NANCY CARTWRIGHT, A Philosopher Looks at Science, p.126 (tradução minha)
A importante filósofa da ciência Nancy Cartwright, em seu último livro A Philosopher Looks at Science, de 2022, defende uma visão mais matizada da imagem da natureza que a ciência apresenta, o que ela denomina de dappled world (literalmente, "mundo manchado"). Cartwright argumenta que o mundo da filosofia mecanicista, do mundo como um grande relógio cujo mecanismo nunca deixa de funcionar de acordo com leis fixas e determinadas desde o seu início, não corresponde ao que se vê na realidade cotidiana e nem com o que a prática científica enfrenta em suas investigações.
Haveria, portanto, a necessidade de se pensar em uma natureza mais, por assim dizer, "negociável". A fixidez inabalável das leis naturais que garante que todas as peças do mecanismo funcionarão comme il faut sem a menor sombra de variação não passa de uma miragem, pois mesmo quando o cientista trabalha com aparelhos e máquinas as coisas nem sempre se dão como previsto. Menos ainda quando se trata de situações da vida fora dos contextos controlados dos laboratórios.
Ao contrário de um elegante sistema dedutivo de axiomas e teoremas, as leis que descrevem o nosso mundo têm muito mais a aparência de uma colcha de retalhos, dada a variedade de coisas existentes, com naturezas diferentes e comportamentos diferentes. Parcelas de grande precisão, porções resistindo à formulação precisa, sobreposições erráticas, cantos que se encaixam, mas na maioria das vezes pontas irregulares. Cartwright assevera que "muito do que ocorre acontece por acaso, sujeito a lei nenhuma. O que acontece é mais como o resultado da negociação entre domínios do que a consequência lógica de um sistema de ordem." (p. 127)
Historicamente, a tentativa de redução da variedade da natureza a leis fixas realizada pela filosofia mecanicista encontrou resistência desde de seu início. Mesmo no século XVII, como mostrou a historiadora da ciência Lorraine Daston, o fascínio pelo singular e pelo maravilhoso tinha enorme apelo nas mentes de inúmeros cientistas como Leibniz e Margareth Cavendish. A despeito de tais protestos, a filosofia mecanicista venceu o debate, explicando tudo na natureza em termos de mecânica, ou seja, movimento e matéria.
Cartwright argumenta que essa imagem gera dois puzzles. O primeiro é que, segundo a imagem padrão mecanicista, tudo acontece segundo leis naturais fixas e imutáveis, e, no entanto, em nossa vida, muito parece ser contingente e dependente de nossa ação. Essa fixidez mecanicista não se apresenta nem mesmo quando lidamos com a melhor de nossas máquinas, que dirá com o resto da natureza.
O segundo puzzle é que, se a natureza segue leis fixas e imutáveis, como querem os mecanicistas, como é possível que, ao mesmo tempo, seja defendido que o conhecimento dessas leis nos dará domínio tal sobre a natureza que mudaremos o curso dos eventos a nosso favor? Se tudo está determinado desde o início, nem a ciência poderia nos ensinar como mudar esse rumo.
A doutrina de uma ordem total está calcada em duas premissas características da filosofia mecanicista que formam o que Nancy Cartwright denomina de argumento da regra absoluta:
1. As leis da física são determinísticas, com exceção das leis que governam os fenômenos quânticos, que são probabilísticos;
2. Todas as propriedades que ocorrem na natureza são fixadas por aquelas no domínio da física.
A conclusão: todas as propriedades que ocorrem na natureza são determinadas por algum estado físico inicial.
Tomando o segundo puzzle, a filósofa americana assevera que a imagem padrão parece ser inconsistente, pois a fixidez inexorável das leis determinísticas da natureza parece contraditar o poder humano de mudar o curso dos eventos. Os defensores do mecanicismo resolvem a inconsistência simplesmente negando a liberdade humana como uma ilusão. Cartwright admite que esse argumento é compatível com os dados que conhecemos, além de explicar as predições precisas que frequentemente são realizadas na física.
A questão, entretanto, não é se uma imagem meramente "acomoda" os dados, como parece ser o caso do mecanicismo, mas sim se ela é a melhor conclusão a ser inferida. O interesse de Cartwright é saber o que inferir sobre o mundo a partir da ciência, e sua tese é a de que o "mundo manchado" é uma imagem melhor da natureza do que o mecanicismo. A sua vantagem reside em que, embora indo para além dos dados como toda imagem da natureza, ela não avança tanto no terreno da metafísica como a concepção do universo mecânico.
A fim de defender a sua imagem do mundo, Nancy Cartwright passa a considerar onde a física obtém seus maiores sucessos. A física tem sucesso principalmente em fazer predições precisas e detalhadas. Não há lugar para o "mais ou menos assim". Entretanto, essas predições precisas acontecem na sua maioria em situações altamente planejadas e controladas, em um laboratório ou em um dispositivo tecnológico. Com a exceção do sistema planetário, que quase não é submetido a causas desregradas, raramente essas situações são encontradas na natureza.
Cartwright denomina small worlds (mundos pequenos) essas configurações. Os small worlds seriam mundos dos quais uma determinada ciência saberia como criar um modelo, onde todas as causas significativas de um certo efeito pudessem ser descritas por essa ciência utilizando seus próprios princípios para entender e prever os resultados. O sucesso impressionante da física se dá geralmente em situações criadas para serem adequadas ao que a física sabe que pode fazer: small worlds, lasers ou laboratórios.
Há que se recordar também que os conceitos da física, uma ciência exata, devem ser precisos, mensuráveis e adequados a leis matemáticas. Essas restrições rigorosas na aplicação dos conceitos da física diminuem a possibilidade mesma de sua aplicação em todos os domínios da realidade. Assim, para se afirmar que o mundo é capaz de ser descrito completamente pelos conceitos rigorosamente restritos da física matematizada, é preciso afirmar que ele é inteiramente um small world.
A favor dessa tese haveria os crescentes sucessos da ciência em expandir seus limites para fenômenos antes considerados intratáveis. Porém, há igualmente uma história dos fracassos. Nem tudo o que há na realidade admite tradução em termos de conceitos físicos. Não há como decidir a questão somente com métodos históricos. De um jeito ou de outro, será necessário recorrer à metafísica.
Invocando uma noção do filósofo britânico John Stuart Mill, Nancy Cartwright concebe as leis da física como tendências. Elas não descrevem como as coisas se comportam, mas sim como as coisas tendem a se comportar. As leis não se realizam plenamente a não ser em situações adequadas, small worlds, onde não há ação de nenhuma outra força. Os sucessos preditivos da física só são produzidos nesses ambientes controlados onde nenhuma interferência externa é permitida.
A consequência importante que Cartwright infere disso é que, embora resultados precisos sejam alcançados em ambientes controlados, afirmar que no mundo que conhecemos as coisas se comportam precisamente como no laboratório é pura especulação. Do mesmo modo, é especulativa a tese de que todos os ambientes estão estruturados da forma correta, esperando apenas serem descobertos.
Essas tendências sugerem certa estabilidade, pois as leis físicas descreveriam como tende a ser o comportamento das coisas mesmo em ambientes onde há muitas forças em ação além das que se verificam nos small worlds. Cartwright afirma que há duas formas de interpretar as tendências. A primeira forma seria encarar as leis físicas como instrumentos (tools), a segunda consistiria em ver nas leis descrições de poderes (powers).
Enquanto instrumentos, as leis científicas não implicariam qualquer afirmação metafísica de existência de leis naturais. O foco residiria em usar essas leis científicas como ferramentas para construir modelos, medições, predições e tecnologia. No caso dos poderes, as leis descreveriam capacidades nos sistemas para agir e realizar mudanças. Ambas as interpretações são compatíveis com o dappled world, onde estão misturadas a ordem e a contingência, e nenhuma delas exige o comprometimento com alguma forma de antirrealismo científico.
Outra vantagem dos poderes é que eles explicam as leis da ciência, isto é, as coisas se comportam como as leis científicas descrevem por causa dos poderes intrínsecos às coisas. No início da filosofia mecanicista era fácil explicar a regularidade das leis naturais pelos decretos de Deus no Livro da Natureza. Mas quando se retira o Senhor do cenário, torna-se mais difícil justificar metafisicamente a crença em um comportamento regrado das coisas no mundo.
Nancy Cartwright chama a atenção para um fato histórico bastante interessante. Os modernos debochavam dos antigos e dos escolásticos porque estes explicavam as coisas a partir de certos poderes. Desse modo, os escolásticos explicavam a queda dos corpos por uma tendência natural que eles chamavam gravidade. Ora, diz a filósofa, o mesmo é dito por Newton quando afirma que a Terra tem um poder de atração relacionado à sua massa.
O que foi acrescentado nos anos seguintes de pesquisa científica foi um conjunto maior de informações sobre essa força e outras que podem agir em conjunto. Nos small worlds os cientistas sabem tanto quais forças estão em ação como também sabem calcular seu efeito conjunto. Contudo, nos large worlds, onde tanto as causas quanto os arranjos escapam ao escopo de qualquer ciência, não sabemos se há regras fixas para o que acontece. Talvez o que acontece se assemelhe aos resultado de uma regra aproximativa, de analogias grosseiras ou mesmo da ausência de sistemas.
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