sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte 1

"A fina flor dos guerreiros troianos, os homens mais fortes conduze à Itália. Com gente mui dura e de trato difícil terás de haver-te no Lácio. Porém, antes desce às moradas do torvo Dirte."

ANQUISES, Eneida, Livro V, 730 (trad. Carlos Alberto Nunes)

A descida do herói ao mundo subterrâneo, a catábase (κατάβασις), é um tema mitológico tradicional. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Odisseus (Ulisses) descendo ao Hades para consultar o vidente cego Tirésias na Odisséia. Também o piedoso Eneias desce ao Orco na Eneida a fim de encontrar seu venerável pai Anquises. 

Após o trágico episódio da imolação da rainha Dido ocasionado por sua partida de Cartago, Eneias chega à Sicília, onde é recebido pelo rei Acestes (Livro V). Ali seu pai Anquises havia sido enterrado há um ano, e o herói troiano realiza os ritos fúnebres devidos, e comemora o progenitor com jogos. Os heróis defuntos são tradicionalmente homenageados nos ritos fúnebres com certames, como se testemunha nos funerais de Pátroclo na Ilíada.*

Os jogos são expressões do agon (ἀγών, no grego), isto é, o esforço, o combate, e, sobretudo, a proeza, apanágio das castas guerreiras. Competições navais, corridas a cavalo, desafios de arquearia e lutas de pugilismo entre os companheiros de Eneias são seguidos pela distribuição dos prêmios valiosos aos vencedores. Os guerreiros manifestam seu valor nas proezas bélicas e nos certames atléticos.

Findos os jogos, Eneias vai ao sepulcro de Anquises e verte ali duas crateras cada de vinho, de leite e de sangue, e deposita flores. Os ritos dedicados aos Di Manes, os defuntos, no aniversário de sua morte eram parte da religio romana da época de Virgílio. Uma serpente enorme com sete anéis sai do túmulo, dá sete voltas nos altares, prova as oferendas e retorna ao lugar de origem. Eneias não sabe se a aparição é o gênio do lugar ou se é uma mensageira de Anquises. Imola em seguida cinco ovelhas, cinco porcos e cinco touros negros.

genius (daimon grego) era o poder de ação de uma pessoa, de um objeto ou de um lugar constituído no seu nascimento ou na sua criação, e era geralmente representado por uma serpente ou por um homem togado carregando uma cornucópia. A dúvida de Eneias era se se tratava da aparição do genius do lugar onde estava o sepulcro ou se de uma mensageira de seu pai. A ligação da serpente com os mortos vem dos gregos que acreditavam que os falecidos podiam se manifestar na forma de cobras.

O combate do herói (ou do deus) com a serpente (ou dragão) rebelde à imposição da forma e da ordem é um tema cosmológico tradicional. O ritus é sempre um ato ordenador (Ṛta, em sânscrito, é ordem), e Eneias é o herói que executa o rito devido. O morto é apaziguado, as forças rebeldes são domadas, e a serpente que sai do túmulo não ataca nenhum dos presentes, age ordenadamente e retorna ao seu lugar. É um símbolo do poder cosmogônico do sacrifício, compreensão que remonta aos Vedas.

Os sete anéis e as sete voltas em torno dos altares têm outros significados simbólicos. O sete era considerado um número sagrado entre os pitagóricos, "aquele que traz a conclusão", o que completa os ciclos e dá a forma final aos entes, aquele que reúne e fecha numa unidade indissolúvel os elementos que compõem as coisas. Será graças à consulta a Anquises que a peregrinatio marítima de Eneias encontrará seu termo com o desembarque na costa da Itália. A primeira parte da própria Eneida tem seu fim no episódio da catábase.**

Há sete anos a frota troiana vaga pelos mares. O sentido simbólico geral é de desfecho, de encerramento de um ciclo. Chegou o momento certo (καιρός) para a partida de Eneias da Sicília. Para tanto, ele terá de deixar para trás os elementos recalcitrantes e inadequados à nova realidade que está por vir. Enviada por Juno, a mensageira dos divos, Íris, instiga as matronas insatisfeitas a incendiarem os navios troianos. As velhas representam forças arcaicas pertencentes ao ciclo anterior que não têm lugar nos vasos que conduzirão ao novo ciclo. 

Uma vez mais, o herói deve decidir entre fixar morada no lugar onde se encontra ou seguir as promessas divinas. Quatro naus incendiadas estão perdidas. Jupiter, invocado pelas orações de Eneias, intervém lançando sobre a terra uma tempestade desmesurada (tempestas sine more) que apaga o fogo das naves restantes. O deus supremo, Iuppiter omnipotens, inunda o mundo com um dilúvio, mas assegura a passagem do herói numa embarcação.

"Nate dea, quo fata trahunt retrahuntque, sequamur; 
quidquid erit, superanda omnis fortuna ferendo est"

"Nascido da deusa, sigamos o Fado quer conduza para lá ou para cá; o que quer que aconteça, é preciso superar a Fortuna suportando tudo" diz Nautes, o ancião versado na arte dos augúrios, aconselhando Eneias a deixar as velhas e os inválidos na Sicília, onde seria fundada uma cidade nomeada Acesta em homenagem ao rei Acestes. Sob o manto negro da noite, a fim de dirimir todas as suas dúvidas, a sombra (umbra) de Anquises vem exortar o filho a seguir o conselho de Nautes. Eneias deve deixar os recalcitrantes para trás, partir para o Averno, descer ao Orco acompanhado da sibila de Cuma, e ali encontrá-lo para saber o que o aguarda na Itália.

Eneias realiza os ritos sagrados de fundação da cidade. Com uma charrua, risca seus limites. Virgílio antecipa em Eneias a tradição segundo a qual Rômulo, séculos depois do troiano, cavou com uma charrua os limites de Roma. O primeiro ato de Rômulo foi cavar o mundus, o poço circular que ligava o reino dos vivos ao dos mortos, e no qual eram depositados as primícias das colheitas. O mundus era fechado por uma pedra, só sendo aberto nos dias em que era franqueado o acesso dos Di Manes ao domínio dos viventes. 

O sulco circular feito pelo arado estabelecia o pomerium, o limite sagrado da cidade. Eneias ergue um templo dedicado à sua mãe Venus num monte alto (Axis Mundi) e destina ao túmulo de seu pai um bosque um sacerdote. A nova Troia será governada por Acestes que terá como seus súditos as velhas, os inválidos e a gente não desejosa de glória. Acestes representa o rei do ciclo que finda, reina sobre as realidades que foram esgotadas, e que, portanto, não serão passadas ao novo ciclo.

A frota troiana não parte da Sicília sem que antes Eneias, com a cabeça coroada por folhas de oliva (ritus graecus), realize os devidos sacrifícios aos numes marítimos, Erix e Netuno (Neptunus). O mar é símbolo do amorfo, do caldo das potencialidades, e possui, a depender do ângulo, tanto o sentido positivo das possibilidades auspiciosas, regeneradoras e benéficas quanto o sentido negativo do caos dissolvente e da desordem. O herói precisa novamente apaziguar as forças rebeldes da realidade. O rito sacrificial cumpre esse propósito ordenador.

Venus, a mãe de Eneias, suplica a Netuno que permita ao filho chegar em segurança ao seu destino. O senhor dos mares garante a realização do desejo da diva, mas adverte que um dos troianos perderá a vida em pagamento dessa dívida. Palinuro, o timoneiro e guia da frota, é visitado à noite por Somnus (Hypnus grego), deus do sono, que, assumindo a aparência de um amigo, tenta convencê-lo a deixar o leme e adormecer. Ele não cede, diz que a calmaria não o engana, e que vai permanecer no comando da nave para garantir a segurança de Eneias e de seus companheiros.

Somnus lança sobre Palinuro água do Lethes, o rio do esquecimento situado no Orco (Hades). Ato contínuo, o homem desfalece e cai nas águas, deixando a nau sem guia. Percebendo a ausência do amigo, o próprio Eneias assume o comando, e lamenta a sua trágica morte, condenado a ficar insepulto e sem nome. O afogamento de Palinuro foi o preço pago pela proteção dada por Netuno à frota. Os divos dão e tiram segundo seus desígnios, e os destinos humanos seguem um curso que é decidido nas instâncias superiores da realidade. 

Não obstante, Palinuro simboliza o homem que almeja guiar o navio ao próximo ciclo sem que seja o eleito pelas forças divinas. Ele desconfia da calmaria alcançada pela eficácia do rito, quer tomar para si a responsabilidade de assegurar o bom termo da viagem de Eneias. Não são os homens que garantem a passagem ao novo ciclo. O desafortunado Palinuro desce às águas dissolventes, nas quais fica insepulto e perde seu nome, isto é, sua identidade neste plano da realidade, de modo análogo às almas descidas ao Hades que perdem sua memória ao beberem da água do rio Lethes.

Célere, Eneias dirige sua frota à Cuma, no continente italiano, onde se encontra o Averno, a entrada do Orco. Ali o herói fará a sua catábase guiado nos Infernos pela sibila, sacerdotisa de Apolo, deus da profecia e das purificações.

(continua na próxima postagem)
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** Sob outro ângulo, os sete anéis talvez simbolizem os sete corpos celestes visíveis (Sol, Lua, Vênus, Júpiter, Marte, Mercúrio e Saturno), e as sete voltas em torno dos altares representem o Cosmos que tem seu centro no divinoAs revoluções celestes que marcam o tempo, a cronologia, cujo senhor é o sétimo planeta, Saturnus (Cronos, para os gregos). 
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