segunda-feira, 8 de maio de 2023

Alvin Plantinga, Deus e a regularidade das leis naturais


"Deus é capaz de criar partículas de matéria de diversos tamanhos e figuras, e em diversas proporções no espaço, e talvez de diferentes densidades e forças, e, portanto, capaz de variar as Leis da Natureza e fazer mundos de múltiplos tipos em múltiplas partes do Universo. Ao menos, não vejo nenhuma contradição em tudo isso."

ISAAC NEWTON, Opticks, livro III, parte 1

O importante filósofo analítico americano Alvin Plantinga publicou em 2012 o excelente Where the Conflict Really Lies, livro no qual investiga quais seriam realmente os pontos de conflito e de concordância entre e o teísmo cristão e a ciência moderna. Após examinar detidamente os pontos de conflito, que conclui serem superficiais ou ilusórios, passa, do capítulo 9 em diante, a apresentar os pontos de concordância entre a ciência e o cristianismo.

A primeira coisa que Plantinga observa é que, apesar de todas as declarações em contrário, o cristianismo não foi deletério para o desenvolvimento da ciência moderna, dado que foi no mundo cristão que ela floresceu. Os grandes cientistas da época eram crentes: Copérnico, Galileu, Descartes, Newton, Boyle, etc. O filósofo americano considera que nada há nesse fato a se estranhar. Ao contrário, o cristianismo ofereceu as condições necessárias e suficientes para o surgimento da ciência moderna.

Apesar das concepções divergentes acerca do que é a ciência (realistas considerando que a ciência busca a verdade, instrumentalistas defendendo que basta que as teorias sejam úteis e empiricistas construtivos exigindo das teorias somente adequação empírica), Plantinga postula uma ideia básica: ciência é fundamentalmente uma tentativa de aprender verdades importantes sobre nós mesmos e sobre nosso mundo.

Obviamente, essa busca por verdades importantes não significa que a ciência tente ou possa responder a qualquer pergunta. Questões morais ou religiosas, por exemplo, estão fora de seu escopo. A investigação científica é sistemática, disciplinada e necessariamente envolve um substancial envolvimento empírico. Mas em quê o cristianismo contribuiu para esse gênero de investigação? A concepção do homem como uma imagem de Deus, o onisciente, contribuiu para a ideia de que a inteligência é o atributo que propriamente mais nos aproxima da essência divina.

Se Deus, aquele que tudo conhece, criou o homem à sua imagem e semelhança, então o homem é também um conhecedor, embora infinitamente mais limitado. Para que o homem conheça efetivamente, e assim realize essa semelhança com Deus, é preciso que haja uma harmonia entre as faculdades cognitivas humanas e a realidade criada. A ciência não é mais do que uma extensão de nossas formas ordinárias de aprendizado.

Note-se que aqui Plantinga faz referência a um ponto central de sua própria epistemologia externalista. Ao longo de uma trilogia, Warrant: the Current Debate, Warrant and Proper Function e Warranted Christian Belief, o filósofo americano apresentou seu critério para que uma crença verdadeira qualquer fosse epistemologicamente justificada. Temos um conjunto de fontes básicas de conhecimento como os sentidos, a memória, a indução, a intuição a priori de verdades formais, etc. A evidência dessas fontes não é derivada de outras fontes mais básicas do que elas mesmas.

Acreditamos nessas fontes por algo que Plantinga chama de impulsional evidence (evidência impulsional), isto é, somos impelidos a acreditar nelas em circunstâncias normais. Se esses órgãos do conhecimento, por assim dizer, estiverem funcionando como devem funcionar, e seu funcionamento for dirigido à verdade, ou seja, for dirigido à fornecer informações que espelhem a realidade, então, a despeito do sujeito conhecedor saber disso ou não, haverá conhecimento plenamente justificado. A esse critério epistemológico Plantinga denominou Proper Function (algo como "função própria", "função precípua").

Como o próprio Plantinga fez questão de observar em uma de suas obras, nesse ponto a epistemologia toca a metafísica. Não é possível garantir a acuidade das faculdades cognitivas mais básicas sem o conceito de proper function, e este, por sua vez, exige um planejador (designer) que intencionalmente produza esse aparelho cognitivo feito para captar a verdade. A outra consequência, segundo Plantinga, é que qualquer metafísica que não admita esse planejador não conseguirá explicar como as faculdades cognitivas se formaram com o objetivo de serem confiáveis

O argumento não é novo, no entanto. Descartes, nas suas Meditações, já havia notado que qualquer outra origem que o ser humano tenha que não seja o Deus perfeitíssimo, todas as nossas mais básicas formas de conhecimento podem ser colocadas em dúvida. O argumento de Plantinga deriva a necessidade da existência de um designer supremo partindo das condições de confiabilidade (proper function) do aparelho cognitivo humano. Esse é o hardcore de seu famoso argumento contra o naturalismo metafísico.

Retornando à discussão sobre a ciência, Plantinga aponta que esta necessita que haja regularidade e previsibilidade no mundo para que as suas investigações tenham sucesso. O mesmo se dá nas ações intencionais individuais de nosso cotidiano. O cientista, portanto, para exercer o seu mister, tem que possuir de antemão a forte convicção de que o mundo é ordenado, de que há uma ordem natural governando todas as coisas

Ora, o cristianismo afirma justamente que Deus criou o mundo e o mantém por Sua providência. Tudo foi ordenado por Ele e obedece às Suas leis. Deus, como enfatizaram os medievais, é racional, não é caprichoso em Suas ações e em Seus decretos. Por essa razão, a Natureza é regular e previsível. No século XVII (no qual se iniciou a Revolução Científica) em diante essa regularidade foi formulada em termos de leis naturais. De Descartes a Stephen Hawkings, passando por Robert Boyle, Roger Cotes, Johannes Kepler, Isaac Newton e Albert Einstein, todos os cientistas estão convencidos de que o universo é governado por um conjunto pequeno de leis imutáveis e acessíveis à compreensão humana.

Resta a questão sobre o que é uma lei natural. Uma lei é sempre universal, isto é, aplica-se a muitos. Entretanto, nem toda sentença universal verdadeira pode ser considerada uma lei natural. Plantinga dá os seguintes exemplos:

    (1) Todos em minha casa têm mais de cinquenta anos.

    (2) Toda esfera feita de ouro tem menos que 1/2 milha de diâmetro.

Suponhamos que as duas sentenças sejam verdadeiras. São sentenças universais verdadeiras, mas não podem ser consideradas leis naturais. A razão é que são verdadeiras por mero acidente. Poderiam muito bem ser falsas. O que falta a elas é o caráter de necessidade. O necessário é aquilo que não pode ser negado sem gerar contradição, ou aquilo que não pode ser diferente do que é. O exemplo mais típico da necessidade se encontra nas ciências formais como a matemática e a lógica.

Ninguém pode negar que 2+2=4 ou que "todo solteiro não tem sogra". Ocorre que aqui se trata de necessidade lógica, e as chamadas leis naturais parecem não possuir o mesmo tipo de necessidade. Se é logicamente impossível pensar em qualquer outro resultado para 2+2=4, é logicamente possível pensar em duas partículas que não sigam as leis de Newton de atração à distância, ainda que estas sejam realmente leis naturais.

O teísmo, afirma Plantinga, oferece recursos importantes para esclarecer a natureza das leis naturais. Elas seriam necessárias na medida em que são ordens divinas que nenhum ente finito jamais poderá interromper ou alterar. Como o próprio filósofo define, "as leis da natureza, portanto, assemelham-se às verdades necessárias no que tange ao fato de que não há nada que nós ou outras criaturas possamos fazer para torná-las falsas. Poderíamos afirmar que elas são finitamente invioláveis." (p.281)

Por outro lado, embora sejam decretos divinos, essas leis não são necessárias em si mesmas. Elas são meramente contingentes, de modo que Deus poderia muito bem ter feito outras leis para a atração entre os corpos, por exemplo. E nem é justo pensar que essas leis limitam o poder divino. Nesse sentido, podemos pensar nas leis naturais da seguinte forma:

"Quando Deus não está agindo especialmente, então P."

Por exemplo,

"Quando Deus não está agindo especialmente, então nenhum objeto material acelera de uma velocidade menor que c para uma velocidade maior que c."

A lei natural seria definida pelo comportamento usual do fenômeno quando não está sob a ação especial de Deus. Note-se que assim Plantinga tenta eliminar qualquer acusação de que o milagre seria uma suspensão das leis naturais instituídas pelo próprio Deus. As leis naturais não têm o caráter de necessidade lógica, nada impede que sejam contraditadas. Sendo contingentes, a necessidade das leis naturais é somente uma tendência interna a apresentar certos efeitos que podem a qualquer momento ser interrompidos por uma ação divina especial.

Plantinga salienta que a lei natural pode ser expressa em um condicional no qual o antecedente sendo falso, o consequente será verdadeiro. Se Deus não agir de modo especial, as coisas seguirão seu rumo usual. Nenhum ser pode alterar a lei natural, só Deus. O que significa que ela só existe de forma inexorável e inelutável para nós. A lei natural expressa a diferença de poder que há entre Deus e os demais seres. 

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Alvin Plantinga (oleniski.blogspot.com)

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