essa experiência primordial.
A investigação fundamental não aumenta a diversidade de nosso conhecimento. Justamente porque o fundamento recolhe nele mesmo todos os fenômenos que dele dependem, a sua compreensão não se refere a isto ou àquilo individualmente, e nem resulta em conhecimentos específicos acerca deste ou daquele tipo de ser. A compreensão fundamental não serve para nada em termos práticos, e por isso é geralmente abandonada tão logo os interesses e as solicitações particulares se apresentam ao homem.
Todavia, aquele que adquire uma consciência clara da absoluta solidariedade do Ser e do eu como o ato mesmo da vida, não consegue afastar disso seu pensamento. Ele não alcança um conhecimento novo sobre alguma coisa que desconhecia, tampouco é apresentado aos meios para a aquisição do que quer que seja. A questão é qualitativa, não quantitativa. A sua consciência é iluminada e sua compreensão da realidade é aprofundada.
Há quem possa considerar que essa experiência fundamental é estéril, e que se deva logo abandoná-la em nome de objetivos outros. Lavelle afirma que nossa vida reencontra sua seriedade essencial ao renovar seus liames com o coração da realidade. O pensamento se enriquece pela percepção da identidade que existe entre seu próprio ser e o ser daquilo sobre o qual se debruça, e se dispersa quando se inclina sucessivamente a este e depois àquele objeto. A razão aqui é inversa.
A consciência se aprofunda na medida em que passa da multiplicidade das manifestações da realidade à unidade que subjaz a todas essas manifestações. A aquisição em termos de enriquecimento de conteúdo na lida com as coisas, por seu turno, exige algum esquecimento da identidade fundamental das coisas. O aparente esvaziamento da consciência na experiência fundamental da presença do Ser corresponde a um aprofundamento no princípio de toda e qualquer realidade possível.
O capítulo II, no qual o filósofo francês discorre sobre a cumplicidade da vida do espírito com o Ser, explica que o descrever a experiência primeira na qual o eu se inscreve no Ser não adiciona qualquer coisa a essa experiência, mas permite mensurar sua riqueza e fecundidade. Essa investigação, no entanto, quando é realizada, possui um caráter necessário distinto das necessidades exterior e lógica. O Ser é anterior às solicitações do exterior e à natureza da lógica.
A necessidade é um conceito técnico da filosofia que significa basicamente "aquilo que é assim e não pode deixar de ser assim" ou "aquilo que tem que ser assim tal com é". Existem níveis diferentes de necessidade, com maior ou menor grau de cogência ou obrigação. No caso da necessidade hipotética, o vínculo de necessidade só se estabelece se a condição inicial se realiza. Por exemplo, em relações práticas entre meios e fins, os meios só serão obrigatórios se os fins forem assumidos. Se tenho o objetivo de fazer um omelete, então sou obrigado a reunir e a utilizar todas as condições e todos os ingredientes necessários e suficientes para que um omelete surja na realidade.
Pode-se igualmente raciocinar do efeito à causa. Dado que João não existia e passou a existir, então alguma causa real deve tê-lo trazido à existência: seus pais. A inferência parte da realidade de João para determinar a sua causa. É uma necessidade hipotética porque nada exige que João devesse existir. Um vez que seja verdade que ele existe, então é preciso haver alguma causa que o tenha tornado real.
Contudo, seria uma falácia (non sequitur) fazer a inferência inversa, dizer que a causa de João (seus pais) estava obrigada a trazê-lo à existência. Não se segue do fato de que um efeito necessita de uma causa para existir que a causa necessariamente deve fazer existir o efeito. A necessidade exterior meios-fins é hipotética nesse sentido, só se estabelece se um determinado objetivo for assumido. Comer é uma necessidade que se estabelece quando o ser vivo vem à existência e almeja manter-se vivo.
Se digo que a porta da minha casa é azul, faço uma afirmação de um fato contingente, algo que muito bem poderia ter sido diferente. Sem contradição, posso afirmar que a porta poderia ter sido vermelha. Contrariamente, não há como afirmar que a porta seja ao mesmo tempo e no mesmo sentido azul e vermelha. Afirmar que a porta é azul é somente declarar o fato de que a esta porta é assim sem implicar nenhuma proibição lógica de que ela pudesse não ser assim.
A necessidade lógica possui outro nível de cogência. Ela se aplica à validade dos raciocínios, aos liames que unem obrigatoriamente as premissas à conclusão. Se afirmo que Sócrates é homem e que homens são mortais, não há outra conclusão possível a não ser que Sócrates é mortal. A forma lógica (A é B, B é C, logo, A é C) é um raciocínio perfeito cuja necessidade não depende da verdade das premissas (se Sócrates é ou não homem ou se homens realmente são mortais). Qualquer outra conclusão que não esteja contida implicitamente no conteúdo objetivo das premissas é necessariamente contraditória.
Ora, Lavelle diz que a necessidade que encontraremos na investigação sobre os liames que unem o eu ao Ser não é de ordem exterior ou lógica. Embora o filósofo francês não use o termo, cremos que podemos denominar esse gênero de necessidade de metafísica. A necessidade exterior e a necessidade lógica são derivadas e limitadas. A primeira supõe a existência da sensibilidade, enquanto a segunda se ocupa do acordo simples entre as noções. Elas não podem ser originárias.
A necessidade metafísica é anterior às duas. Anterioridade é outro termo técnico da filosofia, e significa aquilo que vem antes de outro num sentido temporal ou num sentido fundamental. A anterioridade metafísica não é temporal, não se refere a algo que vem antes de outro no tempo como as duas horas vem antes das três horas ou como o vencedor da corrida vem antes do segundo lugar. A necessidade metafísica é anterior enquanto fundamento de outro.
Se podemos dizer que Sócrates é mortal a partir dos fatos de que Sócrates é homem e de que homens são mortais é porque o pertencimento real de Sócrates à classe dos homens o dota das mesmas características essenciais dos membros dessa classe. O fundamento da mortalidade de Sócrates está no seu pertencimento real à classe dos homens que essencialmente são mortais. É óbvio que raciocinamos passando de uma premissa a outra no tempo. Porém, Sócrates não é primeiro homem, depois homens são mortais, e só num terceiro momento Sócrates é mortal.
O fundamento do raciocínio está na verdade de que Sócrates é mortal precisamente porque é homem. A sua humanidade é, portanto, anterior à sua mortalidade. Da mesma forma, a necessidade metafísica da qual fala Lavelle é anterior às necessidades exterior e lógica porque estas encontram seu fundamento naquela. Ela não nos constrange de fora nem pelas circunstâncias externas e nem pelas regras da razão.
Essa necessidade é muito mais profunda porque mostra a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas mesmas". Não se trata de uma mera conformidade ou correspondência entre o que pensamos e a essência das coisas. Em quais condições e até que ponto o que pensamos e afirmamos sobre as coisas se adequa às suas naturezas específicas são questões que estão no âmbito da gnosiologia ou teoria do conhecimento. Por definição, o conhecimento nesses termos implica uma distinção entre nosso pensamento e a coisa sobre a qual pensamos, que é o que permite a existência da possibilidade do erro.
Lavelle se refere a uma necessidade tão fundamental que não nos permite errar porque revela a identidade essencial do Ser puro e de nosso ser participado. O eu, ao estar diante da presença do Ser, percebe que ele também é ser, e que há uma identidade fundamental entre ele e o Ser no ato mesmo de ser. Essa experiência é o fundamento último e insofismável de toda e qualquer outra experiência, seja de pensamento ou de ação, sendo a sua necessidade anterior às necessidades que vem do exterior ou das leis da lógica que só se estabelecem se houver seres na realidade.
É por isso que o Ser é o fundamento da lógica e não o contrário. A lógica se estabelece a partir da limitação primeira que é a afirmação da realidade de algo que, por ser ele mesmo, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. O fundamento ontológico do princípio de não-contradição é o fato de que se A se afirma na realidade como existente, então A não pode ser ao mesmo tempo qualquer outra possibilidade da realidade que não seja A.
Não obstante, anterior à distinção entre A e não-A, entre o eu e as coisas, há uma identidade primária que une tudo e que permite a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas elas mesmas". E, ao perceber essa identidade, estaremos realizando nosso próprio ser na medida em que nós somos caracterizados pela capacidade de realizar justamente esse tipo de investigação. O autor do livro, o próprio Louis Lavelle, não pode senão sugerir e facilitar a experiência do leitor que deverá, ele mesmo e mais ninguém, realizar os atos espirituais que lhe revelarão a fundamental presença do Ser nele e nas coisas.
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* No original francês, Lavelle utiliza a forma l'être, que seria traduzido como "o ser" sem a primeira letra maiúscula. Opto por usar "Ser" com letra maiúscula para ajudar na distinção entre este ser e o Ser tomado na sua generalidade como o modo primário de qualquer coisas que venha a ter alguma realidade.
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