quinta-feira, 25 de maio de 2023

Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus


"Tu deves entender que Deus não possui atributo essencial de nenhuma forma e em nenhum sentido qualquer, e que a rejeição da corporalidade implica na rejeição dos atributos essenciais. Aqueles que acreditam que Deus é Um, e que Ele possui muitos atributos, declaram a unidade com seus lábios, e assumem a pluralidade nos seus pensamentos. Isso é semelhante à doutrina dos cristãos, que dizem que Ele é um e que Ele é três, e que três são um. Do mesmo caráter é a doutrina daqueles que dizem que Deus é Um, mas que Ele possui muitos atributos."

RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, O Guia dos Perplexos, cap. L

O médico, teólogo e filósofo cordobês do século XI D.C., rabbi Moisés ben Maimônides, conhecido também como Ramban, em sua obra mais famosa, O Guia dos Perplexos, pretende guiar aqueles fiéis que, tendo uma vida religiosa sincera e exemplar, sentem-se perplexos diante de muitas expressões e características humanas e corporais atribuídas a Deus na Torá. Logo no início do livro, o rabbi expõe claramente o seu objetivo de explicar certas expressões encontradas nos livros proféticos a fim de ensinar o verdadeiro sentido da Torá àqueles que estão preparados para tal conhecimento.

Não se encontram entre esses preparados os que são ignorantes, e nem mesmo aqueles que só se dedicam ao estudo da Lei mosaica. O Guia dos Perplexos é dirigido somente aos homens religiosos e diligentes cumpridores da Lei que realizaram também estudos filosóficos, e que, portanto, sentem dificuldade em aceitar como correta a interpretação literal das Escrituras. Esses são os que se encontram perdidos em perplexidade e em ansiedade.

O Senhor, em Sua bondade, revelou aos homens uma Lei para regrar o seu comportamento. Para compreendê-las, é mister obter conhecimento correto da existência do Criador de acordo com nossas capacidades, isto é, Metafísica. Mas para alcançar a Metafísica, é preciso passar pela Física. Por essa razão, as Escrituras se iniciam com o relato da Criação. Todas essas verdades profundas foram comunicadas a nós por meio de linguagem alegórica, figurativa e metafórica.

O Eterno fez assim para que todos compreendessem essas verdades difíceis, na medida de suas faculdades e na fraqueza de seu entendimento e educação. O mesmo não pode se aplicar aos que já fizeram estudos filosóficos. Estes, fiéis à Lei e à Revelação divina, encontram-se perplexos diante de certas expressões utilizadas nos textos sagrados com referência a Deus. 

Maimônides lança mão do dito talmúdico segundo o qual a Torá fala a linguagem do homem. O que significa que a linguagem usada nos textos sagrados é dirigida a todos sem distinção, de modo que os termos nem sempre possuem sentido literal a fim de que mesmo os mais ignorantes e parvos sejam capazes de entender a mensagem ali veiculada. Assim, quando se atribui a Deus algum termo que denota corporeidade, o intuito é sugerir a idéia de existência, já que muitos têm dificuldade de conceber qualquer existência que não seja corporal.

Obviamente, não se pode iniciar os jovens logo no estudo da Metafísica. Eles devem ser educados de acordo com suas capacidades. Os mais talentosos, contudo, devem ser identificados e, aos poucos, introduzidos em um modo de estudo mais alto baseado em provas e em argumentos. O ensino desses temas antes do tempo certo é prejudicial à fé. Maimônides fornece cinco razões contra o início dos estudos pela Metafísica.

A primeira é que o assunto é difícil, sutil e profundo. Nenhuma instrução deve iniciar com temas abstrusos. É preciso progredir do elementar ao mais sofisticado. A segunda razão é que a inteligência ainda não está completamente formada e preparada para esses estudos. A terceira razão é que a Metafísica requer estudos preliminares prolongados que poucos, muito poucos, estão dispostos a empreender. A quarta razão é a constituição física do jovem, cujo temperamento quente e desordenado deve antes ceder e dar lugar à moderação e à calma. A quinta razão são as necessidades da vida que impedem os estudos.

Após explicar os significados metafóricos, figurativos e alegóricos de diversas palavras empregadas na Torá com referência a Deus, Maimônides passa a tratar da questão metafísica dos atributos divinos. O atributo pode ter dois sentidos: no primeiro, expressa a essência de algo (por exemplo, se digo que o homem é um "animal falante", estou apenas expondo a definição do que é um homem). No segundo, é algo não inerente ao objeto, e que é adicionado a ele como elemento exterior.

Uma coisa pode ser definida de cinco modos. Primeiro, por sua essência, como o homem é definido por "animal racional". Ocorre que Deus não pode ser definido, já que nada há que seja anterior a Ele. Como definir aquilo que é a causa de tudo o que se pode definir? Em segundo lugar, uma coisa pode ser descrita por uma parte de sua definição, como quando afirmamos que todo homem é racional. Esse modo não se aplica a Deus pelos mesmos motivos do primeiro modo.

A coisa pode, em terceiro lugar, ser definida por uma de suas qualidades, sejam elas morais ou intelectuais, físicas, emocionais e passionais, ou mesmo quantitativas. Nenhuma, por óbvio, pode ser aplicada a Deus. A quarta tentativa seria definir a coisa por sua relação com outros entes, como quando se diz que Sócrates é mestre de Platão. O problema é saber se Deus pode ser definido por Sua relação com algo.

Maimônides é enfaticamente contrário a essa tentativa. Deus não pode ser comparado a nada, e o fundamento da relação é que os entes relacionados sejam do mesmo tipo. Não se relaciona o intelecto com a visão, pois não são entes do mesmo tipo. Mais absurdo ainda seria estabelecer alguma relação entre Deus e as criaturas, como se estivessem no mesmo patamar. O Absoluto não pode ser comparado o meramente possível. Nada há em comum entre Deus e as criaturas, e mesmo a existência é atribuída a ambos somente por pura homonímia.

Os homens foram levados a crer em atributos divinos por uma interpretação literal dos termos utilizados nos textos sagrados. Vale novamente o princípio de que a Torá fala a linguagem dos homens. As perfeições aplicadas a Deus na Torá são perfeições somente em relação aos seres criados. Muitos desses atributos são ações que parecem sugerir mudanças em Deus, mas na realidade não implicam nenhum câmbio na divindade. Se nos seres humanos há diferença entre a sabedoria e a vontade, nenhuma diferença pode ser encontrada entre a sabedoria divina e a vontade divina. Essas relações e distinções só existem nas mentes dos homens.

Em todos os outros entes da realidade, a existência é um atributo, por assim dizer, adicionado às suas essências. Isto é, quando conhecemos a essência de um ente finito, sabemos o que ele é, mas isso não implica que ele deva ou não existir. Maimônides aplica aqui a distinção islâmica entre essência e existência, defendida por Avicena. Para que a essência de um ente finito possa existir, a ela precisa ser dada a existência por um ente que já exista na realidade. 

Ora, Deus não é uma essência cuja existência deve ser-Lhe adicionada por uma causa externa. A existência não é um atributo adicionado à sua essência. Sua essência é idêntica à Sua existência. Deus não é uma substância cuja existência seja um acidente, Ele é a existência. Do mesmo modo, não possui a vida, é a vida. Não possui conhecimento, é o conhecimento. Não há pluralidade em Deus.

Só temos à nossa disposição uma linguagem inadequada quando tratamos de Deus. Por exemplo, se dizemos que "Deus é um", não utilizamos esse termo em sentido quantitativo, como em "um" e "muitos". Deus não é uma unidade entre outras unidades. O que queremos expressar é que não há nada semelhante a Ele. Quando dizemos que Deus é o "Primeiro" ou o "Último", não queremos insinuar nenhuma sucessão temporal, mas, ao contrário, expressar a Sua imutabilidade eterna. 

Rabbi Maimônides, havendo discutido a inadequação dos atributos positivos, passa a tratar de um tema que considera ainda mais recôndito que os precedentes. Os verdadeiros atributos de Deus são os negativos, ou seja, os que não incluem nenhuma noção incorreta ou qualquer deficiência com relação a Deus. Não é possível descrever o Criador a não ser por meio de atributos negativos. Estes não dizem o que é a coisa, mas somente o que ela não é. Circunscrevem o objeto de certa forma, só que pela exclusão de um atributo e não pela inclusão.

Compreendemos somente que Ele existe, não Sua essência. Ele não possui a existência como um acidente adicionado à Sua essência. Se Deus é pura existência, não é uma essência que sustente atributos positivos como são os outros entes. Os atributos negativos, por seu turno, não implicam multiplicidade ou limitação, além de fornecer ao homem o maior conhecimento sobre o Senhor. 

Deus é livre da substância, é absoluto, simplíssimo, incausado, perfeitíssimo. Tudo o que entendemos é que Ele existe, que não é similar a nenhum outro ser, que não inclui pluralidade, doador da existência aos seres, preservador e governante do universo. Diante de Suas obras, nosso conhecimento se prova ignorância. Toda perfeição que atribuímos a Deus é uma perfeição somente com relação a nós. Os atributos negativos não dizem o que Deus é. Nosso conhecimento consiste em saber que somos verdadeiramente incapazes de compreendê-Lo.

A seriedade do que foi estabelecido acima é tamanha que Maimônides declara que aquele que afirma que Deus possui atributos não erra somente por ter um conhecimento deficiente do Criador, mas, muito pior do que isso, inconscientemente perde sua fé em Deus. Nas coisas comuns, um conhecimento parcial significa um erro parcial. Em se tratando de Deus, onde não há pluralidade, é impossível conhecer algo e desconhecer outro tanto. Assim fazem os que assumem que Deus possui atributos adicionados à Sua essência.

O que Maimônides quer expressar é que Deus é incompreensível justamente porque não é uma substância com atributos como são os entes finitos deste mundo criado. Afirmar atributos positivos em Deus é como rebaixá-Lo ao nível das criaturas. É torná-Lo um ente entre outros entes. A absoluta transcendência de Deus exige a Sua incognoscibilidade essencial. Aquele que é a origem de todos os atributos não pode Ele mesmo possuir atributos. 

Obviamente, esbarramos nesse ponto nos limites de nossa linguagem, adequada para tratar daquilo que é inteligível, portanto limitado. A solução é a atribuição negativa, a linguagem apofática. Ela não diz o que Deus é, porém evita que conceitos limitados criem distorções e limitações indesejáveis. Afirmar que Deus é mau é obviamente errado, mas dizer que Ele é bom também não O descreve com justiça, dado que nossa medida de bondade é limitada. É preciso sim negar a imperfeição para afirmar a perfeição. Por outro lado, é também necessário negar mesmo a perfeição para que não se afirme a imperfeição.

O rabbi cordobês adiciona que todos os nomes atribuídos a Deus nas Escrituras são derivados dos Seus efeitos, exceto o Tetragrammaton (YHWH), que é exclusivamente atribuído a Ele como o Shem HaMephorash, "o Nome Explícito". A sacralidade desse nome, que só era pronunciado pelo sumo sacerdote no santuário no Dia da Expiação, está ligada ao fato de que ele denota a Deus Ele mesmo, e a mais nenhum outro ente. Todos os outros nomes dados a Deus na Torá são derivativos.

Quando Deus ordenou a Moisés que anunciasse Seu nome aos hebreus, o santo patriarca questionou como deveria apresentá-Lo ao povo. Deus manda que Moisés o anuncie como Ehieh asher Ehieh, nome derivado do verbo hayah, no sentido de "existente". Maimônides afirma que, nessa expressão, sujeito e predicado, o primeiro Ehieh e o segundo Ehieh, são idênticos. Unidos sujeito e objeto por asher, "que", a expressão significaria o existente que é existente. Em outros termos, Deus existe em um sentido diferente do sentido ordinário de existência. Sua existência é absoluta.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Maimônides e os atributos divinos (oleniski.blogspot.com)

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