sexta-feira, 9 de junho de 2023

Huang Po e o espírito uno do Buddha


"O Bodhisattva deve se afastar dos conceitos característicos quando cultiva o espírito da Iluminação suprema e perfeita. Seu espírito não deve se fixar sobre as formas. Seu espírito não deve se fixar sobre os sons, os odores, os sabores, os tangíveis e o inteligível. O que é necessário é ter pensamentos sem que jamais eles se fixem. Pois se seu espírito se fixa em um ponto, ele não será jamais verdadeiramente fixo."

SUTRA DO DIAMANTE, 14

O mestre budista Ch'an chinês Huang Po (IX D.C.), ensinou a seu discípulo P'ei Siu que todos os Buddhas e todos os seres vivos são um só e o mesmo espírito (hsin) e que não há fora desse nenhum outro método espiritual. Tal espírito não possui início ou fim, não tem cores, é informe e sem aspectos, não pertence ao ser ou ao não-ser, não é antigo ou novo, nem longo e nem curto, para além de toda delimitação e denominação, para além de qualquer possibilidade de ser percebido como um objeto. Ilimitado e insondável, dir-se-ia espaço vazio.

O budismo Ch'an foi a fonte do Zen japonês, e não é difícil reconhecer muitos de seus traços no ensinamento do "espírito único" do mestre chinês Huang Po. O Buddha não é uma pessoa, mas a Realidade em Si mesma quando desnudada de todas as diferenças que dela dependem. Nesse sentido, há um só e único espírito (心), e a iluminação é despertar plenamente para essa realidade. O Buddha, porém, é indizível, pois não é nenhuma das coisas em particular, nem mesmo o conjunto somado delas. Nem é uma espécie invólucro abarcando e contendo tudo o que há, como um vaso contém a água.

Ele não é um ente, uma coisa entre outras coisas, mas sim a realidade última das coisas. Assim sendo, todas as diferenças, condições, limitações, denominações são realidades das coisas e não do Buddha. A impermanência dos entes tem no incondicionado o seu fundamento. Por essa razão, não há começo ou fim do espírito uno, assim como não pode haver termo que o descreva, já que todos os termos que utilizamos designam as coisas impermanentes. Nem sequer o par "ser" e "não-ser" é completamente adequado.

Estamos aqui diante da linguagem negativa do apofatismo que é comum tanto às tradições espirituais ocidentais quanto às orientais. Desde os Upanisads, passando pelo Uno neoplatônico e pelo Sunya de Nagarjuna, a linguagem negativa assevera a incognoscibilidade e a impossibilidade de se descrever sob qualquer termo a realidade última anterior ontologicamente à manifestação dos entes com todas as suas diferenças e limitações. Não é por outro motivo que tão frequentemente se encontre nas tradições espirituais, nas bocas dos santos, dos mestres e dos místicos,  o uso do termo vazio.

Na sequência de seu discurso, o mestre Huang Po ensina que muitos atrelam a sua busca pelo Buddha a aspectos particulares da realidade e, por isso, não serão jamais capazes de alcançar nada. Eles ignoram que o Buddha aparece espontaneamente aos que cessam de o invocar libertando-se dos processos do pensamento. Esse é um outro aspecto importante que encontramos em outras tradições apofáticas. A união com o Uno, nas Enéadas, por exemplo, ultrapassa necessariamente o intelecto. O mesmo se dá com a contemplação em Dionísio Areopagita.

Nada é acrescido e nada é retirado do Buddha, diz Huang Po. Aquele que não crê que esse espírito é o Buddha, e que almeja adquirir méritos se apegando a aspectos particulares, é objeto de desdém e se afasta da Via (道). Não há outro Buddha que não esse espírito claro e puro que se assemelha ao espaço vazio, pois em nenhum ponto se encontra alguma forma particular. Tentar suscitar um tal espírito por meio dos pensamentos é se apegar a aspectos particulares. Nunca houve Buddha apegado a particularidades.

Não se chega ao Buddha por mil práticas, seguindo alguma via gradual. Não há Buddha gradual. É suficiente despertar para esse espírito uno para não ter mais nenhuma realidade a encontrar. Tal é o verdadeiro Buddha. Como um espaço vazio, ele não é confundido e não se degrada jamais. O Sol nasce e ilumina a terra, mas o espaço não sofre mudança. Vem a noite, tudo escurece, mas o espaço permanece vazio e indistinto. O mesmo se dá com o espírito do Buddha e os seres viventes.

Huang Po compara aqui o espírito uno com o espaço vazio pelo fato de que o Sol ilumina as coisas depositadas no espaço, mas não o espaço ele mesmo. A escuridão da noite só escurece as coisas depositadas no espaço, mas não o próprio espaço. Isso significa que, na qualidade de condição de tudo, o Buddha não é afetado pelas condições que afetam as coisas. 

Há aqueles que consideram o Buddha a partir de características particulares como ser puro, luminoso e livre, e os seres viventes também a partir de características particulares como impuros, obscurecidos e atados ao Samsara. Os que assim pensam, no entanto, jamais alcançarão a Iluminação, mesmo após inumeráveis kalpas, pois se apegam a aspectos particulares. Huang Po indica que não se deve opor o Buddha às coisas, separando-os como se fossem lados opostos, um puro e um impuro.

Não há dualidade, pois não há duas existências completamente independentes, opostas e irreconciliáveis. Só há o espírito uno em suas manifestações (pradurbhava). Não há o que encontrar, não há para onde ir. Apegar-se ao particular, tomar algo na realidade como o Buddha e buscá-lo como se fosse a Iluminação é permanecer na pura ignorância (Avidya). Tomar as coisas somente nas suas formas limitadas e nas suas determinações particulares é não apreendê-las na sua unidade última, para além de todas as diferenças e de todas as limitações.

No espírito uno não resta absolutamente nada a encontrar, pois o espírito é o Buddha, diz Huang Po. Os adeptos que estudam a Via e que ainda não despertaram têm buscado o Buddha em práticas exteriores e em aspectos particulares. Esse é um mau método e não é a Via da Iluminação. 

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