domingo, 14 de junho de 2020

Luke Skywalker e o simbolismo iniciático do herói - parte 1 - O Chamado


"This is the weapon of a Jedi Knight. Not as clumsy or random as a blaster. An elegant weapon, for a more civilized age."

OBI WAN KENOBI, Star Wars: A New Hope, 1977

Luke Skywalker, o herói da trilogia inicial de ficção científica Star Wars nasce em um planeta periférico e desértico, Tatooine, localizado em uma galáxia dominada pelo Império Galático. Órfão, ele é criado por seus tios em uma pequena fazenda. As informações sobre seus pais  são esparsas e resumem-se a vagas referências à impetuosidade de seu pai, um piloto. As trocas de olhares entre os tios do jovem quando este pergunta sobre os pais dão a entender que Luke é mais do que aparenta e que eles temem que seu destino esteja ligado à sua ancestralidade.

A narrativa segue um tema mitológico comum, o do príncipe esquecido ou desconhecido: um jovem nobre que, por circunstâncias adversas, é expulso ainda em tenra idade de sua terra natal, e que, esquecido de suas origens, vive sua vida como plebeu em condições humildes até que eventos ou agentes externos o conduzem a reconhecer sua origem nobre e a retomar seus direitos de nascença. No âmbito da mitologia grega, o reconhecimento da própria nobreza pode ser catastrófico, como no caso do rei Édipo de Tebas. 

O destino de Luke é indicado também pela insatisfação interior que o aflige diante da vida modorrenta da fazenda. Ele sente que seu destino ultrapassa os limites exíguos de sua situação atual. Como seu sobrenome indica, o seu caminho é celeste. O seu caminho, Tao (道), é o Céu (天). Símbolo tradicional, o Céu representa a suprema paternalidade divina em diversas culturas, como Dyáuṣ Pitṛ́  (Pai do Céu) no Rig Veda, e Zeus e Jupiter nas mitologias grega e romana, respectivamente.

O Céu intervém em sua vida por meio de dois andróides vindos do espaço, R2D2 e C3PO, que trazem uma mensagem que, aparentemente, não é endereçada a ele. O grande chamado esconde-se nos pequenos atos, como a negociação mundana de máquinas agrícolas. Tudo acontece dentro da rotina e da normalidade. Luke compra os andróides sem saber que essa decisão seria o primeiro passo de sua caminhada na Via. Até este momento, o Céu encarrega-se de fazer chegar a Luke os emissários do chamado.

Os andróides o conduzem ao encontro do mentor. Na Odisséia, Mentor era o ancião a quem Odisseus confiou sua casa e seus pertences e, posteriormente, quem conduz Telêmaco, filho de Odisseus, na busca por notícias de seu pai, desaparecido desde a guerra de Tróia. Coincidentemente, Obi Wan Kenobi também é portador de notícias sobre o pai de Luke, Anakin Skywalker, além de guardar e passar ao jovem a herança de seu pai, o sabre de luz. Em certo sentido, Obi Wan conduzirá Luke em uma busca por seu pai, pois Anakin é dado como morto desde as Guerras Clônicas, como Odisseus desde a guerra de Tróia. Ainda sem o saber, Luke partirá em uma jornada que, em breve, revelará que seu pai não só está vivo, como ele não é quem Luke imagina.

Obi Wan Kenobi salva a vida de Luke e o conduz à sua casa. Ele vive no deserto, longe da azáfama do mundo, isolado como um monge ou um anacoreta do deserto. Aqui manifesta-se o aspecto religioso-monástico de Obi Wan. Todavia, ele não é um monge comum. Ele é um monge-guerreiro, como os cavaleiros hospitalares e os cavaleiros templários na Idade Média ou os sohei, monges-guerreiros budistas japoneses. Cumpre recordar que é atribuído a um patriarca budista indiano, Bodhidharma, a paternidade das artes marciais chinesas.

A um só tempo, Obi Wan possui a autoridade espiritual dos sacerdotes e o poder secular dos guerreiros. Sua vestimenta é composta por um kimono branco japonês sobre o qual repousa um manto com capuz, como o de um monge cristão. Esses dois aspectos, o monge e o guerreiro, aparentemente opostos e inconciliáveis, estão em harmonia na pessoa de Obi Wan. Ele representa uma antiga linhagem de monges-guerreiros extinta naqueles tempos de decadência moral e espiritual. Obi Wan oferecerá a Luke a admissão nessa linhagem e a responsabilidade de reavivar a ordem Jedi e os seus valores eternos.

A proposta de Obi Wan a Luke só acontece como resposta à uma motivação externa. O Céu enviou os mensageiros e estes entregam a mensagem que, aparentemente apenas, dirige-se ao Jedi idoso. A  mensagem da princesa Leia guarda um sentido simbólico: tradicionalmente, a mulher detém o tesouro, como a donzela acastelada e aprisionada por um dragão que guarda um tesouro a espera de um herói. O tesouro de Leia são os planos da Estrela da Morte, isto é, os meios para destruir o império vigente do mal.

Tudo se passa como se o herói a quem se destinam o chamado e o tesouro fosse Obi Wan e não Luke. Há uma ocultação, pois ainda não é o momento certo, o kairós, da confirmação da eleição do herói. Ocorre que Obi Wan é idoso e pede a Luke que o acompanhe em sua missão. O cavaleiro promete treiná-lo no Caminho (Tao) da Força e entrega ao jovem o sabre de luz, a espada de seu pai Anakin. A oferta de presentes ao herói ou ao santo é tradicional na mitologia e nas tradições religiosas, como as armas ofertadas por Atena a Aquiles na Ilíada e os dons ofertados a menino Jesus pelos reis magos.

A espada é símbolo óbvio da via guerreira, mas também de penetração espiritual. Ela separa e penetra, distingue o verdadeiro do falso, o bem do mal, o justo do injusto. Erguida, simboliza o Axis Mundi, o eixo que liga o Céu e a Terra, e a mente imóvel que não oscila, como na imagem do Fudo Myoo na tradição budista japonesa. A espada indica comprometimento, disciplina, força e retidão. Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; E assim os inimigos do homem serão os seus familiares (MT 10: 35,36).

O primeiro chamado de Luke é o de aprendiz e de escudeiro de um cavaleiro experimentado, nobre e virtuoso. Mas o jovem é provinciano, acredita que tem responsabilidades para com seus pais adotivos, e recusa o convite. A voz dos tios é a da prudência daquilo que é familiar, seguro e umbilical e que, muitas vezes, impede o homem de crescer na direção de horizontes espirituais mais vastos.

Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim. A ação do Céu trouxe os mensageiros até Luke e essa mesma ação trouxe a morte a seus tios por meio da ação dos agentes sinistros do Império. O Céu corta os laços que prendem Luke à Terra e o liberta para a sua missão. Tudo o que o jovem tem que fazer agora é assumir seu destino. Nada mais o prende ao horizonte existencial de seus tios, por justo e decente que ele fosse em si mesmo. O eremita e o fazendeiro devem partir do planeta-deserto, o primeiro para retornar aos conflitos do mundo que outrora havia abandonado, e o segundo para realizar seu destino oculto de equilibrar em si mesmo as oposições da Força.

Luke aceita o chamado parte com Obi Wan Kenobi. Começarão o treinamento e as provas do herói. Nada está garantido, e o jovem terá de provar a si mesmo e aos outros o seu valor. O Chamado do Céu não significa garantia de sucesso na empreitada do herói. Astra inclinant sed non obligant. Nesse momento, Luke é somente a Nova Esperança. 
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Leia também:

http://oleniski.blogspot.com/2019/08/aspectos-do-simbolismo-da-ordem-em-star.html

2 comentários:

Anônimo disse...

Poderia ter Star Wars para alugar na locadora mais próxima, uma pena.

Silvio Luiz disse...

Prof, sensacional! E nostálgico também. Vontade imensa de rever essa antiga trilogia.

Ademais, sobre o texto, e a questão do "chamado" especial, por conta de uma ancestralidade nobre (vamos dizer assim), o que li no começo sobre o Luke, me lembrou Paris (na Ilíada) que foi criado por simples pastores, mas na verdade seu pai era o rei Príamo de Troia com a rainha Hécuba. E daí há toda uma história sobre os deuses até que escolhem Páris para escolha da mais "bela deusa". Isso acabou gerando o "retorno" de Páris ao seio familiar biológico e discorre, então, a guerra por Helena etc etc...